Por Luís Claro, in iOnline
Ex-líder do PS defende que Portugal não pode ficar “preso” a um processo europeu que nos condena à pobreza
Ferro Rodrigues sempre foi um europeísta, mas alerta que o impasse na União Europeia e a ausência de soluções para os países em dificuldades podem conduzir ao fim do euro. Numa entrevista feita esta semana no seu gabinete no parlamento, o ex-líder do PS sugere que gostaria de ter “uma actividade mais forte” dentro do partido e defende que os socialistas devem ser mais duros na resposta aos ataques que a maioria PSD/CDS faz ao PS. Em relação ao futuro, o ex-ministro do Trabalho não exclui uma crise política, mas avisa que o PS não deve aceitar ir para o governo sem eleições.
O Tribunal Constitucional decidiu inviabilizar os cortes nos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas. Concordou com a decisão de alguns deputados do PS de enviar o diploma para o Constitucional?
Não me passava pela cabeça que pudesse haver uma decisão tomada a meio do ano que não tivesse efeitos no próprio ano de 2012. E pareceu-me que seria um perigo muito grande que houvesse uma decisão que tivesse de levar a alterações concretas no Orçamento deste ano. Foi por isso que não me associei ao pedido de fiscalização sucessiva. Mas acharia muito bem que o Presidente da República o tivesse feito, dentro dos seus poderes. Até porque havia esse alerta dado pelo grupo parlamentar do PS.
É incoerente a decisão do Tribunal Constitucional?
Não quero fazer juízos de valor sobre isso. É uma decisão jurídica. Mas parece-me que, do ponto de vista prático, impõe que haja alterações para 2013 e 2014. E eu temo, depois daquilo que o FMI veio dizer, que se essas alterações forem feitas pelo lado da despesa castiguem fortemente a classe média nos acessos à saúde, à educação, à segurança social e aos bens públicos em geral. E esse é um aspecto em relação ao qual estamos a chegar aos limites.
Preferia o alargamento dos cortes nos subsídios de férias e de Natal aos privados?
Não, não é alargar. Eu sempre defendi que não estava a ser respeitado o princípio da igualdade, porque estavam a ser pedidos sacrifícios apenas a uma parte da população. E, portanto, é fundamental conseguir que, se os sacrifícios forem necessários, eles sejam distribuídos de uma forma justa entre, não apenas salários, mas também rendas, juros e lucros. E, no caso dos salários, entre todos. Mas é preciso ir mais longe e a grande questão é que este programa não está a ter sucesso, como se verifica pela execução orçamental do primeiro trimestre.
Está convencido de que, se o programa não fosse alterado, os resultados seriam melhores?
Não vale a pena fazer cenários sobre o passado. O que é um facto é que, com as alterações e a radicalização do programa, os resultados são péssimos. São péssimos em termos sociais, com o disparo brutal do desemprego, e são péssimos em termos financeiros e económicos.
O que pode fazer-se nesta altura? Pedir mais um ano, alterar o programa de ajustamento…
Julgo que há uma vontade por parte da troika de compensar um governo que tem sido mais troikista que ela própria. Ou seja, julgo que a troika, ao avaliar o programa a Portugal, está a avaliar-se a si mesma. Ao contrário da Grécia, não pode argumentar que não foram cumpridos os aspectos básicos do acordo. Aqui em Portugal até foram mais longe do que o próprio programa e admito que haja uma vontade, da parte da troika, de facilitar o ajustamento necessário. Se isso é suficiente... acho que não.
Não acredita que é possível, com mudanças no Memorando, inverter este caminho e conseguir voltar a crescer economicamente a níveis razoáveis e que contribuam, por exemplo, para a redução do desemprego?
O problema é mais profundo e radica na incapacidade que a Europa tem vindo a demonstrar de dar resposta à crise das dívidas soberanas e de conseguir encontrar um modelo de crescimento, que é a única forma como seria possível resolver a prazo os problemas das dívidas e dos défices. E, por outro lado, em Portugal continua a argumentar-se com falácias e com mistificações para justificar estas políticas. A primeira mistificação é que a responsabilidade pela situação de partida é do governo anterior e não uma responsabilidade da crise internacional.
O governo de José Sócrates não tem também responsabilidades?
Isso é negado hoje pelos exemplos que nós vemos em todos os países da União Europeia que estão a atravessar dificuldades semelhantes. Uma segunda mistificação é a de dizer – e todos os dias se diz nas bancadas da maioria – que nós estamos a cumprir o programa que o governo do PS acordou. Não é verdade. O programa foi alterado sucessivas vezes e é completamente diferente. Estas mistificações deveriam ter uma resposta bastante mais incisiva.
Da parte do PS?
Sim, da parte do PS. Muitas vezes há essa resposta, mas não aparece com a mesma contundência que o ataque que existe. Há um misto, por parte deste governo, de tentar atrair o PS para uma espécie de muleta de centro-esquerda para uma política de direita e, ao mesmo tempo, tentar destruir toda a imagem e a história recente do PS. E isso tem de ser combatido.
O PS tem caído nessa armadilha de ser uma espécie de muleta do governo ao mesmo tempo que é atacado pela direita?
Penso que António José Seguro tem vindo a demonstrar cada vez mais firmeza e cada vez maior capacidade de afirmação. O grupo parlamentar e o partido estão hoje mais unidos e mais fortes do que quando a legislatura começou, mas ainda se pode ir mais longe.
Mais longe como?
No sentido de perceber que, para avançar para o futuro, é preciso ter um balanço correcto do passado e não deixar que sejam os nossos adversários a fazer o único balanço sobre o passado.
O PS teve bastantes expectativas na vitória de François Hollande e sabemos que alguns dos mais sérios problemas de Portugal dificilmente se resolverão sem um contributo forte da União Europeia. Encontra actualmente na União Europeia capacidade para encontrar soluções para esta crise?
Nós estamos numa fase terrível da União Europeia. Não se percebe até que ponto se está em construção ou em desconstrução da União Europeia. A Espanha, a Itália e a França têm hoje um papel decisivo como contrapeso possível a uma Alemanha que cada vez parece menos europeia. A União Europeia – e essa é a grande questão que se coloca – foi construída para o crescimento e para o progresso económico e social. Se se verificar a curto ou médio prazo, daqui a três ou quatro anos, que a União Europeia está metida numa espécie de armadilha infernal em que não tem outra hipótese que não seja a recessão – e corre-se esse risco com este tratado e com a lógica que preside aos adiamentos sucessivos das grandes decisões sobre a dívida soberana e sobre os métodos mais concretos para o crescimento –, eu acho que, se começar a estar na ordem do dia um desmantelamento com regras da zona euro ou mesmo da União Europeia, Portugal tem de estar na primeira fila. Nós não podemos ficar presos a um processo que nos condene à pobreza, que nos condene a taxas de desemprego entre os 15 e os 20%. Isso é inaceitável.
Hollande não tem força para inverter essa situação?
Nós temos uma situação nova na União Europeia com a vitória do Hollande. E ele tem um papel a desempenhar para que haja uma saída para este sistema em que a austeridade leva à recessão e ao desmantelamento de todas as conquistas sociais. Esperemos que o consiga fazer. E tem neste momento a Espanha e a Itália em situações muito difíceis do ponto de vista financeiro, mas são países com um poder no contexto europeu bastante superior ao da Grécia, Portugal ou Irlanda. Estamos aqui num ponto de rebuçado, como se costuma dizer, em que é necessário ver como é que agem, nos próximos meses, os governos desses países.
Embora a Alemanha tenha muitas resistências.
Se esta lógica inaceitável de caminho para uma recessão fortíssima e estrutural nos países do sul da Europa se mantiver a médio prazo, ao mesmo tempo que a Alemanha continua a beneficiar de taxas de juro negativas para se financiar, temos de começar a pensar noutras alternativas. Eu orgulho-me muito de ser dos mais europeístas entre os dirigentes mais antigos do PS, mas não posso admitir que a Europa – que foi a esperança da democracia e do desenvolvimento português – possa vir a ser o coveiro da democracia e do nosso crescimento económico.
Admite a hipótese de sairmos da União Europeia?
Não. Mas penso que há um momento em que, para vários países, o problema de um desmantelamento organizado do euro pode vir a ser uma questão que se coloque na ordem do dia. Não proponho nunca que Portugal se ponha à margem dos outros países. Mas podemos chegar a um ponto em que não haja outro caminho que não seja um desmantelamento organizado. Nomeadamente, se continuarmos a verificar que o rumo que é proposto pela Alemanha e por outros países do norte da Europa – como a Finlândia ou como a Holanda – é um caminho em que a solidariedade e a coesão europeia deixam de estar em primeiro plano e passa a estar em primeiro plano um modelo que arrastará o sul da Europa e uma parte do Ocidente europeu para muitos anos de recessão.
Essa solução levaria ao fim da zona euro.
Sim. Pelo menos a uma suspensão. Nem que fosse temporária.
E naquilo que depende de nós, o que é que podemos fazer, nomeadamente em relação ao programa da troika?
O governo devia aproveitar esta declaração de inconstitucionalidade (dos cortes dos subsídios de férias e de Natal dos funcionários públicos e pensionistas) para rever toda a lógica deste programa. Para o tornar mais equilibrado, com uma partilha de sacrifícios correcta e compatível com mais crescimento económico. Caso contrário, estamos a sacrificar um determinado modelo social em troca de não se sabe bem o quê, em troca de um precipício em que não se sabe como é que as pessoas vão viver daqui a uns anos.
É o que está a acontecer?
É e há uma coisa que é muito importante. A democracia em Portugal alicerçou--se e fortaleceu-se porque as pessoas, em geral, percebiam que havia um dinamismo que lhes permitia ter acesso aos bens públicos fundamentais. Se houver uma parte da população e da classe média que se sente marginalizada no acesso a cuidados de saúde, no acesso à educação e à possibilidade de promoção social, que veja o futuro com uma completa insegurança por os sistemas de segurança social deixarem de ter a força que tinham, temo que seja o próprio sistema democrático a estar em causa. Há péssimos sinais.
Estamos a abrir caminho a uma nova ditadura?
Há muitas formas de os regimes irem caindo e apodrecendo por dentro ou criando mecanismos em que deixam de ter o poder real em termos políticos. E aquilo que se verifica em Portugal é que, hoje em dia, o poder político das instituições democráticas é muito limitado. O poder político do Presidente da República, do governo ou do parlamento são muito limitados perante os mercados, perante a troika, perante a importância do capital financeiro à escala internacional.
Faz agora um ano que António José Seguro foi eleito para a liderança do PS. Foram evidentes algumas divergências dentro do partido. Isso está ultrapassado?
Ele tem feito um esforço grande para ter um grupo parlamentar com maior participação de todos, mas nessa vertente ainda há bastante a fazer.
No seu caso, e tendo em conta a experiência que tem, sente-se suficientemente aproveitado dentro do PS?
Estou sempre à disposição do grupo parlamentar para as tarefas, no quadro do plenário, que me sejam sugeridas. E estou à disposição do secretário-geral para ter uma actividade mais forte na próxima sessão legislativa. A riqueza do PS está também na diversidade e na experiência dos seus membros e dos seus deputados e é possível utilizá-los mais e melhor.
O PS tem eleições directas e um congresso no próximo ano. Não sabemos se aparecerá alguma outra candidatura. Na sua opinião, Seguro deve ser o candidato do PS nas próximas legislativas?
O que está colocado, neste momento, é esse cenário. Será certamente muito melhor primeiro-ministro do que Passos Coelho. Julgo que o calendário eleitoral que existe vai no sentido de permitir que o actual secretário-geral do PS se vá afirmando cada vez com mais força como candidato a primeiro-ministro.
Não é desejável que apareça outra candidatura, como parecem querer alguns socialistas?
As coisas na política só são desejáveis quando são realistas. Essa opção não é realista, e penso que é possível, com António José Seguro e com equipas que aproveitem o máximo potencial de todos os deputados e de todos dentro do PS, construir uma alternativa para o futuro.
Num cenário de crise, o papel do Presidente da República pode vir a revelar-se fundamental. Como vê a actuação de Cavaco neste momento difícil do país?
O Presidente da República teve uma atitude pública muito diferente no final do governo de José Sócrates e no arranque desta coligação. Poderia ter tido uma atitude mais activa, mais preventiva. Julgo que em matéria de constitucionalidade das leis não pode haver motivos de oportunidade. Se há dúvidas sobre a constitucionalidade, deve enviar para o Tribunal Constitucional. Até porque pode enviar e a resposta do Constitucional ser muito mais rápida. Ele deve partir para uma segunda fase do seu mandato com uma maior capacidade de intervenção atempada e preventiva.
No dia 5 de Outubro vai haver um congresso que pretende reunir a esquerda. Acha que pode ser uma boa oportunidade para tentar uma aproximação entre as forças mais à esquerda?
É uma oportunidade perdida. Havia todo o interesse em fazer um debate aberto entre todos aqueles que não se revêem numa política de austeridade que gera uma espiral recessiva e tentar encontrar alternativas. Ouvir toda a gente. Personalidades, partidos… Agora, a maneira como essa reunião foi lançada foi de tal maneira limitada e obedecendo a uma agenda claramente de um sector partidário que a torna quase inevitavelmente uma oportunidade perdida.
Já se fala muito nas presidenciais. Inclui--se nas personalidades de esquerda que podem vir a candidatar-se?
Falar nas presidenciais neste momento é absurdo. Vamos ter eleições em 2016 e sabemos lá em que estado estará o país – esperemos que melhor do que agora. Mas a colocação dessa questão não tem nenhuma prioridade. A prioridade é tentar sair dessa crise. Nunca fiz nenhuma previsão sobre a evolução da minha carreira política. Fui secretário-geral do PS sem nunca pensar vir a sê-lo. Agora sou vice-presidente da Assembleia da República e gosto muito do que estou a fazer. Sabe-se lá, daqui a três anos, onde é que estamos todos.
Uma das medidas mais emblemáticas que implementou como ministro foi o rendimento mínimo garantido. O governo tem feito algumas alterações a este modelo. Como vê, por exemplo, a possibilidade de os beneficiários passarem a trabalhar para o Estado?
Os contratos para que as pessoas tenham inserção social estão previstos desde o início. Espero é que não se chegue à conclusão de que as pessoas preferiram ficar na miséria a fazer trabalhos forçados. Mas sempre houve uma tendência da direita de transformar direitos em caridade de uma forma encapotada.