Rita Siza, in Público on-line
No seu primeiro discurso sobre “o estado da União” no Parlamento Europeu, a presidente da Comissão Europeia vai defender uma “grande aceleração” para o bloco conseguir ultrapassar a crise provocada pelo coronavírus.
Quando a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, assinalou os seus primeiros cem dias no cargo, a 9 de Março, foi criticada por ter dedicado apenas três minutos à crise anunciada do coronavírus, que nessa altura já tinha atingido 30 países e se expandia rapidamente em Itália. Esta quarta-feira, no seu primeiro discurso sobre “O estado da União” no Parlamento Europeu, a líder do executivo comunitário não cometerá o mesmo erro: no mandato da Comissão Von der Leyen, há um breve antes, mas haverá um prolongado depois do aparecimento do SARS-Cov-2.
Seis meses mais tarde, o novo coronavírus infectou 29 milhões de pessoas em todo o mundo, 2,59 milhões das quais na União Europeia. A pandemia fez mais de 214 mil vítimas no continente e levou à maior quebra económica desde a Segunda Guerra Mundial. Além disso, expôs os limites e os constrangimentos da acção de Bruxelas, sem competências de gestão de assuntos sanitários e de saúde pública, e testou o compromisso dos Estados membros com o princípio da livre circulação no Espaço Schengen ou com a rigidez das regras orçamentais do Semestre Europeu.
Mas mais do que recordar tudo o que aconteceu e correu pior ou melhor desde que começou a crise do coronavírus, a presidente da Comissão Europeia quer aproveitar a oportunidade que o discurso do estado da União lhe oferece para apresentar ao Parlamento, e por extensão aos europeus, a sua visão de como será a UE pós Covid-19: em muitos aspectos, bastante semelhante ao que era antes da pandemia, mas com vários elementos radicalmente diferentes do que se convencionou designar como o statu quo.
A resposta aos múltiplos desafios colocados pela pandemia continuará a dominar a política europeia por muitos e muitos anos, e segundo o PÚBLICO apurou, Ursula von der Leyen falará em termos muito concretos de como a União Europeia tem de aproveitar o actual contexto para intensificar os seus esforços e acelerar os projectos que estão associados à dupla transição verde e digital que é a grande prioridade política deste executivo.
Isso incluirá referências às apostas dos planos nacionais de recuperação e resiliência que os 27 Estados membros estão actualmente a preparar (Portugal já manifestou a intenção de avançar um rascunho preliminar no próximo mês de Outubro, e a versão definitiva logo que possível no início de 2021), e recomendações sobre o tipo de investimentos e reformas — e o equilíbrio entre os dois — que considera mais adequados para estabilizar e ao mesmo tempo transformar a economia europeia.
O discurso explorará a ideia de “fragilidade”: o sentimento e também a percepção, muito acentuada pela pandemia, de como vários aspectos da nossa vida individual, e da nossa organização social, são tantas vezes débeis, inconsistentes, ou então demasiado efémeros e frequentemente irrepetíveis. O que interessa a Von der Leyen é reflectir sobre as condições para sair desse estado e criar a resiliência necessária para poder responder à próxima crise. O objectivo não é redefinir a agenda política europeia, é criar uma “boa narrativa” e traçar um caminho que possa ser apoiado pelos parlamentares e seguido pelos Estados membros.
A parada mantém-se demasiado alta. Na cimeira extraordinária de Julho, os chefes de Estado e governo dos 27 deram o seu acordo político ao plano da Comissão para criar e distribuir um fundo de recuperação da crise no valor de 750 mil milhões de euros (dos quais 390 mil milhões em transferências directas e os restantes 360 mil milhões através de empréstimos em condições favoráveis), mas ainda persistem alguns obstáculos a ultrapassar para passar das palavras à prática.
O Parlamento Europeu já mostrou que está disponível para agir rapidamente: os legisladores votam ainda esta quarta-feira uma resolução sobre o sistema de recursos próprios do orçamento da UE, para que o processo possa seguir para a ratificação das câmaras legislativas nacionais. Esse é um procedimento indispensável para a constituição do fundo de recuperação, que implica a emissão de dívida conjunta europeia para o financiamento nos mercados.
É no lado dos Estados membros que as dificuldades são maiores, e é também daí que ainda podem surgir surpresas que atrasem todo o processo. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, tenciona usar a obrigatória ratificação no parlamento de Budapeste como arma de arremesso para obter concessões dos parceiros na redacção do regulamento que vai estabelecer uma condicionalidade das transferências de verbas europeias ao cumprimento das normas do Estado de Direito.
Ursula von der Leyen não ignorará o braço de ferro, e deverá repetir a sua mensagem de que a adesão às normas democráticas e o respeito pelos direitos humanos estão na base do projecto europeu e são inegociáveis — como também é inegociável o acordo de saída que o Reino Unido assinou com a União Europeia, e que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, ameaça violar através de uma nova lei do mercado interno que contradiz os termos do Protocolo para a Irlanda. A chefe do executivo confirmará o ultimato feito ao Governo britânico: ou corrige a lei, ou o caso acabará no tribunal.
De resto, ao longo do discurso, a presidente da Comissão Europeia repetirá outros avisos que foi deixando nas vezes anteriores em que se pronunciou sobre temas polémicos e sensíveis — afinal, muitos dos “desafios” com que a UE se debate não são novidades do momento, dizem respeito a “problemas” que até agora os 27 se revelaram incapazes de resolver.
O exemplo acabado é a questão delicada da gestão dos fluxos migratórios e da reforma do sistema de asilo europeu, que Von der Leyen voltará a nomear, como fez no discurso de tomada de posse ou no balanço dos primeiros cem dias de mandato, como uma prioridade. O prometido novo Pacto para as Migrações, que deveria ter surgido após a Páscoa, vai ser finalmente divulgado no próximo dia 23 de Setembro: a presidente não quererá adiantar muito em termos do seu conteúdo, para não esvaziar de interesse a apresentação pública do documento.
Ainda assim, Von der Leyen quererá deixar um sinal aos líderes que até agora inviabilizaram todas as propostas da Comissão. Não existem soluções mágicas para o problema migratório, mas há certas medidas concretas podem e devem ser adoptadas pelos Estados membros, dirá a presidente.
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