Paula Cosme Pinto, in Expresso
Portugal segue as pisadas da Grécia?
Chego ao carro na manhã de segunda-feira e dou com ele arrombado. Nada de grave, apenas uma fechadura forçada. Para trás ficava uma das noites mais frias e chuvosas da semana. E eu só pensava que aquela não era, de todo, a melhor maneira de começar a semana. Com olhos de falcão faço uma radiografia ao meu velho 'boguinhas' para perceber os danos. E foi aí que me bateu uma angústia das fortes.
No porta-luvas, a carteira dos documentos (que eu insisto em deixar lá por pura inconsciência) permanecia intacta. O auto-rádio que andava à solta no porta-bagagens - à espera de um dia ser montado - também. Os meus sapatos do tango - que poderiam render uns belos trocos, diga-se de passagem! - também lá estavam. Mas o que roubaram deixou-me o estomago às voltas: um cobertor, a chapeleira do porta-bagagens e o forro que o separava do pneu suplente.
Era fácil chegar a uma conclusão: quem me roubou não queria fazer dinheiro. Queria proteger-se do frio. Sinais dos tempos. Da miséria que se vive. Da fome e do frio que se passa nas nossas ruas. Das muitas pessoas que já fazem delas a sua casa. Isto faz-me pensar no rumo que o nosso lindo retângulo, à beira-mar plantado, está a levar. E nas muitas pessoas que preferem criticar quem sai à rua em protesto, alegando que a pobreza que se está a instalar é um género de mito criado pela comunicação social. Gente a passar fome? Sinceramente, só não a vê quem não quiser.
Quanto vale uma sopa nos dias que correm?
Falo por mim: vivo num bairro bem simpático, no centro de Lisboa. Daqueles com prédios bonitos, árvores que dão um certo charme à zona, vizinhança de classe média que, à partida, não parece passar dificuldades. Mas há uns tempos, ia na rua e ouvi uma conversa que até hoje ando a tentar digerir. À porta de um deste simpáticos prédios, um senhor com idade para ser meu pai perguntava a uma senhora na casa dos quarentas se já tinha "conseguido encontrar alguma coisa". Ela, com olheiras profundas e uma criança pequena agarrada às pernas, disse-lhe que não. Continuava "a procurar emprego". O senhor fez uma festa à criança e respondeu: "Hoje vou ao supermercado com a minha mulher e batemos-lhe lá à porta para lhe levar umas comprinhas. Tenha calma". Segui caminho e esta frase veio comigo. Tal como também veio comigo a velhinha que vende salsa da sua horta à porta do supermercado, porque "a reforma mal dá para pagar os medicamentos, quanto mais para comer".
Também há uns tempos cruzei-me com a Patrícia Vasconcelos, mentora do projeto Desperdício Zero - Portugal não se pode dar ao Lixo que se dedica a recolher os 'desperdícios' de estabelecimentos como restaurantes e hotéis e os distribui por pessoas carenciadas. Contou-me que cada vez mais lhes chegam pedidos de famílias que há um ano viviam sem dificuldades e que agora enfrentam, em muitos casos, situações de inesperado desemprego. Prolongado. Desesperante. "Não são poucas as vezes que alguém chora quando lhe entregamos uma caixa com sopa e restos de arroz". Mais uma frase que veio para casa comigo.
"Onde não há pão não há sossego"
Todos os dias vejo também engrossar a fila de gente que recorre às carrinhas de distribuição de comida. Por defeito (ou feitio) profissional, já parei para os observar. Muitas daquelas pessoas são o espelho da (em vias de extinção) classe média portuguesa. Muitas, de cabeça baixa, trazem no rosto a vergonha que sentem por ali estarem. Muitas delas podiam ser amigos ou familiares de tantos de nós. E será isto fruto da minha imaginação de jornalista? Ou será que esta pessoas comeram demasiados bifes no passado e que agora só estão a pagar as (merecidas) favas?
Todas a noites também vejo aumentar a quantidade de sem-abrigos que dormem no jardim ou em entradas de prédios lá da zona. Alguns embrulhados em cobertores imundos e tapados com caixas de cartão. Rostos já sem vergonha, mas também sem esperança. Resignados. Muitas vezes incapazes de fazer o caminho de volta. Quem sabe se não terá sido um deles a roubar o meu carro para conseguir suportar o frio. Espero, sinceramente, que lhe tenha sido útil o que levou. Tal como cantava Zeca Afonso, "onde não há pão não há sossego". E ao contrário do que alguns dos que vão enchendo os bolsos à conta de uma nação a caminho de faminta - que já não acredita no significado da palavra justiça - o povo não aguenta. Ai não aguenta, não.