21.1.14

Reportagem. Isto não é lixo, é fruta feia

Por Carolina Pelicano Falcão, in iOnline

Isabel Soares criou uma cooperativa que se dedica a recolher os alimentos que os agricultores não conseguem vender nos mercados e nas grandes superfícies por não corresponderem aos padrões. Até agora a Fruta Feia evitou o desperdício de 4,2 toneladas de alimentos

As pequenas caixas de madeira vão-se enfileirando no chão, ao longo do grande salão da Casa Independente, no Largo do Intendente em Lisboa, que à noite se enche com gente que quer beber um copo e ouvir música. Ali, entre o grande espelho pregado à parede, o candelabro, a bola de espelhos e o palco com um gigante leopardo pintado, a fruta feia e os legumes com excesso de peso - como a courgette com o dobro do tamanho que não cabe nas cuvetes de transporte, ou a couve-coração que parece ter tido um desgosto amoroso e ficaria para último na prateleira - vão-se acumulando nas caixas. Aquilo que iria para o lixo é agora convertido em alimento.

É já perto das três horas da tarde quando Isabel Soares vai buscar a balança, pronta para começar a pesar e a distribuir pelas ditas caixas os alimentos recolhidos na mesma manhã. A couve-coração, as courgettes, as cebolas, as maçãs, o feijão-verde, os brócolos, as laranjas e as physalis, ou, melhor dizendo, um colorido de vegetais saudáveis que são recusados pelas grandes superfícies. Estes alimentos não são comercializados porque não têm o tamanho padronizado, ou, como dizem, "têm o calibre fora do standard", ou ainda porque nasceram deformados.

Há cerca de seis semanas que todas as segundas-feiras a cooperativa Fruta Feia repete este ritual, num combate ao desperdício alimentar. Mas para percebermos como tudo isto se processa vamos recuar a Novembro de 2013.

estética Tudo começou há sete anos, quando Isabel vivia em Barcelona, onde trabalhava como engenheira do ambiente. "Comecei a ver muitos documentários que falavam sobre a questão do desperdício alimentar e indignava-me muito. Pensei que tinha de fazer alguma coisa a respeito do assunto." Depois, em conversa com um tio agricultor, Isabel percebeu que isso do desperdício não era só coisa de documentário. "O meu tio é produtor de pêra e contou-me que, por exemplo, de toda a pêra que tinha naquele momento, 40% ia ficar na árvore por não obedecer ao calibre requerido."

Tudo isto coincidiu ainda com a altura em que Isabel descobriu um concurso promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian na área do empreendedorismo social - "Ideias de Origem Portuguesa" (ideiasdeorigemportuguesa.org). Muitos estudos e prospecções de mercado depois - um trabalho feito entre Janeiro e Julho de 2013 -, Isabel deixava Barcelona e voltava a Lisboa para criar o projecto Fruta Feia, que ganhou o segundo prémio do referido concurso, ou seja, uma bolsa de 15 mil euros. Além do prémio, o projecto esteve em crowdfounding durante dois meses, tendo conseguido cerca de 5 mil euros.

A ideia central da Fruta Feia é "resolver algo que não está bem na sociedade", diz a sua criadora. Assim, o que a cooperativa faz é estabelecer uma ponte directa entre agricultores e consumidores. Trocando por miúdos, fazer chegar os produtos agrícolas que os produtores não conseguem vender às grandes superfícies aos clientes, evitando que sejam deitados ao lixo. Em seis semanas de funcionamento, a Fruta Feia já evitou o desperdício de 4,2 toneladas de alimentos. Mas afinal como é que tudo se processa?

oeste A recolha feita pela Fruta Feia é um trabalho de formiguinha. Todas as segundas-feiras por volta das oito horas, Isabel, acompanhada pela catalã Anna Ollé e pelo italiano Andrea Battochi, faz--se à estrada em direcção à Região Oeste, onde a cooperativa tem uma rede de 19 agricultores. Cada semana são visitados alguns destes agricultores, que vendem à Fruta Feia precisamente aquilo que seria para deitar fora. "Em Portugal ainda se pensa que quanto maior melhor. Mas na verdade quanto maior for, por exemplo, a fruta, mais células dilatadas tem e portanto menos sabor", explica-nos o Sr. Clímaco na primeira cooperativa visitada. Aqui foram buscar maçã.

Todas as semanas os produtos recolhidos vêm de diferentes agricultores, para não repetir a receita da semana anterior. Claro que, como se trata de aproveitar o que não é vendido pelos agricultores, às vezes os grelos que se encomendam podem tornar-se brócolos, como aconteceu com a recolha feita na produção de D. Isabel, em Gentias. "Tínhamos pedido grelos, mas como a Isabel os vendeu todos já não tinha. Então, em compensação, levamos brócolos", explica Isabel.

À medida que vai fazendo as recolhas do dia, que nesta segunda-feira incluíram ainda dois agricultores em Cambaia e no Sobreiro, a Fruta Feia paga a sua despesa. "Normalmente as grandes superfícies pagam aos agricultores a 90 dias. Nós pagamos na hora", explica a engenheira alimentar enquanto acerta contas com D. Isabel. A Fruta Feia negoceia sempre o preço com os agricultores, e, ainda que os vegetais e as frutas fora do padrão se vendam mais baratos que os ditos normais, a cooperativa faz questão de que o preço a pagar cubra sempre os custos de produção, uma prática pouco comum. A título de exemplo, contam- -nos que a Compal compra a laranja a 1 cêntimo o quilo. "Muitas vezes os agricultores vendem a esses preços só mesmo para não deixarem a fruta apodrecer nas árvores. Mas a nossa ideia é também ajudá-los", explica Isabel. Com a carrinha da Fruta Feia quase cheia, está na hora de voltar a Lisboa, para completar o ciclo da luta contra o desperdício alimentar.

aqui não há clientes Quando pensou neste projecto, Isabel teve de equacionar qual seria a melhor formar de dar um destino aos alimentos recolhidos. Uma loja estaria fora de questão, pois não se poderia garantir que tudo fosse escoado, e isso "seria trabalharmos contra a nossa própria causa", explica. Então procurou um sítio que lhe cedesse espaço para, uma vez por semana, receber os sócios da Fruta Feia. E encontrou guarida na Casa Independente, em Lisboa. No fundo, tudo funciona como uma cooperativa normal. Há uma rede de sócios, que se inscrevem para receber os cabazes que todas as semanas a Fruta Feia elabora com os produtos recolhidos. Há dois tipos de cabazes: o de 5 a 7 quilos, que custa 3,5€, e o de 7 a 9 quilos, que custa 7€. Neste momento já são 150 sócios e, com preços tão apelativos, não é de estranhar que tenham mais de 220 em lista de espera. "Para já ainda não temos capacidade logística para responder à procura que tem tido", explica. Ter um sistema de sócios é ainda a melhor forma de garantir que tudo o que recolhem vai ser consumido. Quanto ao consumidor-tipo desta iniciativa, a diversidade não é pouca. "Aqui há de tudo, de jovens a velhinhos que todas as semanas vêm buscar o seu cabaz. Numa cidade como Lisboa não pensei que tantas pessoas se comprometessem com o projecto, mas está a acontecer." Se não morar na capital, nada tema, porque Isabel Soares pensa alargar a Fruta Feia a outros bairros da cidade e criar uma rede por todo o país.