18.9.20

Ursula von der Leyen: “Sempre vi em Portugal um forte aliado pela causa da Europa”

 Rita Siza, in Público on-line

A presidente da Comissão Europeia deixou para trás a angústia inicial da resposta à crise do novo coronavírus, e apesar das dificuldades e incertezas, já só tem na mira o futuro pós covid-19.

A presidente da Comissão Europeia deixou para trás a angústia inicial da resposta à crise do novo coronavírus, e apesar das dificuldades e incertezas, já só tem na mira o futuro pós Covid-19. Depois da terapia de choque para conter os danos provocados pela pandemia, a líder do executivo está agora a pensar nos melhores tratamentos para garantir que o bloco se restabelece mais forte e bem preparado para o futuro. Numa entrevista colectiva com uma dezena de jornais europeus, entre os quais o PÚBLICO, Ursula von der Leyen sublinhou que Portugal terá um papel essencial no processo de reconstrução da crise, a partir de Janeiro de 2021, quando assumir a presidência da União Europeia.

No seu discurso sobre o estado da União Europeia, e nas cartas que enviou ao presidente do Parlamento Europeu e à chanceler da Alemanha, avançou um ambicioso programa de trabalho: contei 44 propostas legislativas, planos, estratégias e comunicações que a Comissão quer adoptar no próximo ano. Em quais destas iniciativas gostaria que a presidência portuguesa se concentrasse primeiro? E quais os temas em que acha que a cooperação com Lisboa pode fazer a diferença?

Aguardo com grande expectativa a presidência portuguesa. Desde que assumi o cargo sempre vi em Portugal um forte aliado pela causa da Europa. A tarefa que agora vai ter pela frente vai ser de liderar e abrir o caminho para deixarmos o actual estado de incerteza e fragilidade provocado pelo coronavírus e iniciarmos o processo de recuperação, aproveitando a oportunidade do [fundo] “Próxima Geração UE” para mais modernização, mais digitalização e mais sustentabilidade para a nossa economia.

Quando apresentamos o Pacto Verde (Green Deal), Portugal afirmou-se imediatamente como um grande aliado e defensor dessa causa. E penso que voltará a jogar um papel fundamental neste processo de recuperação, que vai criar as condições para a nossa transformação no futuro. A nossa missão, na qual estamos ambos investidos, é começar a resolver problemas e não deixar essa responsabilidade para as gerações futuras.


A Comissão acaba de publicar as orientações para os países desenharem os respectivos planos nacionais de recuperação e resiliência, que têm de reservar 37% dos investimentos ao combate às alterações climáticas, 20% para a transição digital…. A Comissão está a pre-destinar o dinheiro porque tem receio que os governos em vez de fazer reformas usem as verbas para financiar baixas de impostos e outros desígnios políticos? Qual é a margem de discricionariedade de cada Estado membro?

No nosso histórico Conselho Europeu de Julho, em que lançámos o fundo de recuperação “Próxima Geração UE”, houve um consenso muito alargado relativamente às duas prioridades da digitalização e do Green Deal. Foi um momento muito importante que mostrou de facto como a Europa está unida e comprometida com esta estratégia da dupla transição — aliás logo nas conclusões do Conselho ficou inscrita esta ideia de que 30% do nosso orçamento total, os 1,8 biliões de euros que mobilizámos para os próximos sete anos, tem de ser usado no combate às alterações climáticas. Todos concordaram com esta ambição, aliás, naqueles quatro dias e quatro noites que passámos a negociar, ninguém questionou que as prioridades fossem a digitalização e o Green Deal.

Sempre disse que os planos nacionais de recuperação e resiliência têm de ser individuais, porque são os Estados membros que sabem o que é melhor para a sua recuperação económica. Mas estamos alinhados nos objectivos de modernização e de sustentabilidade, o que quer dizer que esta grelha para a alocação das verbas do Instrumento de Recuperação e Resiliência é do interesse comum da Comissão e dos Estados membros.

Existe um sério risco para o sucesso da recuperação que passa pelo fracasso das negociações da UE com o Reino Unido e a hipótese de um no deal no fim do período de transição do “Brexit”. Qual é o seu grau de confiança e optimismo na assinatura de um acordo comercial com o Governo britânico?

Nós queremos um acordo comercial, e por isso foi uma surpresa tão desagradável ver o acordo [de saída] existente ser posto em causa pela proposta de lei [do mercado interno] do Reino Unido — que agora tem de ser capaz de reparar a situação e restaurar a confiança que se quebrou. Isso para nós é o mais importante, e será determinante para o sucesso das negociações. Continuo convencida que é possível assinar um acordo para a nossa parceria económica e política antes do fim do ano. Seria melhor não ter esta distracção de ter um ponto de interrogação em cima de um tratado jurídico internacional. Mas o nosso foco continua a ser encontrar um consenso para fechar um acordo. O tempo é curto, chega de distracções.

A UE fez um ultimato ao Governo britânico e na quarta-feira o primeiro-ministro, Boris Johnson, prometeu emendar a proposta para dar ao Parlamento o poder de votar a aplicação das medidas que violam o Protocolo da Irlanda. Essa correcção é suficiente, ou a UE quer mais de Londres?

Para nós a situação é muito simples: existe um acordo assinado para implementar tal como foi assinado. A bola está do lado do Reino Unido, e é inteiramente sua a decisão de como lidar com o problema. Enquanto a lei britânica tentar mudar as provisões jurídicas e os termos estabelecidos no Protocolo da Irlanda teremos um problema. O acordo de saída foi negociado durante três anos para preservar a paz na ilha da Irlanda. A missão que temos agora, dos dois lados, é implementá-lo, não reescrevê-lo. Dissemos isso claramente ao Reino Unido, e esperamos que esta violação seja corrigida até ao fim deste mês.

Também disse claramente à Rússia que espera uma investigação ao envenenamento de Alexei Navalny. No seu discurso do estado da União alertou “os que defendem laços mais estreitos com a Rússia” para o facto de esse não ser um facto isolado, e avisou que “não vai ser um gasoduto que vai mudar alguma coisa” no comportamento da Rússia. Podemos interpretar que está contra o Nordstream 2 ou que defende o cancelamento da sua construção?

Durante muito tempo falou-se no Nordstream 2 como se este fosse apenas um projecto económico mas a minha convicção profunda é que este é um projecto eminentemente político. O que assinalei no meu discurso foi que o padrão de comportamento que a Rússia mostrou não mudou para melhor, mas antes para pior, desde o estabelecimento deste gasoduto. A esperança de que o trabalho conjunto com a Rússia para a construção deste gasoduto permitisse uma melhoria do nosso relacionamento esfumou-se. E portanto, em termos do debate político, penso que é importante destacar que o comportamento da Rússia não se alterou por causa deste projecto. Esse é um facto que não podemos deixar de ter em conta na nossa discussão sobre o tipo de relação que a UE quer ter com a Rússia.

Nessa discussão, qual é a opinião da Comissão sobre a construção do gasoduto?

A Comissão exerceu toda a pressão que podia exercer, mas a questão do gasoduto tem de ser integrada na discussão política com todos os Estados membros. O que digo é que o Nordstream 2 tem que fazer parte do pacote e da abordagem de conjunto sobre as nossas relações com a Rússia.

E as relações com a Turquia, como é que estão? Ancara continua a defender as suas actividades exploratórias de sondagem e perfuração na plataforma continental que a Grécia e o Chipre denunciaram como acções ilegais e provocatórias. Corremos o risco de uma escalada e até de um conflito no Mediterrâneo Oriental?

Em primeiro lugar, é muito importante dizer que Grécia e Chipre têm, e terão sempre, a total solidariedade da UE se os seus legítimos direitos de soberania forem postos em causa ou violados. Foi muito perturbador ver como a Turquia tentou intimidar os seus vizinhos, e nesse sentido penso que o regresso às águas nacionais do navio de prospecção turco nos últimos dias foi um passo importante que abre a porta ao diálogo e às negociações para se poder encontrar uma solução pacífica e duradoura. A UE estará seguramente representada nessas negociações, esta é uma matéria que está no centro das nossas preocupações.

O recente incêndio no centro de acolhimento de Moria, na ilha de Lesbos trouxe a polémica sobre o tratamento das pessoas que se candidatam à protecção internacional e a política europeia de asilo mais uma vez para a ordem do dia. A Comissão vai apresentar na próxima semana um novo Pacto para as Migrações, e já revelou que a sua proposta passa pela abolição do actual sistema de Dublin para a distribuição de refugiados. Quer substítuí-lo por quê?

Todos temos que reconhecer que o sistema que temos actualmente em vigor na Europa para a gestão dos fluxos migratórios não funciona, há muito que atingiu o seu limite. A proposta que vamos apresentar é para um sistema europeu mais abrangente, que contempla asilo, integração, repatriamentos e gestão de fronteiras. Assenta no princípio e que temos de reequilibrar a solidariedade e a responsabilidade, e para isso temos de ter esta abordagem europeia comum. A pressão migratória não vai deixar de existir, temos de lidar com ela de uma forma que seja mais humana e também mais eficiente.

Como pretende convencer os Estados membros — há pelo menos sete que não aceitam quotas para o acolhimento de refugiados — a aprovar o novo pacto?

A nossa proposta não vai ser uma surpresa para os Estados membros. A Comissão passou os últimos meses a preparar terreno e elaborou este documento sempre em diálogo com os governos, sempre com a preocupação de ouvi e compreender as suas razões e argumentos. Este é um grande projecto, que está bem fundamentado, e que integra toda esta cadeia que começa nos países de origem e termina na integração na UE. E o objectivo de todos os países também é de encontrar uma solução para a questão migratória, porque o status quo não funciona.

No princípio do seu mandato apontou a dupla transição verde e digital como a aposta estratégica da Europa e no discurso sobre o estado da União apresentou já a sua visão para o mundo pós-covid. O que é que resta para decidir na Conferência sobre o Futuro da Europa, a possibilidade de uma mudança dos tratados?

Infelizmente a conferência teve de ser adiada por causa da pandemia, mas não deixou de muito importante e uma prioridade. Uma coisa é a direcção política e a liderança que a Comissão está a assumir em tópicos importantes, como o Green Deal ou a digitalização. Mas há um debate mais vasto, com a sociedade, sobre a maneira como queremos viver juntos ou qual é a nossa visão da Europa no futuro. Por isso a conferência é tão necessária. E não tenho qualquer posição pré-concebida sobre o seu resultado: este é um processo aberto.