15.9.20

“Estamos a viver um apocalipse. Sem vacina não haverá confiança”

Ana Maria Fonseca, in Expresso

Projetos Expresso. Entrevista a Ferran Adrià, chefe e criador da Fundação El Bulli

Se a sardinha integra hoje um menu de degustação de alta cozinha deve-o à filosofia implementada por Ferran Adrià no El Bulli ao longo de 30 anos. Verdadeiro laboratório de inovação foi, por cinco vezes, considerado o melhor restaurante do mundo. O chefe catalão virou a clássica cartilha francesa do avesso e deu início a uma revolução global. A par da abordagem “técnico conceptual”, o ‘pai’ da cozinha molecular apostou na gastronomia local e no uso de ingredientes autóctones, ainda nos anos 80. Movido pelo mesmo pensamento vanguardista, continua a abrir caminhos, mas agora a partir da Fundação El Bulli que, em parceria com o CaixaBank, está a ajudar, através de uma plataforma digital, as empresas a retomar os negócios no contexto da pandemia.

Como está a viver e a sentir o impacto da covid-19 na gastronomia espanhola e mundial?
Estou em Rosas, na Catalunha, e não é tão grave, porque aqui o turismo é mais local. Ainda que não haja alegria, a realidade não é tão dura como em Barcelona, Madrid ou qualquer outra cidade turística. Em Barcelona é um drama. Tínhamos quase 9 milhões de turistas e agora é um apocalipse, um caos. Emocionalmente é muito duro ver amigos e amigas que estão a passar mal com os seus negócios. Se os outros não estão bem, também não posso estar.

Considera que os governos deveriam ajudar os restaurantes a ultrapassar os efeitos da pandemia?
Os governos devem ajudar não só os restaurantes, como a todos os pequenos empresários. Nos próximos dois anos vão encerrar muitos negócios. Para restaurar a confiança das pessoas a voltarem a sentar-se à mesa de um restaurante, só com uma vacina. Sem vacina não haverá confiança.

É frequente dizer que “gastronomia é economia” e que um restaurante será sempre um negócio. Mas, antes de encerrar o El Bulli, referiu ter “perdido a paixão”. Como se interligam estas duas abordagens?
O El Bulli não era um restaurante. Tinha esse formato, mas nós tentávamos fazer vanguarda e a vanguarda não é um negócio. No mundo existem poucos restaurantes cuja missão seja abrir caminhos. O objetivo de um restaurante é ganhar dinheiro, servir boa comida e durar o máximo de tempo possível. 50% dos restaurantes não ultrapassam cinco anos de existência, e 22% não chegam sequer ao terceiro ano. Isso sucede porque não se compreende um restaurante como um negócio. Para cozinhar não faz falta uma empresa, mas para ter um restaurante, sim!

Passou quase uma década do encerramento do El Bulli, mas tanto o restaurante como Ferran Adrià permanecem uma referência na alta cozinha e na inovação. Não há mais que se possa inventar nesta área?
É certo que a cozinha chegou a níveis muito complexos e não é fácil encontrar coisas disruptivas. Mas certamente haverá mais. A questão é quando? Ninguém sabe. A covid-19 deixou em segundo plano tudo o que é vanguarda. Agora, importa mais a gestão e os números. Na gastronomia estamos num momento de ver qual será o próximo passo.

É o que pretende fazer também na Fundação El Bulli, perceber o que se segue?
A fundação tem três missões: guardar o legado do El Bulli; criar conteúdo de qualidade para a restauração gastronómica; e compartilhar a nossa experiência em gestão e inovação. Tudo isto sob um prisma muito simples. Para fazer algo tens de o compreender bem. Como se compreende? Estudando. E, quando falo em estudo, refiro-me a uma maneira de associar toda a informação e conhecimento. Aí entra a metodologia Sapiens, através do pensamento sistémico aliado ao pensamento histórico. Seja o que for que queiras compreender, que seja demonstrável, está na natureza, no ser humano ou nas suas ações. Tudo está interligado. O nosso trabalho é muito simples e vai incidir sobre a eficiência em gestão e inovação para pequenas empresas.

Cada vez se fala mais de sustentabilidade e responsabilidade social na gastronomia. Mas trabalhar com pequenos produtores não é um privilégio exclusivo da alta cozinha?
No mundo há sete mil milhões de pessoas. Cada uma consome em média duas peças de legumes por dia, o que dá 14 mil milhões. Só com pequenos produtores não comeríamos. Há que apoiar e ajudar o pequeno produtor, tendo consciência de que a sua produção não dá para todos. Mas não creio que seja um privilégio. Tomemos como exemplo um ovo biológico. A diferença de preço para um convencional são 15 ou 20 cêntimos. Muitas pessoas podem pagar por isso. Tem a ver com uma atitude perante a vida. Aqui a minha filosofia é a liberdade. Se podes, compra ao pequeno produtor. 

Se o podias fazer e não fazes... devias fazê-lo, mas quem sou eu para dizer o que as pessoas devem fazer?
Revê-se no trabalho da nova geração de chefes portugueses, alguns deles seus discípulos, como José Avillez ou Vasco Coelho Santos?
São fantásticos. Estive em Portugal há cerca de um ano e o nível era extraordinário. A nova geração de cozinheiros e cozinheiras criativos portugueses é incrível. Creio que nunca até agora tinha havido tanta qualidade criativa. Estão a fazer uma cozinha criativa portuguesa que dialoga e convive com a cozinha tradicional. Em vez de serem contrárias, são complementares.


Como será a alta cozinha do futuro?
Cozinhamos há mais de 2 milhões de anos. Não haverá grandes mudanças. A maior diferença na cozinha de ontem e de hoje é a diversidade. Nunca na história da humanidade existiram tantos tipos de cozinha.

O SECTOR PÓS-COVID: “QUEDA NAS RECEITAS EXIGE REINVENÇÃO”

Depois do sucesso alcançado em 2019, a segunda edição do Prémio Nacional de Turismo (PNT), um projeto do Expresso e do BPI, mantém o objetivo de destacar os melhores e dar visibilidade a iniciativas com valor no sector do turismo em Portugal. Tendo em conta “o contexto atípico” e “os novos desafios que se anteveem”, o PNT apresenta novas categorias (Turismo em Rede, Turismo Autêntico, Turismo de Confiança, Turismo Inteligente e Turismo Sustentável), já adaptadas ao contexto gerado pela pandemia de covid-19. Apesar de todas as adversidades, Pedro Barreto, administrador do BPI, aposta na confiança como fator decisivo para a inversão dos resultados: “Apesar de o turismo interno poder compensar parcialmente a queda acentuada nas visitas de turistas internacionais, a queda nas receitas exige uma reinvenção do sector, nos fatores de qualidade de serviço, segurança e condições de higienização. O foco é a confiança do consumidor.” Garantindo uma “resposta adequada e atempada” às novas exigências, Pedro Barreto reconhece que “o elevado peso do turismo, um sector especialmente vulnerável às medidas de distanciamento social com restrições à mobilidade, tornará a recuperação um pouco mais lenta”.