2.8.21

O médico que levou a tribunal uma mãe que recusou ser atendida por um negro: “Foi responsabilidade social”

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Pedro Gomes da Costa ganhou o caso depois de ter processado a mãe de uma criança que o insultou com “preto de merda, seu macaco”. Médico critica: “Esta senhora tem mãos livres” para ser racista “porque a sociedade é permissiva”. Lei deveria ser mais dura, defende.

Pedro Gomes da Costa será dos poucos, senão o primeiro médico em Portugal, a denunciar uma situação de racismo numa consulta, a ir a tribunal e a ganhar o processo contra a mãe de uma criança que o ofendeu em plena consulta.

Na noite de 29 de Julho de 2018 o médico de 53 anos estava a fazer o serviço de urgência no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, onde trabalha no serviço de pediatria, quando entrou uma criança de 20 meses com febre e aftas na boca, acompanhada pela mãe, Daniela Domingos. Como habitual para aquelas situações, usou uma espátula para a observar, baixou a língua da criança. Ela deu um grito. “A mãe pega-me no braço, puxa com uma violência e a partir daí começaram as ofensas: ‘preto de merda, seu macaco, você pensa que está a observar um animal? Animal é você! Isso é que era bom, a minha filha ser observada por um preto, exijo que seja observada por um médico branco!”, disse-lhe a mulher aos gritos continuando-os pelo corredor e depois na sala de espera, com a secretária, a enfermeira, o segurança e outros pacientes a ouvirem.

A dada altura a médica colega de Pedro Costa, que também ouviu os insultos, dirigiu-se a Daniela Domingos mas a mulher continuava. Pedro Costa disse: “Podes observar à vontade porque tudo o resto tratamos no sítio próprio”, conta em sua casa em Odivelas, não muito distante do hospital onde tudo se passou e onde trabalha há vários anos.

A decisão de que aquilo não ia ficar por ali foi imediata: “Foi taxativo que tinha que seguir para o tribunal”, afirma com tranquilidade. O episódio passou-se à 1h da manhã e na altura nem ponderou “forçar” a mulher a ser atendida por ele ou encaminhá-la para outro hospital. O que o médico gostaria que tivesse acontecido foi o que acabou por acontecer: “Não pôr em causa a criança — se ninguém a atendesse tinha que se deslocar para outro hospital, e ela não tem culpa da postura da mãe.”

Três anos depois, em Julho de 2021, Daniela Domingos, hoje com 26 anos, seria condenada no Tribunal de Loures por dois crimes de injúria e difamação, ambas agravadas, tendo de pagar uma multa de 1300 euros e uma indemnização de 1500 euros. O tribunal deu como provado “que utilizou expressões de carácter racista” para insultar o médico. Pedro Gomes da Costa tinha pedido 15 mil euros mas o tribunal teve em conta que Daniela Domingos tem uma situação económica precária. Funcionária numa cantina escolar e a receber 295 euros mensais, esta mãe de três filhos reportou viver com a avó.

O desfecho deixou o médico com a sensação de missão cumprida. “Estas coisas normalmente não chegam ao tribunal”, comenta. “E estas pessoas, esta senhora tem mãos livres, com todo o à vontade para insultar invocando a questão racial porque a sociedade é permissiva com o chamar preto a uma pessoa. Havia testemunhas e ela não se importou com isto, dizia alto e bom som o que lhe ia na alma. Qual o objectivo? Impunidade.”

O médico acabou por provar que nem sempre tem de ser assim. No dia seguinte ao episódio, comunicou ao conselho de administração do hospital que iria apresentar queixa. Seria logo apoiado, com “zero de hesitação” da chefia e colegas.

Nunca mais viu Daniela Domingos, nem no tribunal. “Para mim isto é uma questão de civismo e de responsabilidade social. Estas coisas têm que ser punidas sem vacilar. Qualquer pessoa tem uma responsabilidade: respeitar o próximo, independentemente da cor. Só assim podemos conviver de forma saudável e menos violenta. Avancei com este caso para a pessoa assumir a sua responsabilidade mas para servir como exemplo de muitas coisas que vemos todos os dias, pessoas vítimas de violência só por terem uma cor de pele diferente”.
Esforço redobrado

Nascido em 1968 na Guiné, Pedro Costa formou-se na Faculdade de Medicina de Lisboa depois de ter estudado em Bissau até ao 11.º ano. Lembra-se de ser o único ou dos poucos alunos negros ao longo do seu curso. “Na altura sentia uma resistência enorme em relação à comunidade científica. Mesmo dos colegas.”

O que fazia, então, na altura o então estudante de medicina? Tentava “provar que o que pensam de nós está errado”, responde. “O único caminho é redobrar o esforço e provar.” Sentiu, assim, muitas vezes, que foi mais posto à prova do que os colegas. Numa área considerada elitista, usa por vezes o “nós” para se referir a outros médicos negros. “Temos a sensação que a forma como olham para nós não é a mesma, quando nos põem à prova não põe em posição de igualdade. Mas isso é uma sensação tão subjectiva que não é taxativo, eu não era alvo de racismo frontal.”

Médico nas urgências de pediatria, gosta da adrenalina da urgência e das doenças agudas. Trabalhou nos hospitais de Évora, Açores, Vila Franca de Xira, Caldas da Rainha, Torres Vedras, Abrantes, Loures e por isso conhece bem o país.

O caso que o levou a ir a tribunal foi o único de racismo directo e frontal, mas passou por várias situações do que chama racismo velado fazendo com que se questionasse sobre se o paciente o trataria da mesma forma se não fosse negro. Por exemplo, uma vez em Torres Vedras observou uma criança, percebeu que estava cheia de febre e mandou medicá-la para que a febre baixasse e a pudesse observar depois. A temperatura subiu e a criança teve uma convulsão. “A avó entrou com a criança pela porta e insultava. Chamava nomes, mas não eram insultos raciais. Eu e uma colega estabilizámos a criança. A partir daí houve tantos insultos. A interpretação que fiz na altura, pela intensidade, foi que talvez fosse pela cor da pele. Apresentámos queixa à polícia. Na triagem o próprio polícia disse: ‘eu como pai se calhar também perdia a cabeça’…”, comenta. “Dissemos que não queríamos avançar com um processo mas que era só para sinalizar a família porque nos insultaram e perturbaram o nosso trabalho”.

O caso aconteceu há cinco anos e Pedro Costa refere-o como um “exemplo paradigmático”: não pode afirmar que foi racismo mas não descarta essa possibilidade.

Desta vez, tendo recebido insultos directos, avançou. Reconhece que o fez por ter condições socioeconómicas, algo que falta a muita gente. “Convém que as instituições não deixem que o factor económico seja inibidor” de queixas, defende.

Paradoxalmente, neste caso é a arguida que não tem condições económicas, mas nem por isso se coibiu de insultar um médico, com uma posição social superior e com o dobro da sua idade. “O que mais se vê é o racismo económico mas há a outra componente: o racismo da superioridade da cor da pele, independentemente da situação económica, que é o caso. ‘Sou economicamente inferior mas a cor da minha pele é superior à sua, seja o senhor médico, advogado, etc’ - é esse sentimento que essa senhora tem.”

Paradoxalmente, neste caso é a arguida que não tem condições económicas, mas nem por isso se coibiu de insultar um médico, com uma posição social superior e com o dobro da sua idade. “O que mais se vê é o racismo económico mas há a outra componente: o racismo da superioridade da cor da pele, independentemente da situação económica, que é o caso. ‘Sou economicamente inferior mas a cor da minha pele é superior à sua, seja o senhor médico, advogado, etc’ - é esse sentimento que essa senhora tem.”

"Senti-me humilhado"

Embora tenha acabado por “ganhar” o processo, Pedro Gomes da Costa vê várias fragilidades do sistema. Refere que a questão da cor da pele é tão específica que os próprios juízes têm dificuldades em fazer cumprir a lei. Não sentiu dos magistrados alguma resistência em reconhecer o racismo mas a arguida foi condenada apenas por injúria e difamação. E o médico acha que se não tivesse apresentado testemunhas que ouviram os insultos “seria difícil convencer um juiz” de que tinha sido “vítima de comentários racistas”: “Quando vamos a tribunal temos de fazer prova. A questão racial às vezes é tão velada que é difícil”. Dá um exemplo: “Se estiver nos transportes públicos e uma pessoa não quiser sentar-se ao meu lado porque sou ‘preto’, como se pode convencer um juiz disso? Mas todos sabemos porque a pessoa não se sentou… Essas coisas difíceis de provar dificultam que se levem tribunal.”

Para Pedro Costa seria então necessário proceder-se a uma revisão legislativa. “A questão racial deve ser diferente porque criou divisões, mortes, escravatura, situações que temos que travar. Dado o grau de violência que o racismo traz, e o grau de marginalização, tem que ser tratado de forma diferenciada.”

A lei deveria, assim, espelhar ainda a gravidade do acto: “A moldura penal é tão irrisória que até estimula o agressor. Não é tão punitivo que seja um dissuasor, e as pessoas vão navegando sem pudor. A condenação por injúria — e apenas agravada porque foi no meu local de trabalho — não é uma forma de combater o racismo.”

Sobre o episódio, o que se passou, e sobre a análise do ponto de vista legal este médico fala de forma objectiva. Mas o episódio teve efeitos a nível pessoal que foram sentidos não apenas por si mas também pela família, a mulher e os dois filhos. Tirou-lhe o sono, afectou as férias que já estavam marcadas dias depois. “Senti-me humilhado. Diminuído. Quando nos sentimos diminuídos, humilhados isso afecta a nossa relação com a sociedade. Somos um casal de cor diferente. Afectou a minha família, o nosso lar. E afectou a forma como acho que sou visto pelos colegas e pela comunidade. É uma situação pela qual não gostava de ter passado e essa senhora obrigou-me a passar”. Embora a solidariedade à sua volta tenha sido “total” afirma: “Nada apaga a forma como me senti atingido”.

No dia em que recebeu a sentença ligou ao pai e irmãos, que estão na Guiné-Bissau. “Não acreditavam que ia haver condenação. O tema racial é tão banalizado que nem as vítimas acreditam que quando vão a tribunal o caso tem pernas para andar. A lei tem de ser trabalhada para as pessoas saberem que há uma justiça para as vítimas de atitudes racistas. Podemos ter as ideologias que quisermos, mas há uma coisa sagrada do ponto de vista social que é o valor da vida e da dignidade - e os racistas põem isto em causa.”

Notícia alterada às 10h50, por lapso escrevemos que Pedro Gomes da Costa é pediatra, mas o médico que trabalha no serviço de pediatria das urgências do Hospital Beatriz Ângelo não tem essa especialidade