por Joana Azevedo Viana, in Online
Documento redigido pelo eurodeputado Rui Tavares sugere acção concentrada das instituições europeias e criação de uma comissão
A Hungria é uma janela para enfrentar os desafios da Europa unificada, entre eles “a crise dos valores fundamentais”. Quem o diz é Rui Tavares, eurodeputado português que esta semana apresentou o antecipado relatório da comissão das Liberdades Cívicas, Justiça e Assuntos Internos (LIBE) do Parlamento Europeu (PE) sobre a situação húngara, perante a ratificação da nova Constituição do país em Janeiro de 2012 e as quatro reformas a que já foi submetida desde então.
Ontem, um dia depois de o relator ter apresentado o documento a ser preparado desde Fevereiro de 2012, os eurodeputados membros do Fidesz – partido no poder na Hungria, liderado por Viktor Órban – reagiram em fúria ao facto de o documento abrir caminho à “opção nuclear” de invocar o artigo 7.o do Tratado da União Europeia (TUE), pelo qual a Hungria poderá perder o direito de voto no Conselho Europeu se não tiver em conta as recomendações feitas.
King Gal diz que o documento é “completamente inaceitável”, com o grupo de membros do Fidesz no PE a acusarem, em comunicado, “uma tentativa de colonizar constitucionalmente a Hungria”.
No relatório, Tavares conclui que “tanto a tendência geral e sistemática de alterar reiteradamente o quadro constitucional e jurídico em prazos muito curtos como o conteúdo de tais alterações são incompatíveis com os valores comuns” definidos no Tratado da União Europeia (TUE) e “desviam-se dos princípios” referidos nesse documento-farol.
Em causa estão alterações que vão da mudança da idade de reforma dos juízes dos 70 para os 62 anos a alíneas vistas por muitos como ataques a minorias, entre elas a criminalização de sem-abrigo e a definição do cristianismo como religião oficial de um país onde o anti--semitismo grassa.
Num comunicado enviado às redacções, o eurodeputado independente que integra o Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia sublinha que “a presente resolução não versa apenas sobre a Hungria, mas também, e inseparavelmente, toda a UE e a sua reconstrução e evolução democrática após a queda dos totalitarismos do século xx”.
Em conversa com o i, Tavares acrescenta que as suas recomendações no relatório – agora a ser emendado para ser votado em Junho pela LIBE e “em Julho ou Setembro em plenário” – surgem numa tentativa de garantir que a união tenha mecanismos num futuro próximo que garantam a protecção do Estado de direito nos países que compõem uma Europa actualmente em crise (e não se fala aqui apenas da crise económica e financeira).
“O meu medo é que não estejamos preparados para lidar com a crise dos direitos fundamentais”, explica. “Falamos da Hungria, mas na Roménia há negociações importantes a decorrer no parlamento à porta fechada, sem que a sociedade civil saiba o que está a ser discutido; na Bulgária [que na próxima semana vai a votos nas parlamentares] não sabemos o que esperar das eleições; na Grécia existe um partido de extrema-direita nazi com 20% dos votos que faz discriminação de estrangeiros a olho nu...”
O eurodeputado dá, entre outros, o exemplo da idade da reforma dos juízes. A medida foi alvo de um processo de infracção pela Comissão Europeia em 2012, com o Tribunal Europeu de Justiça (TEJ) a defini-la como inconstitucional e a impor a reinstalação de todos os juízes, entre eles até presidentes de tribunais. A Hungria acenou que sim, mas ditou que os juízes acima dos 62 anos que tinham sido afastados apenas poderiam regressar ao activo para cargos de início de carreira judiciária.
“O facto de, passado um ano de cooperação [entre a Comissão e a Hungria], o governo húngaro ter feito esta emenda [ratificada pelo presidente do país há um mês e meio] demonstrou que a estratégia de cada instituição europeia actuar por si não deu frutos”, explica.
União Os exemplos são suficientes para enquadrar a situação da Hungria desde que o Fidesz alcançou maioria absoluta de dois terços dos assentos parlamentares nas eleições de 2010. “O objectivo deste relatório é analisar factual e empiricamente as mudanças legais e constitucionais na Hungria para responder à pergunta simples: está o governo húngaro a violar direitos fundamentais?”
Órban mantém que não. Sexta-feira, nas Conferências do Estoril, o primeiro-ministro húngaro voltou a defender-se das críticas europeias com o argumento de que a UE não está a respeitar a identidade dos países que a compõem, citando até Robert Schuman – “Ou a Europa é cristã ou não haverá Europa nenhuma” – para defender a inclusão na Constituição do cristianismo e da definição de casamento como exclusivo entre um homem e uma mulher, alínea que várias ONG dizem pôr em causa os direitos dos gay.
A estas declarações junte-se o “jogo político” atribuído por membros do seu partido a Catherine Ashton, alta representante da UE para os Negócios Estrangeiros – que, dizem, está a atacar as reformas da Hungria para garantir que substituirá Durão Barroso na presidência da Comissão Europeia em 2014.
“Quando falamos destas reformas na Hungria”, esclarece Tavares, “falamos de mais de 500 leis, das quais 49 são o que chamamos cardinais, ou seja, relacionadas directamente com o poder judiciário, a liberdade de imprensa, a lei eleitoral, etc. Daí que a conclusão fundamental do relatório seja que as alterações sistémicas ao regime [húngaro] divergem mais do que convergem com o artigo 2.o do Tratado da União Europeia e que tal deve ser corrigido, caso contrário estaremos perante uma violação séria dos valores fundamentais da União.”
Aqui Tavares traça um paralelismo com os Estados Unidos em tempos de segregação racial. “Se não tivermos atenção ao que se está a passar, arriscamo-nos a tornar-nos os EUA dos anos 50, em que havia segregação [racial] e o Congresso não podia fazer nada. Só que nesse caso existia o Supremo Tribunal e a UE só tem o Tribunal Europeu de Justiça, que não tem uma jurisprudência tão avançada.”
Para fazer frente a isto, o eurodeputado apresenta no relatório duas grandes recomendações. Aprimeira: que as instituições europeias ajam de forma concertada e “com uma agenda de emergência” no caso húngaro. A segunda: que se colmatem as falhas no âmbito de acção do TEJ – que só pode pegar em casos depois de estes terem passado por todas as instâncias judiciárias nacionais – através da criação da Comissão de Copenhaga, composta por “juristas de elevado mérito e independência para fazer recomendações e análises normativas sobre estes temas” à medida que eles se vão desenvolvendo nos estados-membros.
“Existe esta contradição na UE, em que somos muito exigentes com quem vai entrar mas depois achamos que basta esse atestado de bom comportamento e está tudo bem. E estamos a ver que não é assim”, diz Tavares. O seurelatório poderá ser aprovado já em Julho.