Foi o homicídio brutal de George Floyd nos Estados Unidos que, em maio, deu origem à discussão, mas o movimento contra a discriminação racial atingiu rapidamente uma escala planetária — e tornou-se, dizem os especialistas, mais sério do que nunca. Hoje, o debate público global em torno do racismo estrutural nas sociedades desenvolvidas oferece-nos uma oportunidade única para entender o maior problema do planeta — as alterações climáticas — a partir de uma perspetiva fundamentalmente humana: a de que a destruição do planeta é, simultaneamente, causa e consequência das profundas desigualdades que fragmentam a Humanidade entre ricos e pobres, brancos e negros, Norte e Sul.
Um estudo recente publicado na revista Science mostrou como o racismo e as desigualdades entre classes sociais presentes nas sociedades contemporâneas afetam profundamente os ecossistemas das cidades. Esta desigualdade estrutural entre diferentes partes das populações leva a que haja uma maior biodiversidade, tanto na fauna como na flora, em zonas onde vivem os segmentos mais privilegiados da sociedade. Ao mesmo tempo que contribuem para as alterações climáticas, as desigualdades também são aprofundadas pelos efeitos do aquecimento global.
Outro estudo recente, publicado na PNAS, deixa clara a correlação entre a raça e a exposição à poluição nos Estados Unidos. Enquanto os brancos são quem mais contribui para a poluição com os seus consumos, os negros e os latinos são quem mais sofre os efeitos da poluição atmosférica sem ter beneficiado dos bens e serviços que lhe deram origem. É um indicador chamado “desigualdade de poluição” e há números concretos: os brancos têm uma “vantagem” de 17%. Isto significa que a quantidade de poluição que produzem é 17% superior àquela a que estão expostos. Por outro lado, os negros têm uma “desvantagem” de 56% e os latinos de 63%.
Mas não é só dentro de cada cidade ou região que estas desigualdades se fazem sentir. A nível global, os países que menos contribuem para o aquecimento global são os que mais sofrem com ele. Se olharmos para a lista dos países mais afetados pelas alterações climáticas nos últimos vinte anos, encontramos, no topo do ranking, países que representam percentagens marginais das emissões globais de dióxido de carbono. Em primeiro lugar surge Porto Rico, país responsável por 0,002% do CO2 emitido para a atmosfera a nível mundial. Honduras (0,03% do global) e Myanmar (0,05%) surgem a seguir.
Uma das representações mais impressionantes desta desigualdade global entre países na forma como as alterações climáticas vão afetar o planeta nas próximas décadas é um mapa que surge num outro estudo publicado recentemente na PNAS. No mapa é possível ver, a preto, as regiões do mundo onde atualmente as temperaturas são demasiado altas para permitir a vida humana. Trata-se das regiões onde a temperatura média anual está acima dos 29ºC — e representam hoje apenas 0,8% do território continental do planeta, quase exclusivamente no deserto do Saara. Em 2070, estima-se que 19% da terra registe estas condições. Nas regiões assinaladas a sombreado no mapa, poderá deixar de ser possível viver nos próximos 50 anos — e cerca de 3,5 mil milhões de pessoas correm o risco de ficar sem casa.
Além de tudo isto, a investigação científica dá-nos ainda outro dado: existe uma correlação estatística entre as atitudes racistas e o negacionismo das alterações climáticas. Se, por um lado, é mais provável encontrar negacionistas da ciência do clima entre os brancos do que entre os negros (de acordo com dados recolhidos nos Estados Unidos), é ainda mais provável encontrá-los entre os brancos que demonstram atitudes racistas. De acordo com um estudo recente, há uma probabilidade de 84% de um norte-americano branco com tendências racistas (dados obtidos através dos estudos eleitorais) discordar da afirmação de que as alterações climáticas são um problema grave.
Todas estas evidências científicas apontam no sentido de uma conclusão óbvia, mas cada vez mais sustentada em dados concretos: as alterações climáticas estão a expor e a agravar, como nunca, as profundas desigualdades entre os povos.
Para ajudar a perceber melhor este fenómeno, conversei recentemente, à distância, com o meteorologista norte-americano Gregory Jenkins, que nos últimos anos tem estudado a relação entre as alterações climáticas e o racismo. Na conversa, falou-me do paralelismo entre os conceitos de justiça ambiental e justiça climática. A conclusão é só uma: preferimos afastar de nós as consequências do que fazemos, seja no espaço, seja no tempo. “Quando falamos de justiça ambiental, o desperdício é deslocado no espaço para as comunidades pobres, negras e minoritárias. Quando discutimos a justiça climática, o impacto do CO2 e de outros gases com efeito de estufa é deslocado no tempo para os nossos filhos, netos e bisnetos.”