Se o ministério, nos programas e na acção, se ativer às matérias de cidadania que são amplamente consensuais, não haverá certamente problema. Mas se se vestir de Grande Educador e se puser ao serviço de correntes que animam controvérsia contínua suscita naturalmente a rejeição de muitos pais.
No célebre filme de Gary Cooper, o comboio apitou três vezes. No último artigo de Rui Tavares, o comboio também apitou três vezes. Devia ter apitado quatro. Apitou para os muçulmanos da mesquita. Apitou para os ciganos. E apitou para os imigrantes. Devia ter apitado também para os outros, a gente que se manifestou.
A cada apito, Rui Tavares desculpou-se a muçulmanos, ciganos e imigrantes, por os mencionar ao engano. Três vezes se desculpou. Faltou desculpar-se também a Cavaco Silva, Passos Coelho e D. Manuel Clemente, bem como às dezenas de outros que omitiu, subscritores do abaixo-assinado pelas liberdades de educação. Eu também sou um desta gente.
O artigo de Rui Tavares, pessoa que respeito como espírito livre, mostra bem como é resvaladiça a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, quer na questão de fundo, quer pelo caso concreto que, após vários incidentes dispersos, projectou o escândalo a nível nacional. Tão resvaladiço e tão envolto em preconceito que apeteceu pisar a fronteira do “racismo e xenofobia”. Rui Tavares dirá certamente que não quis estigmatizar. Mas, sob pena de o argumento não funcionar, ele deslizou anonimamente para dentro da multidão unânime que rejeitaria as exigências quanto à educação dos filhos — e, em subtexto, lá estão os estereótipos que imporiam a recusa da “deriva comunitarista” (os muçulmanos), da “discriminação de género” (os ciganos) e da evasão a “integrar-se” (os imigrantes).
Aqui, ecoa o velho poema, dramático: primeiro, vieram pelos muçulmanos; depois, vieram pelos ciganos; a seguir, vieram pelos imigrantes; e, enfim, vieram pelos outros, esta gente. Ora, em direitos fundamentais, é igual para todos: não há muçulmano, nem imigrante, não há cigano, nem “outros” — todos somos “nós”.
Isto não tem a ver com subtextos a que podemos recorrer para impressionar frisas e camarotes. Isto tem a ver com cada questão concreta que se ponha. Se muçulmanos, ciganos e imigrantes — até negros, veja-se lá, e índios, mais indianos e os da loja do chinês — assinarem o abaixo-assinado das liberdades de educação têm todo o direito, porque, como pais, têm o mesmo direito fundamental às liberdades de educação em Portugal. Aí, eu também sou muçulmano, cigano, imigrante. E, na mesma linha, é batota apontar Cavaco Silva, Passos Coelho e D. Manuel Clemente para, em subtexto, atrair antipatias político-partidárias ou sugerir uma fractura religiosa. Não é questão religiosa. É questão de cidadania, ainda que os cidadãos, como cidadãos livres, tenham direito à liberdade religiosa e à liberdade de consciência. Não esquecer.
A primazia dos pais quanto à educação dos filhos — com a consequente posição subsidiária do Estado (presta um serviço, não ordena) – é matéria de direito natural, abundantemente consagrada em declarações internacionais de direitos, em textos constitucionais e nas leis. Em boa fé e com recta intenção, não sofre a mais pequena dúvida e não é possível opor-se-lhe qualquer reserva. Basta ler a Constituição. E também não oferece a menor dúvida o ensino obrigatório, no interesse de todas as crianças e jovens serem fluentes a ler, escrever e contar, consolidarem ciências e humanidades, ganharem saberes para a realização pessoal e profissional na vida adulta.
É falácia absoluta, quanto à Educação para a Cidadania, convocar, em paralelo, disciplinas como Literatura, Português, Matemática ou outras. Não são estas questões que estão colocadas e todas se afigurariam disparatadas. Ouvi perguntar: a cidadania não é obrigatória? Também não é isso, até porque a cidadania é livre. A questão é saber se, aproveitando-se da ambiguidade do âmbito de uma matéria, o Estado pode aproveitar para despejar os conteúdos que lhe apetecer, a fim de “doutrinar” os alunos. Não pode: a Constituição proíbe-o. Tudo depende do bom senso. Se o ministério, nos programas e na acção, se ativer às matérias de cidadania que são amplamente consensuais (e há tantas para cuidar…), não haverá certamente problema. Mas se o ministério se vestir de Grande Educador e se puser ao serviço de correntes que animam controvérsia contínua, incluindo temas que incendeiam acções de rua e confrontos eleitorais, suscita naturalmente a rejeição de muitos pais e pode, no limite, estragar a escola. Estes pais têm de ser respeitados. Não há volta a dar. Em nome dos filhos, é deles a liberdade, o direito e também o dever.
Rui Tavares evita o caso concreto das crianças de Famalicão. Não pode. Porque este caso, horrível, é a realidade a gritar, que temos de escutar e ver. Estes pais nem recusaram por inteiro a frequência da disciplina não essencial; exigiram ser informados previamente da matéria das aulas, a fim de decidirem em concreto. Nunca o foram; e o problema evoluiu como conhecido.
O radicalismo sectário do ministério atingiu o clímax na decisão do secretário de Estado de fazer chumbar as duas crianças (alunos de alto aproveitamento, exemplares no conceito dos professores) por dois anos: 2019/20 e, retroativamente, 2018/19. Não havia de certeza um só país no mundo em que alunos tenham sido reprovados por dois anos. Agora, já há: Portugal, graças ao secretário de Estado João Costa. Se houvesse no PISA uma tabela para graduar os países com reprovações por tempo a dobrar, Portugal, enfim, apareceria em primeiro lugar.
O processo destas duas crianças merece ser lido e divulgado: é um monumento de extremismo autocrático, o abuso do triturador burocrático para um exercício de crueldade administrativa repetida. Quem é capaz de chumbar duas crianças de 12 e 14 anos, fazendo-as recuar ao tempo escolar dos 10 e dos 12? Quem é capaz deste flagelo administrativo e desta tentativa de humilhação? Que ideia foi a de mandar estes pais à comissão de protecção de menores? Vá lá o secretário de Estado! Vá lá explicar à comissão que furtar dois anos à vida de duas crianças, por ordem do poder, é a decisão “no melhor interesse da criança”, como a lei determina.
O Ministério da Educação mostrou que não tem a menor competência para cuidar da Educação para a Cidadania. Não faz ideia do que é cidadania activa, nem a respeita. Persegue-a. O poder democrático não está na ponta da caneta do mandarim. Está na justiça e na liberdade da gente livre. É por isso que, no limite, a Constituição também prescreve o direito de resistência.