por Ricardo Nabais, in Sol
A crise chegou e instalou-se, nos léxicos e nas vidas europeias. Mas as medidas para a combater estão a agravá-la, diz João Rodrigues. O economista, nascido em Coimbra há 34 anos, é um dos muitos que proclamam que são possíveis vias alternativas para evitar a catástrofe que as políticas de austeridade vão revelando.
Formado pelo Instituto Superior de Economia e Gestão e doutorado pela Universidade de Manchester, Rodrigues estuda os dilemas da economia política europeia no Centro de Estudos Sociais (Coimbra) e explica-os, com um foco especial na crise, em diversos meios de comunicação, de que se destaca o blogue Ladrões de Bicicletas. Ao SOL explicou as diferentes vias possíveis para combater a crise, numa entrevista que antecede outra visão alternativa, expressa no documentário grego Catastroika, dos jornalistas Aris Chatzistefanou e Katerina Kitidi, ‘estreado’ recentemente online e noutra perspectiva mais de acordo com a situação actual, a visão dos portugueses João César das Neves e Francisco Sarsfield Cabral
Com a crise, as pessoas aceitaram que têm de fazer sacrifícios. Mas temos de os fazer porquê?
Há uma noção um pouco moralista que atribui as responsabilidades da crise a comportamentos desviantes dos cidadãos, como se as pessoas tivessem todas a mesma situação social, ou o mesmo grau de poder. Depois há uma ideia de que a crise se deve a comportamentos individuais, que haveria de corrigir através de diferentes respostas políticas, geralmente bastante penalizadoras. Este discurso tem consequências, tendo em conta as políticas que estão em curso, em primeiro lugar porque parte de um diagnóstico errado da situação portuguesa.
Mas não é verdade que nós não produzimos o suficiente para aquilo que fomos gastando ao longo dos anos?
É verdade que Portugal tem um problema de desequilíbrio externo. Esse processo explica-se pela natureza da integração europeia, que prejudicou os países menos apetrechados economicamente, que foram colocados a competir uns com os outros em condições de igualdade quando os pontos de partida eram profundamente desiguais.
A relação entre quem deve e o credor parece ser o argumento mais forte do controlo da crise pela austeridade.
É um argumento com mais senso comum do que realidade. As famílias não passaram a ter de repente um comportamento irresponsável e imoral. Porque, ao contrário do que se diz, antes da crise Portugal era o país da Europa com a mais baixa taxa de incumprimento do crédito. Agora estamos a promover o empreendedorismo, por exemplo. Essa é uma conversa que nunca mais termina… Numa entrevista, uma jornalista perguntava a um desses proponentes do empreendedorismo: ‘Imagine que eu sou uma pessoa empreendedora, com capacidade de iniciativa, mas não tenho capital. Como é que faço?’.
Quem é que vai financiar esse empreendedor?
Era um programa de TV, um espectáculo chocante, em que perguntavam também a uma operária desempregada do Vale do Ave por que é que ela não criava a sua própria empresa. Ela não tem capital!
Não só não terá capital como também terá dívidas.
E não tem bens que possam responder perante os credores para montar uma empresa. Se queremos promover o empreendedorismo, temos de criar mecanismos de acesso ao crédito.
Mesmo assim, as famílias não se deviam ter acautelado para tempos difíceis?
O que está a levar as famílias ao incumprimento e à insolvência é o simples facto, na maior parte dos casos, de elas estarem a perder rendimentos. Estão desempregadas, sofrem cortes salariais, e os negócios que montaram perdem procura. A economia está numa espécie de círculo vicioso em que os estados e a União Europeia, em vez de serem parte da solução, estão, pelo contrário, pelo corte de despesas, pelo corte de investimento. Estão a aprofundar esse círculo vicioso. Temos uma série de contratos com os funcionários públicos, com o conjunto dos cidadãos, e com os credores. Trata-se de saber, e isso é uma decisão política, quais os contratos que privilegiamos.
Mas temos de privilegiar os que têm o poder de deixar de nos financiar…
São aqueles que têm mais poder para impor custos. E um dos custos que pagaríamos, dizem-nos, se tentássemos reestruturar a dívida, era termos acesso ao financiamento. Ora estou convencido de que nem isso acontecerá. Precisamente porque não é do interesse de ninguém deixar cair um país como Portugal. Num cenário desses, poderíamos recuperar os instrumentos de soberania.
Como? Saindo do euro?
Saindo do euro, por exemplo. Para termos margem de manobra, do ponto de vista intelectual, não podemos colocar nenhum cenário de lado neste momento. A solução de sair do euro é muito mais drástica, obriga a uma reconfiguração. No fundo, em termos institucionais, seria um regresso a um tipo de arranjo que vigorava em Portugal na década de 80, não é assim tão distante. Nessa altura vivemos alegremente num contexto em que o Bloco Central podia financiar o Estado, em que havia a possibilidade da desvalorização cambial…
Mas tivemos cá o FMI duas vezes, com austeridade…
Mas a austeridade num contexto em que se controla a moeda é muito mais rápida. O sofrimento social também foi muito elevado nessa altura porque o país era mais pobre. Vivíamos pior. O país progrediu. Mas o máximo a que chegámos foi a pouco mais de 7% de desemprego na altura da última intervenção do FMI, que durou dois anos. Desvalorizámos a moeda e ao mesmo tempo o Estado tinha uma política de controlo de crédito e de capitais.
Hoje a saída da crise será mais demorada?
Por isso é que acho que comparar essa intervenção do FMI – como muita gente erradamente comparou no início da chamada ajuda – com a actual é errado. O processo actual vai ser muito mais lento e os níveis de desemprego vão subir. Isto não é surpreendente para ninguém, só é surpreendente para quem acredita nessa miragem de que assim conquistamos a confiança dos mercados. Não se conquista a confiança dos mercados, controla-se ou não os mercados. u
Não há outros cenários para uma solução menos drástica?
A austeridade pode ser superada à escala europeia com uma política de relançamento e com uma alteração progressiva das instituições, com a emissão de eurobonds, com o novo papel para o Parlamento Europeu de relançamento coordenado da economia à escala europeia. Esta seria a saída por cima. Temos de ter instrumentos de dívida e de reforço orçamental. Isso foi bloqueado em Maastricht [tratado assinado pelos países da UE em 1992] por causa das ideias neoliberais que presidiram a esta construção europeia.
Mas assinámos esses tratados…
Os próprios decisores políticos amarraram-se a essas decisões. E querem consolidá-las com estes tratados aberrantes, que resolvem o problema dos desequilíbrios na zona euro como se fosse um problema de estados mal comportados, de gente que precisa de ser vigiada e punida. Se os decisores políticos assumem esta visão das pessoas, é fácil perceber por que é que a troika não finge que não tem qualquer tipo de respeito pela soberania do governo português e por que o Governo português não tem qualquer respeito pelos cidadãos.
Os decisores políticos sempre viram a zona euro como algo de homogéneo e seguro?
Tanto este arranjo político como o sector bancário são apoiados por forças poderosas, que têm interesse, na minha opinião, em transferir as responsabilidades da crise para quem tem menos poder. E quem está numa situação mais vulnerável? Os estados periféricos em primeiro lugar e os cidadãos mais vulneráveis desses estados. Até temos um dos vigilantes da economia portuguesa na Comissão Europeia a dizer que o desemprego aumentou recentemente de forma inesperada – as consequências da austeridade só são inesperadas para quem está na Comissão Europeia – devido ao facto de os trabalhadores terem antecipado condições de subsídio de desemprego mais desfavoráveis no futuro e por isso terem antecipado o seu despedimento.
Isso é incompreensível.
São declarações inacreditáveis. Para o FMI – eles dizem isso nos relatórios para a Comissão Europeia – o problema de Portugal é um problema de direitos laborais que favorecem demasiado uma das partes. Olhando para a situação portuguesa e para a evolução dos salários, nenhum empresário sério nos diz que a lei é demasiado favorável aos trabalhadores. Os níveis salariais são muito mais baixos e os custos salariais são apenas uma pequena parte dos factores de produtividade. A minha única explicação para esta loucura é que isto corresponde a um projecto de quem quer aproveitar a crise para consolidar determinado tipo de estruturas.
Por exemplo?
No fundo, para transferir os custos do ajustamento da crise do sector financeiro para o resto da população. Por outro lado, o relaxamento em relação ao aumento do desemprego serve para fazer baixar os salários. É um mecanismo disciplinar. Se as taxas de desemprego são muito elevadas, os trabalhadores que têm emprego aceitam muito mais facilmente cortes ou estagnações salariais prolongados e até uma redução dos seus direitos laborais. Outro dos objectivos de alguns sectores económicos é ainda apanhar algum do património e dos recursos que os estados detêm, nomeadamente a segurança social e o serviço de saúde.
Como fizeram já em muitos países?
São grandes negócios, porque são garantidos. Quando temos alguém com poder e influência como Mario Draghi [actual presidente do Banco Central Europeu], que diz que o estado social está morto, o que ele está a dizer basicamente é ‘eu vou agir para tornar esta hipótese verdadeira’.
Mas o estado social é viável?
O estado social – a capacidade de redistribuir – tem inúmeras vantagens económicas e sociais. E é viável, capaz de gerar os bens e serviços que gerou (educação, saúde, infra-estruturas) num contexto económico que é compatível com esse estado social – uma situação em que há emprego e em que há direitos laborais. Numa situação de desemprego, a hipótese de ele ser inviável torna-se verdadeira.
Uma das saídas que tem sido indicada é o aumento da exportação para mercados emergentes…
Podemos exportar para o Brasil, que são 25% das exportações totais mas não conseguimos alterar essa situação estrutural. 75% das nossas exportações vão para onde é perto.
O que parece natural…
Sim. Uma coisa boa da integração europeia é ter corrigido esta aberração histórica que era Portugal não ter praticamente relações com a sua economia ao lado, a Espanha. Hoje exportamos 25% para lá e é assim que deve ser: estamos a entrar em zonas que são próximas, que têm algumas características em comum, o que é bom até do ponto de vista ambiental e de custos de transporte.
Mesmo assim, se não fossem as exportações, talvez estivéssemos pior.
Não podemos exportar para Marte. A zona euro tem tido uma performance medíocre porque tem uma contracção da sua procura interna, do seu mercado interno, que foi gerada por uma pressão demasiado grande sobre os assalariados. Com a austeridade, estamos a tentar imitar a Alemanha, onde os trabalhadores passaram por uma estagnação salarial durante uma década, e foi o país desenvolvido que teve um dos maiores aumentos da pobreza. É como todas as pessoas que seguem o mesmo comportamento, por lhes parecer racional. Os espanhóis têm de fazer a mesma coisa, os franceses também, mas as exportações de uns são as importações de outros.
Entretanto, a Europa enfrentou algumas mudanças eleitorais. François Hollande está mesmo em condições de alterar o tratado europeu e aplicar políticas de crescimento económico em França?
Hollande foi eleito com base em duas ideias fortes e válidas: a austeridade não é uma inevitabilidade e os mercados financeiros têm de ser controlados pelo poder democrático. Se quiser transformar estas ideias em políticas terá de construir uma aliança à escala europeia, e terá de fazer tudo para alterar a configuração institucional da moeda única, do funcionamento do Banco Central à inexistência de instituições europeias capazes de fomentar políticas de relançamento económico.
O tal contágio das promessas eleitorais de Hollande a outros países europeus é possível? E os resultados na Grécia, apesar de ter ganho um partido pró-troika, mudam a perspectiva das coisas?
Na Grécia, apesar de ter ganho um partido conservador, a pressão vai levá-lo a querer renegociar os termos do plano de austeridade. A eleição de Hollande exprimiu, por outro lado, a rejeição popular da austeridade. O contágio é indispensável para uma aliança social e de países que confronte o bloco conservador-neoliberal liderado pelo Governo alemão. Dado o fracasso da política em curso tal é hoje mais fácil. Resta saber se ainda há tempo...
Por outro lado, apesar das excepções, as pessoas não só parecem aceitar a ideia da austeridade como até incentivá-la. Os partidos no poder na Europa legitimam em geral as políticas de austeridade.
As pessoas não vêem alternativas. Há também a ideia, muito interiorizada, de que estamos demasiado dependentes de terceiros. Temos tendências contraditórias. Até agora, a direita, em parte por demissão da social-democracia, tem conseguido apresentar este caminho como um caminho inevitável. Mas ele está destinado a tais fracassos económicos e sociais que terá de ser revertido. Quando será revertido? Depende muito das respostas políticas, do clique que muda ideologicamente, por aquilo que sabemos desta crise e das anteriores.
Teríamos de reformular uma série de mecanismos de controlo do Estado…
Exactamente. Controlo. Temos uma economia de ameaça permanente, que só funciona num contexto de circulação irrestrita de capitais e estamos em condições de colocar trabalhadores e estados de diferentes países uns contra os outros. Não é por acaso que as pessoas que têm muito dinheiro e que não gostam de pagar impostos tendem a dizer que vão para outro lado. O grupo Jerónimo Martins usa a Holanda para fazer planeamento fiscal e pressiona aqui o Governo para alterar o sistema fiscal, que já tem os desequilíbrios que conhecemos.
Até vir o tal clique ideológico de que falava, há fantasmas da História que nos podem perseguir. Um deles é a votação maciça na extrema-direita como aconteceu na grande crise alemã de 1920.
O reforço de lógicas nacionalistas fechadas é aquilo que tem acompanhado sempre, na minha opinião, o fracasso das utopias liberais. Há aqui um paradoxo: aqueles que mais defendem a integração económica sem controlo são os piores inimigos da integração económica que é política, social e economicamente desejável. E até de ordem cultural. O nacionalismo combate-se viajando. Trata-se de fechar da melhor forma que se conseguir esse parêntesis liberal.
E como se fecha esse parêntesis?
Acho que temos de entrar numa globalização muito mais desglobalizada, ou seja, com espaços regionalmente integrados mas com fluxos comerciais e financeiros muito menos intensos. Acho que isto não tem nada de particularmente subversivo. As escolhas democráticas tendem a favorecer resultados em termos de igualdade e de acesso das pessoas a bens sem que esse acesso não seja determinado pela capacidade de pagar.
Esses bens são a saúde, a educação…
A saúde, a educação, todo um conjunto de infra-estruturas sociais, de espaços e transportes públicos. E as pessoas têm também de ter a oportunidade, em situações de pleno emprego, de poderem escolher a que tipo de actividade se dedicam.
Portugal vai ter essa capacidade?
É essa a questão a que não consigo responder. Gostava de ter a resposta [risos]. l