20.7.12

O amor, os bancos e o rendimento mínimo

por José Manuel Pureza, Opinião, Diário de Notícias

Gandhi ensinou-nos que a política tem de ser um gesto amoroso para com o povo. Em nome desse princípio, Gandhi animou o mais pujante movimento de resistência não violenta que a História regista, fez desabar um império arrogante e deu voz a milhões de homens e mulheres silenciados pela lei. Essa crucial experiência histórica ficou como testemunho inapagável de que o amor na política e na economia não é um vago princípio de cordialidade com todos indiferenciadamente, mas, sim, um dever de romper com costumes, comportamentos e estruturas de exploração e de infelicidade imposto por um imperativo de cuidado preferencial com os pobres. Esse dever ganha corpo quer em políticas de discriminação positiva quer na exigência de não discriminação negativa.

Vamos a um caso concreto. O Governo decidiu que os beneficiários do rendimento social de inserção (RSI) ficam obrigados a prestar 15 horas de atividade voluntária em instituições sociais ou autarquias. A medida abrange 50 mil pessoas. O secretário de Estado da Segurança Social invocou como justificação desta medida ser exigível que "as pessoas beneficiárias de uma prestação do Estado a possam retribuir à comunidade que as envolve." Soma-se a isto o anúncio entusiástico, pelo Governo, de novas regras de "maior controlo, maior combate à fraude, maior combate ao excesso" com uma perspetiva de poupança de 70 milhões de euros nesta prestação.

Há nestas decisões uma cultura que fica no avesso do cuidado preferencial dos mais pobres. Primeiro porque elas tornaram política pública a velha rábula de Raul Solnado ("quer queiras quer não queiras, vais para bombeiro voluntário"), com a diferença de que agora se chama eufemisticamente trabalho voluntário àquilo que é, na verdade, trabalho forçado e gratuito. Segundo, porque lhes subjaz uma estratégia da suspeição, apesar de o RSI ser a prestação social objeto de controlo mais rigoroso em Portugal, incluindo a admissão de violação do sigilo bancário dos seus beneficiários. Ser beneficiário do RSI dá direito, por definição, a ser-se suspeito de fraude e de preguiça. Até prova em contrário que cabe ao próprio evidenciar.

Terceiro, e mais que tudo, porque se impõe aos pobres aquilo que se dispensa os ricos de fazer. É exigível que quem beneficia de um apoio do Estado o retribua à comunidade? Pois bem, vai o Governo aplicar essa lógica aos bancos privados que beneficiaram de injeções de capital de mais de cinco mil milhões de euros e exigir-lhes que retribuam esse apoio através de uma política de crédito à economia que teimam em se recusar a adotar? Antecipo a crítica: o Estado não pode mandar nos bancos privados porque são privados. E respondo com três perguntas: Não pode mandar, só pode apoiar? Os beneficiários do RSI não são também privados? Os apoios públicos devem ser retribuídos à comunidade ou só os apoios públicos aos pobres o devem ser? Quanto à fraude, sou eu que tenho mau feitio ou a taxa de fraude perpetrada pelos bancos privados é muito, mas muito superior à dos beneficiários do RSI (estou a lembrar-me de BPN, Barclays, HSBC, ...)? Vai então o Governo adotar regras de "maior controlo, maior combate à fraude, maior combate ao excesso" na atividade bancária, incluindo a admissão de fim do sigilo bancário dos seus administradores?

Estou absolutamente convencido de que os defensores do amor como critério da gestão, da economia e da política me darão razão. Porque o amor é assim mesmo: não discrimina os pobres. Ama-os apenas. E isso pode ser ameaçador.