7.9.20

Esperar por consulta à porta do centro de saúde em tempos de pandemia. “Então não assusta?”

Ana Maia (textos), Rui Gaudêncio (fotos), in Público on-line

O relógio está próximo às 9h20 e cerca de duas dezenas de pessoas ainda esperam junto da porta do Centro de Saúde de Algueirão, em Sintra, por uma marcação para o dia ou pela consulta. Dizem que nesta quinta-feira, dia em que o PÚBLICO esteve junto do centro de saúde, foi “um dia bom”.

Manuela Pinto chegou às 7h30. Há três meses que pergunta como pode conseguir o atestado multiusos para o marido, que está com cancro. Foi renovar a baixa e tentar mais uma vez ter resposta sobre o atestado. “Têm um serviço de delegados de saúde pública dedicados à covid. Não estão a tratar destes pedidos. É um direito fundamental”, lamentou.

Em tempo de pandemia, a recomendação é que as pessoas não se desloquem aos centros de saúde sem telefonar. Mas ali a recomendação cai por terra. O problema é velho e a pandemia não ajuda. “O telefone está sempre impedido. Quando foi para a marcação da primeira baixa, enviei um email. Responderam três dias depois. Já tinha vindo cá marcar”, contou.

“Não marcam consultas a longo prazo. O que facilitam são as vacinas, os pensos, as consultas das crianças e das grávidas. Há centros de saúde que funcionam bem. Acho que o problema é daqui. Sempre foi assim e está pior com a pandemia”, afirmou Manuela, que diz que “nestes três meses” nunca foi atendida num consultório. “É o espaço que há livre. Há uma coisa boa: pelo menos não se paga a consulta.”

Alexandrina Simões, 67 anos, não chegou muito antes de Manuela. E, tal como ela, já tinha assegurado uma consulta para o dia. Só esperava que já não demorassem muito mais a chamá-la. À porta do centro, um edifício de habitação, não se cumpre com rigor o distanciamento dos dois metros, mas todos usam máscara. Sempre que o segurança ou um dos médicos chegam à porta, as conversas acabam até se ouvir o nome de quem pode entrar.

Ninguém atende o telefone. Vim para conseguir consulta para mostrar exames e pedir uma credencial para terapia da voz”, disse, explicando que os problemas que tem resultaram de uma operação mal feita que lesou as cordas vocais. Já a opção da Internet, pouco lhe serve: “Não percebo nada disso.” E assusta estar ali em tempo de pandemia. “Então não assusta? Mas isto não é de agora. Só que antes ficava tudo lá dentro [do centro de saúde] e agora é cá fora. Que havemos de fazer?”, lamentou. Sem médico de família atribuído, o mais provável que mostre os exames a um médico diferente daquele que os pediu.

Marleide e Hélio vieram de comboio da Rinchoa. Chegaram às 6 da manhã. Hélio está com muitas dores abdominais. Anda assim há quatro meses. Já foi visto no centro de saúde, esteve nos hospitais de Cascais e Amadora-Sintra, mas ainda não sabe o que tem. Não tentaram marcar consulta por telefone. “É difícil atenderem e como a dor é muito forte não quisemos esperar”, disse Marleide. Pouco passava das 10h00 quando Hélio saiu do consultório médico. Irá fazer uma endoscopia.

Apesar do reconhecimento do esforço dos profissionais, Elsa Martins, 72 anos, considera as condições do centro de saúde como “péssimas”. “Sabemos que vai haver um novo centro de saúde com condições. Resta saber se terá médicos, porque os que há, não chegam para aqui.” Chegou por volta das 9h00 e espera para ver se conseguirá uma consulta do dia.

Sem senhas, perguntou quem era a última pessoa na fila. “Não querem ajuntamentos e depois estamos aqui”, salientou, admitindo que a situação “mete um pouco de medo”. Tem o coração nas mãos por ela, mas sobretudo pelo marido, doente de Alzheimer, que teve de ficar sozinho em casa. Contou que já desmaiou “ao sol” à porta do centro de saúde em tempo de pandemia. Foi assim que se percebeu que estava com uma infecção urinária. Naquele dia queria mostrar os exames.
“E quando chegar o inverno com chuva e frio, como vai ser?”

“Temos um número muito significativo de habitantes e poucas unidades de saúde para dar resposta às necessidades da população”, apontou Paula Borges, da Comissão de Utentes de Saúde do Concelho de Sintra. O que se passa no Centro de Saúde de Algueirão não é caso único, mas será a situação mais difícil. “Serve a maior freguesia do concelho, com o número de utentes muito significativo, sem pessoal administrativo suficiente”, disse, lembrando que a procura de cuidados que não se fez em Março e Abril poderá estar agora a desestabilizar mais a situação.

“Estes problemas prolongam-se há muitos anos. A pandemia veio expor o que se passa e acentuar as diferenças sociais. Quem tem acesso à Internet e informação consegue resposta. Quem não está a conseguir são as pessoas que mais precisam no imediato. Idosos, pessoas sem Internet ou com fracas condições socioeconómicas”, considerou.

Mais próxima do início da fila para pedir uma consulta estava Lurdes Curva. “Tenho exames feitos há dois meses e quero marcar uma consulta. Já cheguei a estar cinco horas. Ligamos e desligam o telefone. Está cada vez pior. E quando chegar o inverno com chuva e frio, como vai ser?”, perguntou.

Essa é uma questão que a direcção do Agrupamento de Centros de Saúde (Aces) de Sintra, a que pertence este centro de saúde, já trata de resolver com a articulação da Câmara Municipal de Sintra, como explicou em resposta por escrito. Vão colocar estruturas amovíveis à entrada “por forma a permitir que os utentes não fiquem desprotegidos enquanto esperam pela triagem que continuará, salvo ordens superiores em contrário, a ser feita”.

FotoVárias pessoas esperam à porta do Centro de Saúde de Algueirão para pedir uma consulta para o dia ou para serem vistas pelo médico

O Aces de Sintra tinha, em Julho, 357.241 utentes inscritos frequentadores, dos quais 96.021 (26,8%) não têm médico de família atribuído. “30 % destes utentes (28.784) estão inscritos na Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) Algueirão, onde representam 67% dos inscritos naquela UCSP”.

“O edifício onde funciona a UCSP Algueirão está há vários anos desadequado à finalidade e à dimensão, pelo que as medidas de prevenção impostas pela covid-19 obrigam à triagem de todos os utentes que ali recorrem. Para minimizar este facto, e considerando que os recursos humanos existentes não permitem um atendimento telefónico eficaz, foi reforçada, junto dos utentes, a vantagem da utilização do mail da unidade para pedidos de marcação de consultas, renovação de receituário crónico, colocação de dúvidas ou pedidos de informação”, diz a direcção.

As condições do edifício, acrescenta ainda a direcção do Aces, são pouco atraentes para os novos médicos, deixando cerca de 50% das vagas para contratação por preencher. A direcção espera que o novo centro de saúde, que deverá abrir no próximo ano, mude este cenário e salienta “o esforço e o verdadeiro espírito de sacrifício com que todos os profissionais que ali trabalham tentam, todos os dias e apesar de tudo, fazer o seu melhor”.