18.9.20

O que vai acontecer quando a gripe encontrar a covid?

Andrea Cunha Freitas, in Público on-line

O Inverno traz a época de gripe para se juntar à pandemia da covid-19 e traz também uma série de dúvidas sobre a possível interacção destes dois vírus. No entanto, já se sabe que a vacina da gripe e as medidas que todos estamos a cumprir para o controlo da covid-19 podem atenuar o impacto desta combinação pouco saudável.

Os cientistas já inventaram uma nova palavra para o novo medo: “twindemic”. O momento em que a época da gripe encontra a pandemia da covid-19 tem sido muito discutido entre os especialistas. É preciso antecipar, na medida do possível, como será a interacção entre estes dois vírus respiratórios para prevenir uma sobrecarga nos hospitais e cuidados de saúde primários. Ainda que se espere que as medidas em vigor por causa da covid-19 – máscaras, higiene e distanciamento – e a vacina disponível para a gripe ajudem a atenuar a época de gripe neste Inverno, há outros possíveis problemas como o “dilema do diagnóstico” que se prevê com doenças que têm muitos sintomas em comum.

Anda por aí a circular uma tabela de sintomas que pretende ajudar o cidadão comum a distinguir os sintomas da covid, da gripe e da constipação. No entanto, a esmagadora maioria dos cientistas não subscreve este autodiagnóstico. Em caso de sintomas – por mais ligeiros que pareçam ser – a melhor opção é mesmo consultar um médico. Será o médico que vai ter de lidar com este “dilema do diagnóstico” e a tarefa adivinha-se muito difícil. Há sintomas comuns entre as várias doenças respiratórias que podem surgir neste Inverno e, por vezes, a mesma doença pode manifestar-se de forma diferente nas pessoas. Então, como facilitar o diagnóstico?

“Muitas manifestações clínicas da covid-19 são comuns a outras infecções respiratórias como a gripe. Os testes moleculares para diagnóstico de SARS-CoV-2 permitem distinguir os casos que são efectivamente covida-19”, esclarece o imunologista Luís Graça, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Segundo explica, “o diagnóstico molecular de infecção por SARS-CoV-2 (para diagnóstico de covid-19) não tem reactividade cruzada com influenza (vírus da gripe)”. O teste, adianta ainda, consiste na detecção de dois segmentos genéticos que são específicos do coronavírus, e o controlo é um segmento genético humano (que deverá ser positivo em todas as pessoas). “O teste é positivo quando se detecta a presença dos dois segmentos genéticos do vírus. É inconclusivo quando apenas um dos segmentos é amplificado, ou quando o controlo positivo (o segmento humano) não é detectado. Não havendo sobreposição entre as sequências genéticas do SARS-CoV-2 e do vírus da influenza, o teste não será positivo em infecções com o vírus da gripe”, acrescenta, sublinhando que “os testes de diagnóstico são fiáveis nestas circunstâncias”.

O exemplo do Sul com menos gripe

Para os que vivem no hemisfério norte a época de gripe está a ficar cada vez mais próxima no calendário e, por isso, coloca-se a questão: o que é que isso significa para a covid-19? Há muitas dúvidas. A co-infecção é possível ou provável? A interacção entre estes dois vírus será marcada por uma cooperação ou competição? A gripe aliada à covid-19 pode agravar os sintomas? Muitas das questões ainda não têm resposta mas há algumas coisas que são mais ou menos previsíveis.

Uma das perspectivas que parece mais ou menos consensual tem a ver com o efeito que as medidas que estão a ser tomadas para a covid-19 e que afectam o nosso dia-a-dia vão ter na gripe, esperando-se que também diminuam o número de casos nesta frente. “É altamente provável que teremos um número de casos de gripe muito inferior ao habitual. Os dados dos países do hemisfério sul, que estão agora a terminar o Inverno, tiveram uma quebra do número de casos de gripe como nunca foi visto”, confirma Luís Graça ao PÚBLICO. Um estudo publicado na Lancet em Abril já concluía que as medidas de saúde pública introduzidas em Hong Kong para conter o coronavírus levaram a um declínio na actividade da gripe. “Em Março, no início da época da gripe no hemisfério sul (Outono) assim que foram implementadas as medidas para prevenir a transmissão de SARS-CoV-2 as infecções com gripe também praticamente desapareceram. Isto mostra que as medidas de higiene, distanciamento social, máscaras, têm um impacto também em outras infecções, nomeadamente na gripe”, refere o cientista do Instituto de Medicina Molecular que coordena o laboratório de investigação em Imunologia Celular.

Outro dos aspectos que é subscrito pela maioria dos especialistas está relacionado com uma diferença crucial no combate a estes dois vírus: é que se ainda não temos vacina para a covid-19, a vacina para a influenza existe e, mesmo que não garanta 100% de protecção, isso já fará toda a diferença. Ou seja, é importante que a população – sobretudo os grupos de risco – esteja vacinada contra a gripe. Não é esperado que haja protecção cruzada: os vírus são muito diferentes. Inclusivamente o vírus da gripe é suficientemente diferente de ano para ano para que a imunidade que adquirimos a um vírus da gripe não seja protectora quando surge um novo vírus no ano seguinte.

Sobre as probabilidades de uma pessoa ser infectada pelos dois vírus há várias ideias diferentes. A interacção entre diferentes vírus é muito complexa de estudar, por vários motivos mas sobretudo porque depende de muitas variáveis, desde o momento da infecção e da co-infecção (qual é que chega primeiro) até às características da “vítima” que é infectada. Por vezes, os vírus cooperam, outras vezes, os vírus competem entre si. Não se sabe ainda o que vai acontecer no contexto covid-19 e gripe ou de outros vírus respiratórios.
A co-infecção é possível?

Sabe-se que embora o coronavírus e influenza possam causar alguns dos mesmos sintomas – como febre, tosse e fadiga – os agentes patogénicos usam diferentes receptores nas células para obter acesso aos nossos corpos, ou seja, os dois podem entrar no nosso organismo. Um estudo com cerca de 1200 pacientes, feito no Norte da Califórnia e publicado na JAMA em Abril, concluiu que uma em cada cinco pessoas com diagnóstico de covid-19 estava co-infectada com outro vírus respiratório. Outro vírus não significa necessariamente a gripe, pois há outros vírus respiratórios (e mesmo outros coronavírus) que circulam nesta altura do ano. Ainda assim, o risco de co-infecção da covid e gripe é considerado muito baixo pela maioria dos especialistas. “Estão descritos casos de co-infecção de covid-19, na sua maioria com outros microrganismos diferentes do vírus da gripe — embora os casos descritos de co-infecção com o vírus da gripe sejam raros. Havendo uma baixa incidência de casos de gripe na comunidade (como tem sido observado no hemisfério sul), torna menos provável essas situações de co-infecção”, explica Luís Graça.

Mas se alguém for infectado com gripe ou covid-19, e uma vez que ambos afectam o sistema respiratório e tecidos comuns, será de esperar algum tipo de protecção cruzada? Não, responde Luís Graça. “Os vírus são muito diferentes. Inclusivamente o vírus da gripe é suficientemente diferente de ano para ano para que a imunidade que adquirimos a um vírus da gripe não seja protectora quando surge um novo vírus no ano seguinte”, esclarece. Mesmo sobre uma hipótese de o nosso sistema imunitário responder melhor ou pior (com uma manifestação mais severa da doença) a um dos vírus depois de ter sido confrontado com outro, não será de esperar algum tipo de influência. “Devido às diferenças entre os dois vírus, a resposta que nos torna imunes a uma reinfecção pelo vírus da gripe não nos protege do vírus que causa a COVID-19, e vice-versa. Deste modo a resposta protectora não será especialmente afectada”, afirma o imunologista.

Evitar a sobrecarga

Os cientistas têm seguido o rasto das epidemias ao longo de décadas e já perceberam que os surtos de vírus respiratórios não atingem o seu pico durante o mesmo período. Por outro lado, a gripe tem um ciclo mais rápido do que a covid-19. A época deverá começar nas últimas semanas de Dezembro e durar cerca de dois meses. A principal preocupação nessa altura – apesar de tudo apontar para números da gripe bastante inferiores aos registados nos anos anteriores, pelos motivos já apontados – é evitar a sobrecarga dos serviços de saúde.

Mas uma vez que há mais população susceptível, o SARS-CoV-2 será mais transmissível do que a gripe? “Mais uma vez, podemos aprender com o que se tem passado no hemisfério sul. Nesses países em que houve SARS-CoV-2 e vírus da gripe em circulação, as medidas de prevenção da transmissão tiveram um impacto comparativamente maior no vírus da gripe. A mortalidade por gripe nesses países foi este ano extremamente baixa”, constata Luís Graça.

Entre os mais optimistas, que esperam que a gripe passe despercebida este ano, e os mais pessimistas que temem uma “twindemic” com a união da pandemia aos outros vírus que circulam no Inverno, há espaço sobretudo para algumas dúvidas e poucas certezas. Acima de todas as incógnitas, destaca-se o conselho dos especialistas para que os grupos mais vulneráveis se protejam, para que ninguém desvalorize sintomas e para que todos adoptem as medidas impostas para o controlo da covid-19.