4.9.20

Covid-19 vai provocar uma quebra na natalidade? “Não sei se isto vai durar um ano, se três, por isso decidi avançar”

Helena Bento, in Expresso

A pandemia surgiu, foi imposto o confinamento e algumas pessoas foram para casa. Daí até se supor que isso poderia resultar em filhos, ou mais filhos, foi um pequeno passo. Mas será mesmo assim? No hospital de São João, no Porto, o número de ecografias quase duplicou em relação ao ano passado, mas ainda é cedo para tirar conclusões. A crise que vivemos é completamente nova, não é apenas financeira e não tem apenas impactos sociais. Tem tudo isso e também os impactos na saúde pública. São muitas as componentes que podem levar o casal a adiar o projeto de parentalidade”

O confinamento trouxe dúvidas a uns e certezas a outros. No caso de Raquel Cadilha, de 30 anos, fê-la querer ser mãe pela segunda vez. “O facto de eu e o meu marido termos ficado em casa fez com que passássemos mais tempo juntos e também com a nossa filha. Percebemos que talvez lhe fizesse falta um irmão e começámos a falar sobre o assunto”. Foram “deixando as coisas correr” e quando deram por ela “já estava”, Raquel estava grávida.

“Foi um pouco assim. Acho que se a proximidade das famílias, em alguns casos, pode ter causado stress, noutros houve um abrandamento. As pessoas abrandaram e em termos familiares e emocionais deu-se um certo recolhimento. Isso se calhar deu origem a projetos que estavam pendentes”, diz ao Expresso. Ainda assim, tem amigas que decidiram adiar a decisão de engravidar devido à pandemia. “Interromperam esse plano porque, tratando-se do primeiro filho, tiveram receio. No meu caso, como é a segunda gravidez, já não há tanto aquela fantasia com o momento de dar à luz, e o projeto familiar acabou por pesar mais do que todas essas questões emocionais associadas ao parto.” Também o dinheiro não pesou, não fez adiar a decisão, até porque não falta estabilidade económica. Ela trabalha — é técnica no hospital de São João, no Porto — e o marido também — é gestor.

Este seria o momento em que diríamos que Raquel é uma exceção ou uma entre muitas, e daí a sua inclusão no texto, mas não dá para o fazer ainda. Quando foi imposto o confinamento devido à pandemia de covid-19, sugeriu-se, às vezes em tom jocoso, como uma piada, outras em tom mais sério, que isso poderia ter reflexos na natalidade em Portugal. O raciocínio era: mais tempo em casa, mais tempo em casal, naturalmente bom, logo mais filhos, ou filhos apenas. Marina Moucho, diretora da Urgência de Ginecologia e Obstetrícia do hospital de São João, como que confirma essa suposição: “Muitas pessoas veem o facto de estar mais tempo em casa, em lay-off ou noutras situações laborais, como uma oportunidade para ter filhos. Falei com muitas mulheres que me disseram isso, que já que têm de ficar em casa, então vão aproveitar para ter outro bebé”, diz ao Expresso.

Não lhe parece, por isso, que possa haver uma diminuição da natalidade, “pelo menos no imediato”. “A parte económica pesa sempre na decisão de engravidar, mas creio que o seu impacto, a fazer-se sentir, será apenas daqui a algum tempo”. Além de uma perceção, que formou a partir das conversas em consultas com mulheres grávidas, Marina Moucho também tem números. E os números que tem de ecografias realizadas no primeiro trimestre deste ano dão-lhe razão: 244, quando em 2019 tinham sido 133. “Pode ter havido fuga dos hospitais privados por dificuldade de marcação, mas mesmo assim é quase o dobro.”

“É POSSÍVEL QUE O NÚMERO DE NASCIMENTOS DIMINUA”

Especialistas de diferentes disciplinas têm perceções e ideias — e também dados — diferentes. Para Maria João Valente Rosa, professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e especialista em áreas como a do envelhecimento, migrações e natalidade, não é de todo claro que a natalidade aumente devido ao confinamento. O mais provável é até acontecer o contrário. “É possível que o número de nascimentos diminua”, diz ao Expresso, explicando que a estabilidade é o “segundo fator que mais interfere na decisão de ter um filho, a seguir à vontade”, e que ela, neste momento, “não está garantida”. “Esta estabilidade tem que ver, entre outros aspectos, com o emprego e os rendimentos, e neste momento tudo isso está em causa. As taxas de desemprego deverão continuar a aumentar, em virtude da pandemia” (o Governo prevê uma taxa de desemprego este ano de 9,6%, o Banco de Portugal aponta para 10,1%).

O terceiro fator, segundo a enumeração da socióloga e demógrafa, é a segurança — e é também por aí que falha qualquer tentativa de comparar a atual crise com a de 2008, e seus efeitos na natalidade. “Há aqui um elemento que não havia antes, que é o medo. O medo em relação ao que experienciamos e à forma como olhamos para os outros, e do que poderá acontecer se se partir para um projeto parental”, afirma, e explica melhor: “Ao observar os casais com filhos, no contexto do confinamento, no regresso incerto à escola e no apoio na primeira infância, casais sem filhos podem acabar por repensar esse projeto”. Além disso, acrescenta, “há a questão do acompanhamento médico na gravidez, que neste momento tem regras diferentes do passado e não são favoráveis”.

Fernando Cirurgião, diretor do serviço de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de São Francisco Xavier, em Lisboa, admite essa hipótese. “É possível que muitos casais pensem que não estão assegurados todos os cuidados e isso interfira na decisão de ter um filho”, dada a prioridade que foi dada ao vírus pelos serviços de saúde em relação a outras doenças, porventura mais graves. Numa das conferências de imprensa da Direção-Geral da Saúde, António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, adiantou que, comparando com maio de 2019, realizaram-se menos 16,8% de consultas médicas e menos 28,8% de cirurgias.

Vânia Coimbra, enfermeira especialista em Saúde Materna e Obstétrica no centro de saúde de Santa Maria da Feira, fala também desses receios, “que nos primeiros dois, três meses de pandemia”, levaram a “maioria das mulheres” que recorrem àquele serviço a adiar a gravidez. Entretanto, e com o “desconfinamento e a existência de mais informação sobre ao vírus”, notou-se um 'boom', como diz. “Decidiram que não iam adiar mais. É como elas me dizem: 'Não sabemos se isto vai durar dois ou três meses ou um ano, por isso porque é que vou continuar a adiar?' Muitas também já têm mais de 35 anos e o fator idade pesa sempre.” São mulheres, ainda assim, que queriam engravidar antes da pandemia, não que decidiram recentemente. “Não acho que o confinamento tenha contribuído para um aumento do número de mulheres grávidas, mas conheço vários casos de jovens, de classes sociais mais desfavorecidas, que ficaram sem acesso aos cuidados de saúde e aos métodos contracetivos durante esse período, e acabaram por engravidar, mesmo não o desejando e não tendo planeado.”

Além dos receios, outras razões podem pesar na decisão de não ter filhos agora, e que têm que ver com a forma “como a gravidez é vivida agora, desde a necessidade de fazer testes de deteção do vírus antes do parto à proibição de o pai assistir”, continua Fernando Cirurgião. “Isso pode, sem dúvida, levar os casais a achar que não é a altura ideal para ter filhos”. Ainda assim, relembra: “Muitos casais acabam por sobrepor o facto de ter filhos ao resto. A vontade sobrepõe-se sempre ao resto, independentemente das circunstâncias.” É o caso de Leonor Ferreira, que tem 32 anos e vive em Lisboa. “Não quis adiar mais a minha vida”, diz ao Expresso, justificando assim a decisão de ter o segundo filho. Mas há outras razões, nomeadamente a estabilidade profissional. “Eu trabalhei muitos anos a recibos verdes, como advogada. Agora estou numa posição diferente, mais confortável, não tenho receio de perder o emprego, e também por isso tomei a decisão de engravidar. Se fosse antes, certamente teria ficado pelo primeiro filho”. Conta que já tinha tentado engravidar outras vezes e o “bichinho” de ter mais filhos ficou.

Voltando a Maria João Valente Rosa, há ainda outro fator a acrescentar à lista: a incerteza “em relação ao futuro”, que é muita. “A crise que vivemos é completamente nova, não é apenas financeira e não tem apenas impactos sociais. Tem tudo isso mais os impactos na saúde pública. São muitas as componentes que podem levar o casal a adiar o projeto de parentalidade”, diz. E se esse projeto é adiado, já se sabe o que acontece a seguir, isso está estudado: “Esse adiamento faz não só com que não haja um aumento de nascimentos, como pode levar à sua diminuição, porque o período fértil é limitado e ocorrem, por vezes, nascimentos perdidos”.

Além disso, fica também em causa “a passagem para o segundo filho, situação onde Portugal se demarca, aliás, de alguns países da Europa, nomeadamente os do norte”. “É a sobrecarga sobre as mulheres que as demove, muitas vezes, de ter um segundo filho, e nada me diz que isso tenha mudado com a pandemia, apesar de o casal estar mais tempo em casa”. Estudos feitos nos EUA e no Reino Unido mostram, aliás, o contrário: se “já havia pouca partilha de tarefas, ainda passou a haver menos” durante o confinamento. “Ter um filho não tem a ver com ter tempo livre”, resume.

E, portanto, não só espera uma diminuição da natalidade já em 2021, como um aumento da idade média em que se tem o primeiro filho (que é, atualmente, de 30,5, segundo dados da Pordata), que se irá refletir no chamado índice sintético de fecundidade, que corresponde ao número de filhos que cada mulher tem em média. Se os números já não eram animadores — 1,37 em 2017, 1.41 em 2018 e 1.42 em 2019 — ainda menos positivos se podem tornar. “Quanto mais adiam o nascimento do primeiro filho, mais dificuldades existem para ter o segundo”, diz. “No início dos anos 60, nasciam, em média, cerca de 200 mil crianças por ano, mas desde 2012 esse número é inferior a 90 mil.” Em 2010, nasceram 101 mil crianças de mães residentes em Portugal; em 2018 foram 87.020 e, em 2019, 86.579. Até maio de 2020, nasceram 34.388, segundo números cedidos pelo Instituto Nacional de Estatística.

NATALIDADE DIMINUÍDA “DURANTE OS PRIMEIROS TEMPOS, QUE PODEM BEM SER MAIS DO QUE UMA DÉCADA”

Nos EUA, dois economistas estimaram, num artigo publicado pela Brookings Institution, que no próximo ano podem vir a nascer menos 300 mil a 500 mil crianças, mas Maria João Valente Rosa não arrisca fazer essas contas. “Podemos ter aqui outros efeitos, como o da imigração. Se for forte e superior ao número de saídas, pode compensar a diminuição da natalidade. As entradas têm sempre um papel muito decisivo sobre os nascimentos.” Pedro Pita Barros, economista especializado em saúde e professor na Nova School of Business and Economics, também não aponta números, mas é de facto possível, na sua opinião, que os nascimentos diminuam “durante os primeiros tempos, que podem bem ser mais do que uma década”.

Se o impacto a esse nível será superior ao registado após a crise de 2008, não é claro. “A crise anterior foi, ainda assim, bastante prolongada, e nesta não sabemos verdadeiramente qual a dimensão da crise económica que se possa acumular à crise sanitária”. A incerteza, diz ainda nas respostas enviadas ao Expresso, “é ainda demasiada para podermos fazer uma comparação”. “Sabemos que o primeiro impacto foi muito mais profundo, mas não sabemos como será no cumulativo de dois ou três anos. É de esperar que a incerteza por si só também contribua para um comportamento mais prudente nessas decisões de natalidade”, acrescenta.

A descida do desemprego será um fator, mas há outros de que também dependerá a recuperação da natalidade, pelo menos para níveis próximos dos anteriores à atual crise. “Dependerá provavelmente da forma como o desemprego descer, em termos de posições mais permanentes ou mais precárias do que se tem agora. De momento, há provavelmente um volume de despedimentos que tem sido contido pelas regras de apoio público às empresas, e que se poderá manifestar quanto esse apoio terminar, criando uma segunda onda de desemprego.” Quanto a medidas a adotar pelo Governo para travar a queda da natalidade, duas certezas — “que não devem ser adotadas medidas temporárias, porque a inversão de tendências de natalidade demora tempo e é preciso que as políticas sejam claras e, sobretudo, permanentes”, mas, ao mesmo tempo, que as medidas em vigor “não serão suficientes para repor uma estabilidade demográfica sem imigração”.

Para Carlos Firme, diretor-executivo do BFA (Banco do Fomento Angola) que também já se tem debruçado sobre questões demográficas, qualquer medida a adotar terá de ter em vista, necessariamente, “a mitigação dos efeitos da crise e a potenciação da recuperação no pós-crise”. “Se o que está aqui em causa é uma mudança de planos por efeito de uma alteração das expectativas futuras ou relacionada com o emprego e os rendimentos, a melhor forma de atacar isso será fazer precisamente com que essas expectativas não se alterem pela negativa”. Quer com isto dizer “evitar que a economia não caia tanto e que recupere mais depressa”. “É importante a forma como os fundos europeus vão ser aplicados e chegar às empresas e à economia em geral. É nisso que temos de focar-nos.”

Não lhe escapa, também, a comparação com a anterior crise. “Esta crise é de natureza diferente. O nível de travagem económica é tão grande que há muita incerteza sobre a retoma das atividades. Muitas empresas vão ter de fechar portas e não só poderá haver menos empregos disponíveis, como os salários podem diminuir. A economia vai crescer menos do que antes.” Tudo isso, remata, “poderá influenciar a perspetiva das pessoas a médio e longo prazo e, por essa via, afetar o planeamento familiar”.

Leonor Ferreira diz que a vida a ensinou a ser “temerária” mas também tem medo, medo do vírus, de ser infetada e contagiar o bebé que nasce agora dentro dela. Tanto é que vai permanecer em teletrabalho, enquanto os colegas já começaram a rodar, um tempo em casa, um tempo no local de trabalho. Também a preocupa aquilo a que se refere como a “humanidade nos hospitais”, ou a falta dela por esta altura: “Está tudo depauperado, os profissionais de saúde estão sobrecarregados, as grávidas ficam sozinhas, não podem ver ninguém, não podem mexer no bebé.” Ainda assim, decidiu avançar. “Não sei se isto da crise vai durar um ano, se três, se vou chegar aos 40 e ainda vamos estar todos de máscara e a economia num horror. Por isso decidi arriscar. Viver no medo não leva a lado nenhum.”