Gente que se vê pela primeira vez a viver na rua. Gente que volta à rua quando a rua já lhe estava a sair do corpo. Gente que veio para Portugal a sonhar com uma vida melhor e só graças à ação social não permanece no fundo do poço. Gente no limbo, sem trabalho e sem comida, a cama a ameaçar fugir a qualquer instante. Histórias que a covid traçou. De desemprego e pobreza. De solidão e desespero. De vergonha também.
Pedro Rocha, 47 anos, habituou-se a trabalhar ainda catraio. Logo aos 16 anos, foi a França com um amigo, só para gozar umas férias, e acabou por ficar por lá a ganhar a vida, na construção civil. Assentava azulejos e tijoleira. A aventura durou uns dois anos. Só porque o pai adoeceu e ele decidiu voltar. Mas nunca mais virou costas ao trabalho. Primeiro pelo país fora, depois na Holanda, onde esteve durante nove anos, foi-se especializando em serralharia. Pelo meio foi pai. Sem que a labuta o assustasse nunca. Nos Países Baixos, chegou até a permitir-se a alguns luxos. “Tinha uma casa só para mim, mandava dinheiro para a minha filha e ainda me sobrava para sair com os meus amigos e divertir-me.” Quando voltou, trabalhou numas quantas fábricas do norte do país. Recebia menos, mas dava para se ir sustentando.
A vida começou a complicar-se há um ano, quando se separou da companheira. Sem casa, com a vida virada do avesso, aceitou o desafio do irmão que vive em França, para se mudar para lá. “Aqui arranjas trabalho.” Só que a promessa saiu furada. Pedro só se ia safando a desbloquear telemóveis e computadores. Para piorar, veio a covid, a pandemia que dizimou vidas e sonhos. E empregos, pois. Não querendo ser mais um peso para o irmão, voltou para Portugal. Foi há mais ou menos um mês. Desde então, os dias só se fizeram mais penosos.
“Bati a tudo o que é porta, mas não tenho conseguido ajuda. Tentei os albergues, a Segurança Social, o Centro de Emprego. Nada. Farto-me de ligar para aqui e para ali à procura de trabalho, mas estamos em crise, não há trabalhos.” E então não lhe sobraram mais opções. Aos 47 anos, viu-se, pela primeira vez na vida, na situação que nem os dias mais pessimistas lhe permitiram prever: sem cama, sem teto, sem-abrigo. Todas as noites, pega num cartão e encosta-se nas arcadas do Tribunal de Instrução Criminal, no Porto, ali paredes-meias com a Estação da Trindade. “Desde que voltei, há quatro semanas, que estou a dormir na rua.” Na verdade, só por boa vontade lhe pode chamar dormir. “Durmo mais durante o dia. Durante a noite ninguém consegue. Muitos carros, muita confusão.”
Pelo meio, faz umas horas nas obras, para uma pessoa conhecida. Dinheiro a conta-gotas que mal lhe chega para o tabaco e outras pequenas despesas. Sempre que pode, aproveita para tomar um banho na obra. Jantar vai buscá-lo à Igreja do Marquês, onde todos os dias a iniciativa Porta Solidária entrega refeições quentes e um kit com umas sandes e mais qualquer coisa. Anda sempre com uma grande mochila vermelha, onde carrega o mínimo indispensável para a vida que nunca quis: uma toalha, um cobertor, algumas roupas. O pior, garante, é não ter com quem falar – só com a filha, via Internet. E a miséria que todos os dias lhe passa à frente dos olhos. “Tenho visto coisas que nunca pensei ver. Casais, idosos, jovens. Fiquei parvo com a quantidade de gente que encontrei na rua.”“Bati a tudo o que é porta mas não tenho conseguido ajuda. Não há trabalhos”, reconhece Pedro Rocha
Não se deixa vergar, ainda assim. De alguma forma, descansa-o o facto de a filha, que sempre ajudou, estar agora orientada, a trabalhar e capaz de se autossustentar. E ele até já vislumbra um horizonte mais risonho. “Tenho um grande amigo na Finlândia que me chamou para ir para lá, ajudar a construir barcos. Estou só a tratar dos papéis. Tem sido difícil, porque a cada passo que dou parece que há uma parede à minha frente. Mas acredito que dentro de duas semanas possa ter tudo resolvido.” Até lá, continua a enganar o sono na rua, o único lugar onde nunca imaginou ter de dormir.
A história de Pedro conta um dos lados mais perversos do vírus que virou o Mundo do avesso. Do desemprego e da pobreza que vem com ele. De como há novas pessoas a serem atiradas para a rua. O próprio presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deixou, no mês passado, um inquietante aviso. “Encontramos, além dos antigos sem-abrigo, muita gente, portugueses e estrangeiros, que são os novos sem-abrigo e muito novinhos”, alertou o chefe de Estado, durante uma iniciativa na Associação das Cozinhas Económicas Rainha Santa Isabel (Coimbra). A ideia de que o número de pessoas nesta situação tem aumentado carece ainda de números atualizados para ser oficialmente comprovada, mas vai sendo constatada por associações e entidades de norte a sul. Por testemunhos na primeira pessoa também.
Saltar do circo, sem trapézio
A história de Luciano Fialho, 34 anos, com grande parte da vida feita na Margem Sul, é um bom exemplo disso. Encontramo-lo agora do outro lado do Tejo, no Complexo Desportivo Municipal do Casal Vistoso, um dos quatro centros de acolhimento de emergência para sem-abrigo que a Câmara Municipal de Lisboa criou para dar resposta a situações-limite, como a de Luciano. Nascido e criado numa família circense – os avós tinham um circo, que a mãe herdou, o pai era equilibrista -, foi lá que viveu desde que se conhece. “Aliás, eu quase nasci no circo, depois de um espetáculo da minha mãe”, conta, um sorriso a furar-lhe o desalento. Até há bem pouco tempo, trabalhava “num dos maiores circos de Portugal”. Ajudava a montar e a desmontar, lidava com a parte elétrica também.
Mas depois veio a pandemia. O espetáculo, como quase tudo o resto, parou e ele deixou de ter rendimentos para conseguir pagar a caravana em que vivia. Sem pais que lhe pudessem valer – o pai morreu tinha ele 14 anos, a mãe sofre de doença psíquica crónica e está internada numa instituição -, ainda encontrou refúgio temporário na casa de uma prima. Só que acabou por se sentir um estorvo. “Então menti-lhe. Uma mentira inofensiva. Disse-lhe que tinha uns amigos em Lisboa que me podiam ajudar.” Não tinha. Esteve várias noites a dormir numa das salas de espera da Gare do Oriente. Até que um casal que também por lá pernoitava lhe falou do centro de acolhimento junto ao Areeiro. “Achei que era mais um albergue, mas quando aqui cheguei percebi que não. Estou eternamente agradecido.”“Achei que isto era mais um albergue mas quando aqui cheguei percebi que não. Estou eternamente agradecido”, assegura Luciano Fialho
No pavilhão do Casal Vistoso, encontrou, algures no início de maio, teto e cama, agasalhos e conforto, refeições e banho certos, apoio e novos amigos, uma promessa de rumo também. “Entretanto já estou a trabalhar, comecei há uma semana. Trabalho em carpintaria, em remodelações do interior de casas.” E a nova labuta até lhe está a correr melhor do que tinha sonhado. “O patrão diz que sou muito habilidoso, quem vem do circo tem de saber fazer um bocado de tudo.” Volta a sorrir, uma pontinha de orgulho que a humildade teima em disfarçar. Luciano tem outro grande motivo para sorrir. No centro, apaixonou-se (“Foi amor à primeira vista – e olhe que eu nunca acreditei nisso.”) e até já se está a preparar para ser pai pela primeira vez. “Há males que vêm por bem”, desabafa, feliz, a fé num futuro mais doce a querer agora sobrepor-se aos dias de agruras que a pandemia lhe trouxe.
Apontar o caminho para um destino melhor, com independência e longe das ruas, é precisamente a meta maior da equipa que lidera o trabalho feito nos quatro centros de acolhimento que a Câmara de Lisboa tem em funcionamento. “O objetivo é que as pessoas saiam daqui com autonomia. Esta será sempre uma solução transitória”, frisa Teresa Bispo, coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de Lisboa e assessora de Manuel Grilo, vereador da autarquia lisboeta com o pelouro da Educação e dos Direitos Sociais. Pensado em “meia dúzia de dias”, mas aperfeiçoado “diariamente”, desde que, em meados de março, se abriu o primeiro espaço, o projeto dos centros de acolhimento já serviu de bengala a centenas de pessoas.
Os últimos números oficiais, relativos ao primeiro trimestre de execução (março-junho) apontavam para 562 pessoas acolhidas nos quatro centros. Mas a estimativa é de que já por lá tenham passado mais de 700 pessoas. Destas, muitas conseguiram, entretanto, voltar aos trilhos. Entre os que chegam, uns foram parar à rua recentemente, como que por acidente, muito por culpa da pandemia. Outros já lá andavam há mais tempo. Largos anos, em vários casos. “Aqui tanto damos a mão ao sem-abrigo crónico como a alguém que acaba de cair na rua”, explica Teresa Bispo, enquanto nos vai mostrando os vários espaços do pavilhão desportivo do Casal Vistoso, agora transformado em casa-abrigo de nove dezenas de pessoas (o número máximo de gente que ali pode estar instalada em simultâneo).
O espaço conta com duas amplas camaratas, a maior para homens, outra para mulheres e casais. Pessoas com mobilidade condicionada ou acompanhadas por animais também são acolhidas. Aqui e ali, há cães a circular por um centro que também conta com espaços e atividades de lazer. No largo da entrada, uma dúzia de pessoas assiste ao filme que vai passando no canal Hollywood. No pátio, arejam-se ideias e cigarros. O bom funcionamento do espaço é assegurado por uma vasta equipa, que vai de vigilantes a polícias, passando por técnicos de apoio social, equipas de limpeza, motoristas, médicos e enfermeiros. Até porque todos os dias, a partir das 16 horas, é feita a triagem à covid. “Até hoje só tivemos um caso”, orgulha-se Teresa Bispo.
Da vasta engrenagem fazem também parte técnicos e responsáveis de várias associações. Cláudia Pereira, 20 anos de experiência na área da intervenção social, hoje coordenadora de investigação e desenvolvimento na Ares do Pinhal, é uma delas. “Temos sempre pessoas novas a tentar entrar, mas damos prioridade às que vêm sinalizadas pelas equipas de rua”, justifica. De resto, a realidade que lhe passa todos os dias à frente dos olhos não deixa grande margem para dúvidas: o número de pessoas a precisar desesperadamente de ajuda está a aumentar. “Chega-nos aqui muita gente que trabalhava na restauração, na hotelaria, na construção civil.” Tudo atividades que sofreram um forte abalo com a pandemia. “Muitos arrumadores também.” O pior, testemunha Cláudia, é para quem vem de fora e se vê num aperto, sem rede que possa servir de suporte. “A maior parte são estrangeiros, diria que a partir dos 35 anos.”
Vir a Portugal encontrar a miséria
Maria Socorro, natural de Cabo Verde, 50 anos no B.I. ainda que o rosto lhe esconda uns quantos, sabe bem o que é partir do país de origem em busca de uma vida melhor e acabar igualmente condenada a dias de miséria. Em África, andou nos campos, de enxada em riste, apanhou bananas, jura que até pedras na cabeça carregou. Depois, ousou mudar-se para Portugal. Já lá vão 19 anos. Veio para tratar uma filha pequena. Maria não contém as lágrimas. A descendente morreria anos depois, quando estava grávida. Mas ela não mais saiu de Portugal. “Quis continuar aqui para trabalhar para os outros filhos.” Teve nove, ao todo. Dois acabariam por lhe ser retirados cá, por não ter casa. Os olhos voltam a encher-se de água. Estilhaços de uma vida sempre levada aos solavancos, entre restaurantes e limpezas. “Trabalhei, parei, trabalhei, parei, foi sempre assim.” Por isso, até já tinha estado dois anos a viver na rua.“Mesmo com dores, gosto de trabalhar – e quero trabalhar para pagar um quarto”, garante Maria Socorro
Nos últimos tempos, a vida parecia tentada a endireitar-se. Maria trabalhava como copeira num restaurante “que tinha muita gente, muitos turistas”, sem contrato mas com o mínimo para ir vivendo. Desde outubro que estava num quarto, com o companheiro de há um ano. Mas depois veio a pandemia. O restaurante ficou à míngua de gente e o patrão anunciou-lhe: “Maria, vou ter de te mandar embora. Não há clientes. Se a situação melhorar, eu volto a chamar-te [até hoje não chamou].” Maria já nem sabe dizer quando foi. Tem a cabeça às voltas com os socos que tem levado. Sabe que chorou. Que, sem trabalho, deixou de ter dinheiro para pagar o quarto e acabou a dormir nas escadas de um prédio. Outra vez. Só não ficou lá mais tempo porque um “senhor português” que a encontrou a levou até ao Casal Vistoso. Agora, tem uma cama e o mínimo de dignidade. “Vou agradecer até morrer o que eles têm feito por mim.” Até já voltou a arranjar um “trabalhito” nas limpezas. Mesmo que o calcanhar lhe doa tanto que tem de andar de muletas. “Mesmo com dores, gosto de trabalhar – e quero trabalhar para conseguir voltar a pagar um quarto”, atira, determinada a encontrar abrigo em dias melhores.
Também Abm Wahiduj Jaman, 51 anos, natural do Bangladesh, viu em Portugal (e no Porto) o destino perfeito para viver em tranquilidade com a mulher e as três filhas. Veio em turismo e acabou por ficar a trabalhar, na premissa de criar condições para que a companheira e as descendentes se pudessem juntar a ele. Trabalhou em restaurantes e em lojas de souvenirs. Era numa das últimas que estava nos últimos meses. E ia dando para viver. Mesmo que partilhasse casa com mais de uma dezena de pessoas. Mas depois veio a covid. Há mês e meio, ficou infetado e passou quase duas semanas internado. Teve de sair da casa onde estava (até porque havia lá mais casos positivos) e ainda ficou sem contrato de trabalho – portanto, sem meios de pagar um novo quarto. Primeiro arranjaram-lhe um albergue, mas foi uma solução temporária. Depois ainda passou duas noites a dormir na cave da loja do patrão. Mas por ser asmático não aguentou. Agora, sobrevive graças à ajuda da União de Freguesias do Centro Histórico, que todas as semanas entrega comida a várias pessoas da comunidade. E à boa vontade de um amigo, que lhe emprestou uma cama por 15 dias. Mas continua a ter três prestações da renda da última casa em atraso. E a não ter trabalho para as pagar. “Tenho tentado tudo, mas até agora não consegui nada.”
“Tenho tentado todo o tipo de trabalho, mas até agora não consegui nada”, afirma Wahiduj Jaman
(Foto: Pedro Granadeiro/Global Imagens)
As dificuldades com que Abm Wahiduj Jaman se depara são comuns a muitos dos cerca de 600 bangladeshianos que atualmente vivem no centro da cidade, garante Alam Kazol, fundador e presidente da Comunidade de Bangladesh no Porto. “Há muita gente que perdeu o emprego. A maior parte das pessoas trabalhava em lojas de souvenirs, na restauração, na construção. Muitas lojas de souvenirs estiveram quatro e cinco meses fechadas. E mesmo agora que abriram não há movimento. Na restauração também houve uma quebra muito grande. Tenho conhecimento de muita gente a dormir em lojas, porque não têm trabalho e não conseguem pagar renda.”
O limbo, sem perspetivas, a vergonha
As dificuldades de Abm são também reflexo do ponto a que muitos vão chegando. Estrangeiros e portugueses. O ponto em que, não sendo ainda sem-abrigo, se encontram já em situações altamente precárias, sobrevivendo a custo, sem perspetivas para o dia de amanhã. É nessa bolha de angústia que Ricardo Guedes, 44 anos, natural do Porto, vive há semanas. Desde o início de ano que tem sido apanhado numa espécie de tempestade perfeita. Na altura, vivia ele tranquilamente com a mulher e dois filhos numa moradia T2+1 em Ermesinde, a pagar 250 euros por mês, quando foi despejado. “Não por haver problemas com rendas. O senhorio vendeu a casa e no espaço de 15 dias tivemos de sair.” Para piorar, o contrato anual de trabalho que tinha assinado com a Junta de Freguesia de Ermesinde – trabalhava na área da jardinagem – tinha terminado pouco antes. “Passado um, dois meses, iam renovar. É sempre assim. Mas precisava de estar a viver em Ermesinde.” Só que isso implicava ter de pagar dois meses de entrada de renda de uma nova casa. E ele não tinha como.“Se não fosse a pandemia acho que a minha situação já estava resolvida. Só que não há trabalho”, explica Ricardo Guedes
Então foi com a mulher (que sofre de uma anemia grave e não trabalha) para uma pensão do Porto, “sem condições nenhumas”. Os filhos, de 13 e 15 anos, ficaram com uma tia. Depois, foram passar férias com a avó, no Alentejo. Era a janela de tempo de que precisava para voltar a arranjar algo e endireitar a vida, pensava Ricardo. Só não contava com a pandemia. “Se não fosse isto acho que a minha situação já estava resolvida. Só que não há trabalhos. Vejo tudo, peço ajuda a toda a gente, mas até agora nada. Vou só arranjando uns biscates aqui e ali.” Entretanto, teve de deixar os filhos ao cuidado do Terço, uma IPSS que acolhe crianças e jovens em risco. Mesmo que não abdique de estar com eles todos os dias. “São a minha motivação. Quando acordo de manhã até tremo, só de pensar como vou arranjar dinheiro para pagar mais um dia na pensão. Até já tive um princípio de um ataque cardíaco. Sou honesto, não sei como isto vai ser.” E o desespero cola-se-lhe ao rosto.
Para não passar fome, vai buscar comida à Porta Solidária, no Marquês. Todos os dias, a partir das 17. 30 horas, há refeições prontas a serem distribuídas. E cada vez mais gente a solicitá-las. “Em março, distribuíamos mais ou menos 160 kits por dia. Agora, o número ronda os 500”, elucida Marta França, 42 anos, voluntária na Porta Solidária desde 18 de março, algures nos primórdios da pandemia. “Temos um bocado de tudo. Brasileiros, alemães, africanos. No outro dia, até uma senhora do Uzbequistão nos apareceu aqui, com duas filhas.” Portugueses também. Do técnico superior de informática ao instrutor de fitness, passando pela velhinha de 90 anos e o casal com dois filhos que não falha um dia. E cabeleireiras. Esteticistas. “Há muita gente que vem aqui porque perdeu o emprego por causa da pandemia”, observa Marta, habituada a meter conversa com quem lá vai. Há muita vergonha também. “Volta e meia aparecem pessoas de máscara, óculos escuros e carapuço, em que não se vê rigorosamente nada.”“Não gosto de pedir, tenho muita vergonha. Mas estou a tentar evitar ir por caminhos que não são corretos”, conta João Cândido
É o caso de João Cândido. Junta-se à fila da Porta Solidária de carapuço, meio a um canto. Vai falando por simpatia, mas prefere esconder o rosto. Trabalha como oficial eletricista, na construção civil. Ou trabalhava. Passou os últimos oito anos a trabalhar em Espanha. Vivia confortável, assegura. Mas com o fecho das fronteiras “só quase ficaram a trabalhar lá os espanhóis”. No regresso, há quatro meses, ainda arranjou que fazer, numa empresa de construção civil. “A trabalhar no negro.” Mas também acabou dispensado. “Era uma empresa pequena, ficaram só os familiares diretos do patrão.” Desde então, depende da boa vontade das instituições para almoçar e jantar. Espera nervosamente pelo RSI para ver se consegue continuar a pagar os 150 euros do quarto onde está. E vai pedindo umas moedas para poder tomar o pequeno-almoço no café e folhear o JN em busca de emprego. “Não gosto de pedir, tenho muita vergonha. Mas estou a tentar evitar ir por caminhos que não são corretos. A pandemia veio virar tudo do avesso. Tinha uma vida estável, contava voltar a Portugal só daqui a dez anos, já tranquilo. E agora estou assim.” E segue rua fora, o carapuço preto a disfarçar-lhe o rosto e a vergonha, o medo de que, em breve, também ele deixe de ter para onde ir, depois de apanhar o saco com o jantar.