4.9.20

Cuidar dos mais velhos: por uma rede pública e universal

por Sandra Monteiro, in Le monde diplomatique

As gerações que combateram a ditadura vão chegando às camas dos hospitais e aos sofás dos lares. Esta não é, felizmente, a realidade de todos os mais velhos, mas é a de um número suficientemente elevado para ser evidente, já muito antes da pandemia, que está a avolumar-se um problema que não é individual, nem familiar, mas colectivo: a qualidade de vida dos mais velhos. A democracia nascente, muito menos envelhecida, deu prioridade à protecção das crianças, em particular em idade escolar, criando a rede de escolas públicas, de acesso universal e gratuito. Esta rede foi uma das grandes responsáveis pela qualificação da população e pela redução das desigualdades socioeconómicas. Agora, num país de baixos salários e pensões, com uma população cada vez mais envelhecida e com elevada esperança de vida – mas com menos anos de vida saudável do que a média europeia –, uma outra prioridade é inadiável: a criação uma rede pública, de acesso universal e gratuito, de apoio aos mais velhos.

A resposta capitalista típica ao aumento da esperança de vida é o aumento constante da idade da reforma. Num sistema que só concebe indivíduos produtivos e rentáveis, só com mobilização social é possível alocar os recursos necessários para o Estado valorizar os cidadãos nas diferentes etapas da vida. Em vez disso, décadas de neoliberalismo construíram um endeusamento da juventude, num ambiente de desprezo pelos mais velhos e pelos seus espaços e tempos. Compreende-se porquê: são espaços menos povoados pelo indivíduo atomizado e sem experiência; são tempos menos seduzíveis pela tirania do imediatismo e da pressa.

O sistema tentou depois convencer os mais jovens de que os mais velhos eram o obstáculo ao seu contrato de trabalho e salário digno. Mas nem a impressionante campanha de construção da mais elogiada categoria social dos últimos tempos – os «jovens diplomados» – poderia iludir por muito tempo que «a geração mais bem preparada de sempre» é biombo para precariedade e salário incapaz de fundar um projecto de vida autónomo. Os jovens que adormeceram nas «políticas de juventude» introduzidas por Cavaco Silva na década de 80 acordaram, muito menos jovens, a olhar para a sua carreira contributiva e a antever pensões mais baixas do que as dos seus pais. Além de constatarem que, se nada for feito, os seus filhos terão salários e pensões ainda piores.

Pelo meio, acentuaram-se muitos outros eixos de exploração, desigualdade e discriminação. Os ritmos de trabalho infernais foram impedindo os mais novos de cuidar dos mais velhos. A metropolização e litoralização do país, com o «fecho» de grande parte do território (fechou a maternidade, a camioneta, o centro de saúde, o posto dos correios, a agência da Caixa Geral de Depósitos…), ainda mais dificultaram a manutenção das redes familiares de apoio mútuo. As desigualdades de género, salariais e outras, ainda mais feminizaram as tarefas de reprodução social, tanto as familiares não remuneradas como as do apoio domiciliário ou em instituições para idosos e crianças. Num trabalho muitas vezes feito por mulheres imigrantes a quem as famílias e as instituições não podem, ou não querem, propor condições salariais e de trabalho estáveis, reproduz-se um ciclo de precariedade e desigualdades que é visível nas condições habitacionais desta população ou na proliferação de uma economia informal, com todas as suas consequências, com e sem pandemia.

A revolução que urge fazer no cuidado aos mais velhos convoca, portanto, toda a sociedade. E beneficiará todos – inclusive os que são hoje mais novos e estão, compreensivelmente, concentrados no emprego, na habitação ou na creche dos filhos.

Enquanto durar a pandemia, é inevitável que a prioridade dos poderes públicos relativamente aos idosos seja mobilizar recursos de emergência para prevenir o contágio de uma população fragilizada e dependente. É prioritário salvar cada vida, em casa, nos hospitais, em lares (Estruturas Residenciais para Idosos, ERPI), sobretudo quando se sabe que um recrudescimento das infecções encontrará um quadro de saúde, física e mental, mais deteriorado do que o existente no início da pandemia. Mais de seis meses de reclusão em casa ou no quarto de um lar, com poucas saídas para os espaços comuns, em grande isolamento de familiares e amigos, poupando nas idas ao médico, deixarão marcas ainda hoje difíceis de abarcar.

Tudo o que puder ser feito para os apoiar, bem como aos profissionais que com eles trabalham, é fundamental. Os reforços recentemente anunciados pelo governo de 110 milhões de euros para aumentar e requalificar a rede de equipamentos de apoio social a idosos (e também a crianças e pessoas com deficiência), no âmbito do PARES 3.0 – Programa de Alargamento da Rede de Equipamentos Sociais, bem como a contratação de 15 mil desempregados do sector do turismo, se devidamente formados para as exigentes tarefas que estes equipamentos exigem, não deixa de ser uma boa notícia. Mas é pelo menos tão importante que se compreenda que estas respostas de emergência transportam já, no seu seio, os problemas futuros.

Os reforços de emergência, se não forem acompanhados de medidas estruturais para a criação de uma rede pública de apoio aos mais velhos, e se esta não assentar numa articulação profunda de equipas da Saúde e da Segurança Social, vão também consolidar opções erradas que acompanham este sector desde a sua génese. Uma delas é a escolha, que o Estado português mantém, de estar ausente da provisão (pública), limitando-se a financiar instituições sociais nas quais delega as competências de cuidar destas populações. O resultado é um agravamento das tendências assistencialistas, que misturam falta de formação e preconceitos, num contexto de uma insuficiente fiscalização pelo Estado dos cuidados prestados (a começar pelos rácios exigidos entre profissionais e utentes, em particular os mais dependentes, com grande prejuízo para a qualidade da sua saúde). As medidas de reforço agora anunciadas para os lares são, além disso, mais um passo na irracionalidade da gestão de recursos que era identificada neste jornal, em Maio último, a propósito do aumento do financiamento público por um Estado pagador que não assume a provisão: «Ora, quando [os idosos institucionalizados] mais precisam de cuidados são colocados ao cuidado do Estado, mas as ERPI continuam a receber a comparticipação do Estado pela sua frequência. Há um duplo (des)investimento público, do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS)» [1].

De qualquer forma, seria realista pensar que instituições sociais – e elas representam 70% da oferta legal dos lares (30% é privada lucrativa) – possam responder bem a institucionalizações crescentemente motivadas por questões de doença, e não de apoio social? Num modelo futuro, não estarão estas instituições mais vocacionadas para um apoio social não institucionalizado, complementando a oferta pública? Esta, de provisão directa e não delegada, deve ser garantida pelo Estado a todos os cidadãos, tanto em contextos de necessária institucionalização como de apoio à manutenção em domicílio próprio. Aos poderes públicos caberá ainda fiscalizar a oferta privada e social, de modo a proteger todos os cidadãos.

Nesta edição, Maria do Rosário Gama defende a criação de um «Serviço Nacional de Apoio aos Mais Velhos», criando oferta pública e potenciando a rede já existente. Pela capacidade de intervenção imediata e pelo conhecimento que certamente trará dos problemas vividos no terreno, é um caminho que urge seguir. Na senda de uma rede pública e universal que possa finalmente honrar a democracia.