18.9.20

Plano integrado do SNS para o Outono e o Inverno? “Vai ser uma manta de retalhos”

Alexandra Campos, in Público on-line

Desde o início da epidemia de covid, foram contratados para o Serviço Nacional de Saúde 4485 novos profissionais, dos quais 180 são médicos e 1391 são enfermeiros, adianta o Ministério da Saúde, que ainda está a ultimar o plano de resposta para o Outono e o Inverno.

O que é que os médicos de família vão fazer quando lhes aparecer alguém com tosse e febre? Terá toda a gente com sintomas de infecção respiratória que fazer testes de diagnóstico do novo coronavírus? E como vão os médicos responder quando as pessoas suspeitas de infecção pelo SARS-CoV-2 lhes pedirem baixas? São estas “as duas grandes dúvidas” que atormentam o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Rui Nogueira, a uma semana do início do Outono e quando se antecipa um cenário de pressão e sobrecarga do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ainda mais intenso do que o habitual nesta altura do ano, devido à circulação em simultâneo do novo coronavírus, do vírus da gripe e dos outros vírus que provocam infecções respiratórias com sintomas que se confundem, numa mistura explosiva com uma eventual segunda onda de covid-19. Em Julho, o primeiro-ministro avisava que já não havia muito tempo para preparar o SNS para o Outono e o Inverno, mas, dois meses depois, ainda não é conhecida a estratégia integrada de resposta e as críticas avolumam-se.

O plano Outono-Inverno “está a ser ultimado e será conhecido muito em breve”, é a resposta do gabinete da ministra da Saúde ao PÚBLICO que quis saber quando irá ser apresentada a “estratégia integrada” de resposta que está a ser preparada há semanas. Questionado sobre a contratação de novos profissionais de saúde (no Portal da Transparência do SNS, de Março a Julho, estão contabilizados cerca de 3200, substancialmente menos do que tem sido anunciado), o gabinete de Marta Temido especificou que, desde o início da pandemia, foram contratados já 4485, entre os quais 180 médicos, 1391 enfermeiros e 1894 assistentes operacionais.

De resto, o gabinete da ministra adianta apenas, do lote das medqidas que têm vindo a ser anunciadas ao longo das últimas semanas, que a vacinação contra a gripe - ue este ano vai ser a maior de sempre, com dois milhões de doses dadas no SNS e mais 600 mil à venda nas farmácias – deve ocorrer já “no final de Setembro numa estratégia faseada, em que os grupos prioritários serão os residentes” em lares e em unidades de cuidados continuados, “bem como profissionais de saúde e do sector social que prestem cuidados de saúde”.

A vacinação contra a gripe é muito importante e os médicos de família até já estão a passar receitas para as vacinas, afirma Rui Nogueira, que insiste, porém, na urgência das respostas para as suas duas grandes dúvidas. Lembrando que os médicos de família podem ver, no pico da época da gripe sazonal e do frio, entre 10 mil a 15 mil ou até mais doentes por dia com sintomas de infecções respiratórias, insiste que é preciso esclarecer o que se deve fazer nestas situações. Há um grupo, com agravamento de doenças, com factores de risco, que tem que ir para o hospital, há outro que não, e depois há um grupo intermédio que precisa de ser visto com atenção, acentua. “Mas, por definição, neste momento todos têm que fazer teste de diagnóstico. Isto faz sentido? Para quê fazer o teste se todos têm que ficar em casa, caso estejam infectados ou não”, pergunta.

Quanto ao outro problema que preocupa os médicos de família, o da previsível inundação de pessoas à procura de baixas para apresentar no trabalho, Rui Nogueira quer ver esclarecido se, neste contexto pandémico, tal se justifica. “Não bastará que comuniquem à entidade patronal? Esta é uma questão laboral, administrativa, não clínica”, defende, reclamando “orientações a nível nacional”. “Não basta dizer às pessoas que liguem para o SNS 24. Fiquei muito admirado quando ouvi o director de uma escola dizer que começaram a preparar-se em Junho. Nós não temos nada! Cheguei a dizer à ministra que tínhamos uma mão cheia de nada. E nós somos a trincheira, a linha da frente. São 900 unidades em todo o país e temo que cada uma se esteja a preparar por si só. Vai ser uma manta de retalhos”, prevê.

Com autonomia e os seus próprios planos de contingência, nos hospitais a situação é diferente. Mas o presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, também não é parco nas críticas. “Os hospitais estão a preparar-se mas numa lógica individual. Desde Abril que falamos na necessidade de organizar a resposta, covid e não covid, como um todo, com níveis de activação que permitam a realocação de recursos de um lado para o outro”. E o que aconteceu, entretanto? Em Maio saiu um despacho da ministra da Saúde e em Junho houve uma resolução de Conselho de Ministros que decidiu a duplicação da capacidade dos cuidados intensivos, o aumento da rede laboratorial, a dotação de 700 mil euros para a saúde pública e incentivos para os médicos, recorda.

“Na prática, porém, nunca se viu um plano integrado de resposta. Tivemos uma janela de oportunidade desde o final de Abril para rever processos e reorganizar tudo, mas não há um manual de procedimentos que permita que todos percebam qual é o seu papel. O que não pode acontecer é fazer-se uma gestão ao dia e os hospitais e os centros de saúde serem informados através de conferências de imprensa. Não basta dizer que tenho um conjunto de medidas, isso não é um plano. Os hospitais “têm que estar preparados para o pior não podem ficar à espera que vá correr tudo bem”, protesta.
Alargamento das urgências

Antecipando o aumento de afluência, os grandes hospitais estão desde há várias semanas a preparar-se para os próximos meses. O alargamento dos serviços de urgência (SU) e dos cuidados intensivos são as áreas em que este reforço é mais visível. No Centro Hospitalar São João (Porto), o SU está a conquistar o espaço onde antes funcionavam serviços administrativos, o que permitirá o aumento em cerca de um terço do actual serviço. “Vamos ficar com uma área contígua à urgência, com mais espaço clínico, mais alguns gabinetes, vamos crescer para o lado do átrio”, descreve Cristina Marujo, directora do SU.

A colocação de barreiras acrílicas servirá para separar os doentes. “Não queremos mais doentes, queremos os mesmos e idealmente até menos, mas com mais espaço”, explica Nelson Pereira, coordenador da urgência, que antecipa, porém, uma grande pressão sobre o serviço: “De todas as áreas do SNS quem mais vai sofrer são os serviços de urgência, porque não vai ser possível distinguir sintomas”. A capacidade de testagem não está posta em risco, o S. João já fez mais de 600 testes por dia e até deu resposta a outros hospitais. “Por aí não vai rebentar”, garante.

No hospital de Santa Maria (Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte), foi instalada uma nova urgência em “contentores diferenciados” e a estratégia passa por ir “escalando” a resposta em função das necessidades. Com a expectativa de que neste Inverno a gripe possa ter um impacto menor devido ao uso de máscara e distanciamento físico, o director clínico, Luís Pinheiro, acentua que o centro hospitalar, que integra também o Pulido Valente, pode fazer até 700 testes de diagnóstico, se não houver dificuldades no fornecimento de reagentes. Nos cuidados intensivos, a filosofia é também “a da escalabilidade e flexibilidade na utilização de espaço”, podendo-se chegar até às 70 camas.

Mas há um problema: a falta de recursos humanos. “Tentamos recrutar enfermeiros e assistentes operacionais mas estes recursos nem sempre existem no mercado”, lamenta. O centro hospitalar tem um plano para trabalhar a partir da lotação-base, com camas que podem ser activadas no Pulido Valente, nomeadamente no espaço onde ficaram os portugueses repatriados de Wuhan em Fevereiro, que funcionará como enfermaria. O que se pretende acima de tudo é “não ter doentes em lotação supranumarária [macas]”. Um problema que poderia ser ultrapassado se houvesse uma resposta rápida para os chamados internamentos sociais (pessoas que já podiam ter alta mas não têm para onde ir), que no pico de Inverno são 40 a 50.

O investimento no SU repete-se noutros hospitais. No Centro Hospitalar do Porto (que integra o Santo António) o espaço da urgência foi recentemente alargado e tem uma unidade médica de curta duração, boxes de oxigenoterapia, três áreas dedicadas a covid-19, actualmente em pousio, mas poderão ser recrutadas de novo, adianta o director clínico, José Barros. Neste centro hospitalar, existe um grupo multiprofissional de acompanhamento e intervenção permanente, coordenado por um adjunto do director clínico.

Na Unidade Local de Saúde de Matosinhos, apostou-se também no alargamento da capacidade dos cuidados intensivos, com mais 11 quartos individuais com pressão negativa, numa nova unidade construída em tempo recorde, recorda o presidente do conselho de administração, António Taveira Gomes. A capacidade de testagem também pode crescer e, se tal se revelar necessário, poderá ser activada mais uma área de internamento para doentes não covid. Taveira Gomes acredita que a principal pressão será colocada sobre a testagem, até porque, frisa, as pessoas nunca andaram tão protegidas como este ano. “Podemos ter um Inverno como nunca visto”, acredita.

Nas cinco administrações regionais de saúde (ARS), já há semanas que estão a ser preparados os planos de contingência sazonais para o Inverno e reforçados os recursos humanos, nomeadamente a contratação de médicos de família que vão ser admitidos no concurso que este ano se atrasou devido à epidemia de covid. A aposta nas teleconsultas e na marcação prévia de consultas presenciais e o investimento nas centrais telefónicas e na disponibilização de telemóveis aos profissionais é destacada de forma quase unânime pelas ARS, que enfatizam também o arranque, este ano antecipado para o início de Outubro, da vacinação para a gripe sazonal.