Desvio de ajuda humanitária para o mercado negro, burocracia incontornável e escolhas ideológicas sobre quem pode ou não receber esses mantimentos vitais: o estrangulamento à entrada de ajuda no Iémen, onde 80% da população não sobrevive sem ela, está a provocar um congelamento de doações. Os rebeldes houthi são o alvo da maioria das críticas mas não há inocentes no mais recente relatório da Human Rights Watch sobre a maior crise humanitária do mundo
No Iémen, 24 milhões de pessoas, 80% de toda a população, precisam de ajuda humanitária todos os dias para conseguirem sobreviver, não para viver, e metade desse número refere-se a crianças: ferimentos de guerra, subdesenvolvimento devido à falta de nutrição contínua e sequelas de doenças que nos países desenvolvidos já nem se registam são apenas três dos cenários que estas crianças têm de ultrapassar todos os dias.
Cada hora conta porque por dia há 400 mil crianças que não comeram nada nesse dia e é por isso que o último relatório da organização não-governamental Human Rights Watch, publicado esta segunda-feira, se debruça sobre os obstáculos que ambos os lados do conflito estão a impor à entrada e distribuição de ajuda internacional numa altura em o sistema de saúde, já fortemente debilitado por cinco anos de guerra civil (2015-) colapsou sob o peso da pandemia. Os números apresentados neste momento, oficialmente, mostram 1950 casos, mas as organizações no terreno não os levam em conta porque sabem que a verdade é um número muito mais elevado.
Todos os atores internacionais presentes na guerra do Iémen sabem que situação não pode melhorar sem o fim da guerra que desde 2015 opõe os rebeldes houthis, xiitas e próximos do regime iraniano, ao governo aceite pela comunidade internacional, do presidente sunita Abd Rabbu Mansour Hadi, que foi deposto precisamente numa rebelião de houthis que começou em 2014 com um protesto contra o preço dos combustíveis. Mas tudo pode piorar se acabar a ajuda que ainda vai entrando.
“É UMA ENCENAÇÃO DE KAFKA”
“Este relatório foca-se principalmente nas ações dos houthi, que constantemente impedem a ajuda de chegar a quem mais precisa, de todas as formas possíveis: quando ela entra, eles ficam com uma parte, grande ou pequena depende dos locais, mas também muitas vezes impedem a ajuda de ser distribuída porque o nível de burocracia é quase impossível de navegar - são centenas de diretivas, centenas de formulários, assinaturas, papéis que vão até ao topo do comando de determinada área e não voltam, é uma encenação de Kafka”, diz Amhed Benchemsi. E oferece um exemplo concreto: “Por exemplo, uma agência humanitária chega ao terreno com material médico para ajudar uma determinada área. Antes de poder ser distribuída, os houthi mas não só, querem saber que tipo de material as agências vão usar para construir o armazém onde vão guardar as provisões. Para quê e porquê?”, pergunta Benchemsi para si mesmo.
Essas respostas não estão no relatório porque “apesar de o porquê ser importante, o que fazemos é expor um problema e recomendar ações, não exatamente entender todas as ramificações de uma guerra civil com centenas de atores com inclinações ideológicas que diferem de homem para homem - quem sabe de facto quem são os houthi e o que querem?”.
Entre 2015 e 2019, doadores internacionais contribuíram com 8,35 mil milhões de euros para o esforço humanitário no Iémen, incluindo 3,6 mil milhões em 2019, um valor que ajudou a alimentar, agasalhar e tratar quase 14 milhões de pessoas por mês. Em 2018, esse número tinha sido menor - 7,5 milhões por mês e por isso havia algum otimismo em relação a este ano. No entanto, os 35 representantes de agências de ajuda humanitária que foram entrevistados para este relatório não têm muitas dúvidas: em 2019 e nos primeiros meses de 2020 estas agências gastaram grande parte de seu tempo numa luta burocrática para obter aprovações em todo o país para poderem então prestar assistência de acordo com os princípios humanitários de imparcialidade e sem a interferência das autoridades. O impacto nas redes de assistência alimentar e médica que estavam montadas foi gigantesco.
Os sistemas abastecimento de água e de escoamento sanitário sofreram um revés para níveis próximos do que se passava em 2017 e 2018. Até 28 de agosto, as agências humanitárias tinham recebido apenas 24% dos 3,4 mil milhões solicitados para o ano porque os financiadores não gostam de ouvir que o seu dinheiro pode estar a ir parar às mãos de milícias, em forma de alimentos ou medicamentos. Na grande maioria das cidades e aldeias a ajuda internacional é a única “luzinha de esperança que milhões e milhões de pessoas têm”. Estes obstáculos à entrega de ajuda, diz Benchemsi, são “apenas mais uma parte do museu de horrores que está à vista de todos no Iémen”.
Depois de estar estabelecido o local onde vão ficar guardadas as mercadorias, continua Benchemsi a explicar, é preciso explicar às autoridades locais como vão ser transportadas, que tipo de veículos serão usados, onde serão distribuídas. “Depois de todos os atrasos que isto causa, e cada hora no Iémen é preciosa para quem não sabe quando será a próxima refeição, essa é parte mais grave, a escolha dos beneficiários.”
ESCOLHER QUEM É AJUDADO
As listas de potenciais beneficiários da ajuda só podem ser preparadas no terreno porque só no terreno é que os funcionários das agências humanitárias podem saber quantas pessoas estão em cada localidade, quantas precisam de medicamentos e de que medicamentos precisam, se em determinado local a comida é ou não um problema prioritário, ou se é o abastecimento de água o maior problema da zona.
Mas as várias facções, conta o responsável, “exigem saber a lista de beneficiários, que muitas vezes modificam, eles querem controlar quem recebe ajuda, politicamente cada comandante tem uma ideia diferente de quem deveria receber a ajuda e então muitas vezes mudam a lista de beneficiários, o que é grave porque podem estar a divergir a ajuda para locais que não precisam de tanta ajuda ou daquele tipo específico de ajuda”, exemplifica. “E mesmo escrever esta lista de beneficiários que eles depois podem mudar é complicado porque não é fácil andar pelo Iémen, nem sempre os vários atores permitem que determinada organização investigue as necessidades das populações. Nós há muito que não conseguimos entrar, este relatório foi feito pelo telefone porque é demasiado perigoso.”
No relatório há outros episódios como o que Benchemi descreve. “Os houthi têm um histórico particularmente flagrante de impedir que agências humanitárias cheguem às pessoas mais necessitadas e, pelo menos em parte, desviam a ajuda para oficiais houthi, seus apoiantes e combatentes. Em 2019 e 2020, os trabalhadores humanitários tiveram que reagir contra as autoridades houthi, que insistiram em várias ocasiões para que os grupos humanitários entregassem bens, como carros, computadores e telefones aos houthi, no final dos projetos. No entanto, a obstrução nas áreas controladas pelo governo no sul e no leste também está a aumentar”, lê-se no relatório.
Uma investigação da Associated Press, publicada a 31 de dezembro de 2018, descobriu que "facções e milícias em todos os lados do conflito desviaram ajuda alimentar para unidades de combate da linha de frente ou venderam-nas para o lucro no mercado negro”. Os houthi são referidos como os que mais recorrerem a estas práticas mas, “em menor medida, também as forças que lutam pelo Governo do Iémen o fazem”. A investigação cita um ex-ministro da Educação houthi confirmando o desvio de 15.000 cabazes por mês em 2018 com provisões básicas, vendidos no mercado negro ou usadas para alimentar soldados da linha de frente.
COLIGAÇÃO TAMBÉM ESTÁ A DIFICULTAR AJUDA
Mas também a coligação liderada pela Arábia Saudita (com a ajuda de países como França, Reino Unido ou Estados Unidos, todos acusados de vender armas usadas para ataques selvagens contra civis conduzidos pelos sauditas) é acusada de usar a burocracia para impedir a entrada de ajuda: “A coligação liderada pela Arábia Saudita impôs um bloqueio naval e aéreo ao Iémen em março de 2015 que restringiu severamente o fluxo de alimentos, combustível e remédios dos quais a grande maioria da população civil depende - uma violação às leis de guerra”.
O caso incluiu uma proibição não oficial aos importadores de utilizarem contentores normais (de 6 a 12 metros de comprimento) para embarcar mercadorias, o que forçou os importadores a ter de recorrer tanto a métodos de transporte como métodos de descarga mais caros, “resultando num aumento significativo no preço dos bens essenciais”, lê-se no relatório publicado esta segunda-feira.
As autoridades houthi responderam a este relatório, negando as acusações, mas nem o Governo internacionalmente reconhecido nem o Conselho Transitório do Sul (um movimento separatista que quer um sul independente e que ocupa a área perto de Aden desde o início de 2018) responderam.
O relatório recomenda o estabelecimento de uma comissão independente da ONU para investigar quem exatamente decide os torniquetes impostos à ajuda internacional e, no seguimento das conclusões, a imposição de sanções individuais. “Essas normalmente doem mais e resultam mais do que as que são impostas a um grupo ou a um país.”