Durante o confinamento, os alunos portugueses gostaram de gerir melhor o seu tempo. Trabalharam mais mas sentiram-se menos exaustos. E mais autónomos. Numa semana em que cerca de 1,3 milhões de alunos regressam às aulas, estas são pistas para repensarmos a escola, defendem investigadores. Que deixam um alerta: um regresso “militarizado” à escola pode desencadear uma pandemia de saúde mental.
Os alunos portugueses são dos que menos gostam da escola, demonstram-no vários estudos anteriores à pandemia. Dos que se sentem mais cansados e mais stressados, sobretudo com as notas, também por terem das cargas lectivas mais pesadas num conjunto de 42 países analisados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). E agora, inquiridos durante o confinamento, um dos aspectos que apontaram como positivos foi a possibilidade que lhes foi dada de gerir melhor o seu tempo. “Disseram, logo à partida, que andavam muito menos exaustos”, aponta Margarida Gaspar de Matos, psicóloga, investigadora da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa e coordenadora deste inquérito. Chama-se “A Voz dos Jovens”, foi conduzido por Cátia Branquinho, entre 14 de Abril e 18 de Maio, e permitiu ouvir 617 jovens entre os 16 e os 24 anos, devendo agora ser publicado no Journal of Community Psychology. E não se ouve nestes testemunhos o elogio da preguiça. “Os jovens até sentiram que trabalharam mais, a diferença foi que conseguiram gerir melhor o seu tempo e de forma mais autónoma. Se antes chegavam ao fim do dia tão cansados que nem lhes apetecia ir fazer mais uma pesquisa para a escola, durante o confinamento fizeram-no sem problemas”, explicita a investigadora, para concluir: a paragem forçada pela pandemia devia ser gatilho para repensarmos a escola.
“Os alunos portugueses sentem-se abalroados com uma quantidade de matéria. É algo que já sabíamos de estudos anteriores, e que o alívio que sentiram durante o confinamento veio confirmar”, exemplifica a psicóloga e investigadora, para quem este aspecto devia impor mudanças nesta semana em que quase 1,3 milhões de alunos começam a regressar presencialmente às escolas públicas, do pré-escolar ao secundário, preparando-se para enfrentar um ano lectivo que, no caso do pré-escolar e do 1.º e 2.º ciclo se estende até 30 de Junho, e num cenário que é radical e compreensivelmente diferente do de anos anteriores. E porque a necessidade de travar a propagação do coronavírus vai rigidificar trajectos e comportamentos e conter manifestações de afecto, privando as escolas daquilo que os alunos mais declaram gostar, é importante que aquelas saibam contornar o problema.
“Se não conseguirmos evitar o carácter dramático e militarista deste regresso à escola, podemos estar a mergulhar numa pandemia de saúde mental”, avisa ainda Margarida Gaspar de Matos, atendo-se ainda às conclusões do inquérito que demonstrou que os alunos não sentiram falta das aulas mas da escola sim, sobretudo dos amigos. E conseguir incutir-lhes “a confiança, a segurança e a tranquilidade” essenciais ao seu bem-estar, implica desde logo, segundo a investigadora, que nesta primeira semana de regresso às aulas seja dado tempo aos professores para ouvirem os alunos, esquecendo por momentos a pressa em recuperar aprendizagens. “Os miúdos são os ‘utentes’ disto tudo e têm ideias de como é que hão-de fazer. Por isso, devem poder ser ouvidos, sobre o que foi, o que lhes faz falta, no que é que podem ajudar”, reforça a investigadora.
Pôr os adolescentes a ajudar os mais pequenos
Claro que nada disto será possível se os currículos não forem depurados. “O secretário de Estado [adjunto e da Educação, João Costa] disse que os professores dos diferentes grupos disciplinares foram chamados a fazer um estudo das matérias e a separar o que é estruturante e o que é acessório. Isso pareceu-me óptimo, porque, se tivermos a matéria reduzida ao que é estruturante e útil para a continuidade do ensino, o professor fica mais descontraído e mais livre, em vez de estar com aquele stress todo nas aulas”, sublinha Margarida Gaspar de Matos. “Se o professor tiver de dar a matéria em 78 rotações, para conseguir dar tudo numa carga horária que ainda por cima é reduzida este ano, o resultado será calamitoso”, enfatiza, reportando-se ao resultado de estudos anteriores que mostram que o menor gosto dos alunos portugueses pela escola decorre em grande parte do peso das avaliações, do excesso de matéria e da pressão dos pais face às notas.
Idealmente, as mudanças impostas pela pandemia deveriam assim ser usadas para “avaliar o stress avaliativo”, ainda segundo aquela especialista, para quem “o foco exagerado nas notas” desvia a escola da sua função primordial. “Se os alunos só trabalham para as notas, perdem o gosto por aprender. Sabemos é que idealista e romântico, mas as avaliações deveriam funcionar como uma aferição das aprendizagens e não como o seu objectivo único”, acrescenta, para reforçar a ideia de que, assegurada a leccionação da matéria basilar, as escolas têm mesmo de dispor de tempo para, revendo métodos e objectivos, funcionarem como locais onde os alunos se sentem acolhidos e tranquilos.
Consoante as idades, as estratégias a adoptar devem ser diferentes. “Com miúdos de cinco e seis anos, é fácil tornar as regras numa coisa lúdica, numa brincadeira para todos ganharmos ao vírus. E os pais também têm de ser capazes de conter a sua própria ansiedade e de não a passarem aos miúdos quando os deixam na escola”, sugere a psicóloga, acrescentando que aos “oito, nove ou dez anos, as crianças gostam naturalmente de fazer sentido do mundo e tendem até a ser demasiado rígidos nas regras, o que pode ajudar”. Quanto aos adolescentes, “o mais inteligente será chamá-los a participar na definição do que é que se vai passar na escola”, preconiza. “Não devemos menosprezar a capacidade que o adolescente tem para nos surpreender na sua criatividade de ir contra o estabelecido. Nem estamos em condições de enfrentar um batalhão de adolescentes a pôr em causa as regras, pelo que o melhor será, por exemplo, chamá-los a participar na definição das regras e, por exemplo, a monitorizar e a ensinar os mais pequeninos”, conclui.