4.9.20

Ai Weiwei: “Vocês já estão profundamente infectados”

Alexandra Prado Coelho, in Público on-line

Como um vírus, a China espalhou-se e vai dominar o mundo. Ai Weiwei, artista chinês e opositor ao regime, está em Portugal e, à beira de uma piscina no Alentejo, traça um quadro negro do estado das coisas. A conversa parte do seu novo projecto, Coronation, filmado dentro da cidade de Wuhan durante o confinamento.

Em Janeiro de 2020 um vírus invisível entrou nas nossas vidas e nos nossos corpos e começou a destruí-los por dentro. Na verdade, já tinha entrado algum tempo antes, mas não tínhamos dado por ele. Como um inimigo silencioso, instalou as suas células adormecidas dentro de nós. E esperou. Quando percebemos isso, era já demasiado tarde. Estávamos infectados. E não sabíamos o que fazer.

Ai Weiwei, o mais famoso artista-activista chinês, opositor ao regime e a viver no exílio (inicialmente em Berlim, recentemente em Cambridge, no Reino Unido), compara a estratégia da China no mundo ao covid-19. “Para mim, é como um vírus nas células vivas do nosso corpo. Um dia vai infectar e o corpo vai começar a funcionar de forma diferente”. O avanço é quase invisível, os sintomas ainda ténues. Mas, avisa: “vocês já estão profundamente infectados.”

Parecem palavras demasiado negras para ouvir à beira de uma piscina numa casa no Alentejo, num dia de calor. No entanto, é esse o cenário. Numa troca de emails na véspera, para combinar a entrevista, tinha-nos sido dada a localização para podermos chegar a esta casa, a meio de uma estrada de terra, junto a umas oliveiras. É aí que Ai Weiwei tem estado instalado enquanto prepara “uma grande exposição”. Sobre a sua permanência em Portugal ou o trabalho que aqui está a realizar prefere, por agora, não revelar muito mais.

O motivo da conversa é outro: o filme Coronation, feito durante os meses do confinamento, e que acaba de lançar. Filmado em Wuhan, a metrópole chinesa onde a pandemia começou, foi dirigido por Ai Weiwei à distância e montado fora da China a partir de material recolhido por membros da equipa do artista em Wuhan.

São duas horas de olhares sobre o que, para nós, foi em grande parte invisível. Nos primeiros meses do ano chegavam-nos notícias de Wuhan, de fonte oficial ou através de habitantes que relatavam em diários o que estavam a viver (como a poeta Fang Fang, usando a rede social WeChat, numa série de textos já editados em livro), mas em Coronation vamos mais longe, entramos no dia-a-dia dos hospitais, em lugares habitualmente preservados de olhares exteriores.

Intercaladas com imagens aéreas da grande metrópole isolada do mundo, assistimos a longas sequências da vida quotidiana: o processo pelo qual um médico tem que passar para se desinfectar totalmente antes ou após um dia de trabalho no hospital, a tentativa de entrada em Wuhan de um casal que regressa à cidade no primeiro dia do confinamento, a construção de um hospital em tempo recorde.

É o, aparentemente muito eficaz, funcionamento da máquina chinesa. Objectivo: controlar o vírus. Taxa de sucesso: alta. Sobretudo quando comparada com os cenários a que o mundo assistiu em vários países ocidentais nas semanas e meses que se seguiram.

Mas na segunda parte do filme outra realidade começa a surgir. A máquina funciona, sim, mas as peças soltas que são os seres humanos pagam um preço alto por essa eficácia. Ouvem-se então histórias de pessoas como o operário que foi para Wuhan trabalhar na construção do hospital e que, impedido de sair da cidade, se vê forçado a viver dentro do seu carro numa garagem, vendo os familiares apenas no ecrã do telemóvel.

Ou a de homem que quer recuperar, sozinho, a cinzas do pai, vítima da covid-19, e que se sente impotente perante a burocracia do Partido Comunista Chinês, que o obriga a passar pelo processo acompanhado por um funcionário oficial. Assistimos à conversa entre uma mãe e um filho, ela antiga funcionária do Partido, mantendo a crença de toda a vida na ideia de que tudo o que o Partido faz é para o bem comum, enquanto o filho, um artista chinês, tenta questionar essa crença, mostrando-lhe imagens que denunciam os métodos do regime. E, por fim, vemos a crueza do processo de entrega das cinzas das vítimas da pandemia aos familiares — a forma pragmática, brutalmente fria, como os restos mortais são calcados e apertados de maneira a caberem nas pequenas urnas.

E, por detrás de tudo isto, a mentira, diz Ai Weiwei. A China soube muito tempo antes do início do confinamento qual era a real situação, afirma. Provavelmente muitas mortes em todo o mundo poderiam ter sido evitadas “se no início a China tivesse sido transparente, identificando claramente a existência de transmissão entre humanos”.
“Enquanto vocês aproveitam o sol na praia, os chineses estão a trabalhar para fazer as vossas toalhas, os vossos fatos-de-banho, o shampoo, a touca de banho. Por isso eles vão ganhar todo o dinheiro. Vocês têm o sol, que é óptimo, ficam bronzeados, vão ficar perfeitos nas fotografias. E eles até criaram o Tik Tok para que vocês possam apresentar a vossa imagem nas redes sociais. Que belo filme de Hollywood”

Houve médicos a denunciar a situação várias semanas antes. O oftalmologista Li Wenliang, do Hospital Central de Wuhan, alertou a 30 de Dezembro para uma série de casos de pessoas com sintomas semelhantes aos provocados pelo SARS (outro coronavírus, responsável por uma epidemia em 2003, e sobre o qual Ai Weiwei e o irmão fizeram, na época, um pequeno filme, Eat, Drink and Be Merry), mas as autoridades acusaram-no de “espalhar rumores” (e ele acabou por morrer vítima de covid-19).

E houve cúmplices nesse silenciamento inicial. Weiwei aponta o dedo à Organização Mundial de Saúde (OMS), que “trabalhou com a China e nunca disse a verdade”, e também aos Estados Unidos, onde a Administração Trump estava, nesse mês de Janeiro, mais interessada em assinar o acordo de comércio com a China, o Phase One (o que aconteceu no dia 15 de Janeiro), do que em tomar medidas para conter o novo coronavírus. “Trump, não uma mas muitas vezes, elogiou a forma como a China estava a lidar com a situação. Disse que tinha falado com o Presidente [chinês, Xi Jinping] e que estava tudo sob controlo.”

Weiwei garante que se apercebeu da gravidade do que se estava a passar ainda antes do lockdown decretado na cidade a 23 de Janeiro. “Temos muita experiência para saber como é que um Governo como o chinês estava a lidar com uma situação como esta. Escondem coisas desde o início, e até ao fim as pessoas não sabem o que aconteceu.” Admite como possível a tese de que a pandemia começou não no mercado “molhado”, de alimentos e animais vivos, mas sim no centro de investigação que estava a trabalhar com coronavírus.

Não acredita numa propagação intencional mas numa fuga e critica o Governo chinês pela posterior destruição de todas as amostras retiradas de doentes infectados (algo que as autoridades chinesas admitiram e que levou a protestos por parte dos EUA). “Destruir amostras é impensável a menos que se esteja a tentar esconder algo de criminoso”.

O padrão repete-se, garante. Aconteceu com a SARS, em 2003, e mais tarde com o terramoto de 2008 em Sichuan, que deu origem à obra Remembering (2009), na qual Ai Weiwei, que reuniu o nome de todas as crianças mortas no desabamento de escolas construídas de forma precária, colocou nove mil mochilas coloridas na fachada da Haus der Kunst, em Munique, formando a frase da mãe de uma das vítimas: “Durante sete anos ela viveu feliz nesta terra”.

Mas, lembra o artista, aconteceu também com o caso do leite em pó para bebés adulterado, que afectou muitos milhares de crianças, hospitalizadas devido a problemas nos rins. Foi em 2008, ano dos Jogos Olímpicos. “Eles esconderam o facto para não prejudicar os jogos. Não queriam ter um impacto negativo. Só depois é que a informação foi tornada pública, mas nessa altura já muitas crianças tinham sido infectadas. Os bebés urinavam sangue, os pais não sabiam o que fazer, eles detinham todos os que protestassem. Um amigo meu foi preso porque exigiu uma resposta do Governo. O Governo nunca dá respostas.”

Existe, portanto, um padrão, repete. “Basicamente, a China é um Estado secreto. Estas são as palavras correctas para o descrever. É muito poderoso, com uma visão muito clara de como se quer desenvolver, mas é um Estado secreto.” Claro que as novas tecnologias — os sistemas de reconhecimento facial, por exemplo — tornam tudo muito mais fácil hoje. Mas o sistema foi montado muito antes disso e existiria mesmo sem esses avanços.
“O Ocidente é como uma família muito rica em que cada um tem o seu quinhão justo mas não se preocupa com os vizinhos do lado”. Não tem dúvidas de que “o capitalismo é uma filosofia egoísta” e está convencido de que este exercício da “verdade selectiva” vai levar o Ocidente ao colapso

“A nação tem uma fábrica, que pertence ao Partido, um banco, que é do Partido, um meio de comunicação, que é do Partido, uma polícia, um sistema judicial, que são do Partido. Como é que se pode desafiar isto? Não é possível.” A tecnologia permite apenas “reforçar o controlo” com técnicas como o Sistema de Crédito Social, que classifica os cidadãos de acordo com um rating numérico baseado na análise do comportamento social de cada um, valorizando determinadas coisas e penalizando outras. “Eles têm todas as informações sobre as pessoas, onde vivem, onde fazem compras, com quem falam, de que falam online…”.

Tudo isto acontece perante a impotência, ou, em muitos casos, a indiferença. Coronation mostra, contudo, tentativas individuais de fazer frente ao sistema. A abertura da China ao capitalismo, a possibilidade de cada indivíduo fazer dinheiro, a ambição que isso implica, não vieram mudar mentalidades? Não abalaram o espírito colectivista da sociedade chinesa, trazendo ao de cima um maior individualismo?

Ai Weiwei é taxativo: “Não. Houve sempre injustiça, houve sempre pessoas a perguntar coisas muito essenciais: porque é que eu não posso ir sozinho buscar as cinzas do meu pai? Mas esses detalhes são um grão de areia, uma gota de água. Esse homem não terá qualquer hipótese, não é possível. Nessa cena consegue ver o controlo comunista até ao fundo.”

Noutra, que mostra o local onde são entregues as cinzas dos mortos por covid-19, “todas as pessoas com roupa branca são funcionários governamentais ou polícia secreta, só os que não têm esse tipo de roupa [de protecção] é que são cidadãos. Os funcionários garantem que a pessoa assina um papel, não faz ondas, dão-lhe 500 dólares e está tudo terminado.”

Mesmo assim, insistimos, parece haver maior consciência crítica numa geração mais jovem — basta ver a cena da mãe idosa, antiga funcionária do Partido, premiada várias vezes pelo seu desempenho, e o filho que tenta questionar a gestão da crise por parte das autoridades. “Incluímos essa cena porque reflecte a forma como as pessoas mais velhas pensam sobre o comunismo, porque toda a vida contribuíram para a nação e têm uma ligação emocional. Ao mesmo tempo, sofreram uma lavagem cerebral toda a vida, não tiveram outra opção. O filho é um artista contemporâneo, está numa posição muito especial, não é uma pessoa comum.”

E fora da China, como é que o Ocidente olha para o que se passa o país? Continuamos sem entender nada? “O Ocidente talvez conheça 5% da situação da China.” Ironiza: “Sabem que Xangai é bonito, que Pequim é muito poderoso, que a capital da China não é Tóquio, que a comida é boa”. Este nível de ignorância “é interessante” tendo em conta que “com a globalização a China tornou-se o principal desafio do Ocidente”.

Desde a infância de Ai Weiwei — que viveu num campo de trabalho quando tinha um ano, depois de o pai, o poeta Ai Qing ter sido denunciado como opositor ao regime — que a China mudou profundamente. “O país onde eu cresci nos anos 70 era como a Coreia do Norte hoje. Mas, depois da Guerra Fria, o Ocidente precisava da globalização e de uma nova ordem mundial e tornou a China o seu grande mercado de trabalho. Não poderiam ter encontrado um mercado de trabalho com tão grande dimensão e um desejo tão grande de se tornar rico. Sob Deng Xiaoping, toda a gente queria ganhar um cêntimo, ou meio cêntimo. Em todas as aldeias abriu um negócio”.

Nunca até esse momento se vira algo igual. “A China aceitou voluntariamente ser o mercado de trabalho do mundo”. E um mercado em que as regras do Ocidente não se aplicavam. “É o Oeste selvagem, ou melhor, o Oriente selvagem”. E durante trinta anos, o mundo beneficiou disso.

Enquanto isso, estava a acontecer um fenómeno de que poucos se aperceberam. Ou ao qual preferiam fechar os olhos. A China foi — como o vírus, na comparação de Ai Weiwei — invadindo lentamente as células do corpo ocidental. Um exemplo são as leis que exigem que qualquer empresa estrangeira que tenha mais de três funcionários chineses passe a ter um sindicato, sob o controlo do Partido. “Não é louco? É uma mafia dentro da empresa. Fazem os próprios relatórios, agem da forma que querem.”

O filme mostra como é feito o recrutamento de novos membros para o Partido. Numa cena, crianças e noutra enfermeiras que trabalharam para combater a pandemia fazem o juramento de lealdade. “Têm que fazer o mesmo gesto [punho cerrado, com o indicador preso pelos restantes dedos], dizem-lhes exactamente a que altura posicionar o braço, e as palavras que têm que dizer. Prometem obediência à política do Partido Comunista, prometem proteger os seus segredos e sacrificar a vida por ele.”

Há na China “100 milhões de membros do Partido”. Faz uma pausa. “Portugal tem quantos habitantes? Dez milhões? Os membros do Partido, essa sociedade negra na China, é já dez vezes superior à vossa população. Acham que podem desafiar isso? Não acredito. Os EUA não podem desafiar isso. A China vai derrubar os EUA e tornar-se a maior potência global”.

Contudo, os EUA têm gesticulado, protestado, ameaçado. “Fazem barulho mas com poucos resultados. Basicamente, Trump usa isso como estratégia eleitoral, faz de cowboy num filme do Oeste, para lidar com os ‘maus da fita’. Mas será que compreendem realmente a condição filosófica e histórica do que são os EUA e do que é a China? Não sei…”.

“Um Estado autoritário toma conta de tudo, incluindo as ideias das pessoas — é isso que o Ocidente quer?”. O vírus já entrou

Acredita, que em breve o mundo descobrir-se-á sob o domínio chinês. “Falo disto pelo menos desde 2008. Durante os Jogos Olímpicos comecei a escrever sobre as tácticas chinesas e a negligência ocidental perante esta ascensão da China”. Os exemplos estão por todo o lado. “Em Portugal, por exemplo, a China tem a tentação de comprar empresas ligadas à electricidade, à banca, à comunicação social”. Depois, há o resto do mundo. “Está em África, na América do Sul, até na Alemanha compraram parte do Deutsche Bank. Como é que o Ocidente consegue competir com um país assim? Tomam decisões num segundo, não têm que perguntar nada a ninguém, os outros são amigos ou são inimigos”.

Mas o olhar muito crítico sobre a China e o comunismo não impede Ai Weiwei de ser igualmente crítico em relação ao Ocidente e ao capitalismo. “O Ocidente é como uma família muito rica em que cada um tem o seu próprio quarto e o quinhão justo mas não se preocupam com os vizinhos da porta ao lado”. Não tem dúvidas de que “o capitalismo é uma filosofia muito egoísta” e está convencido de que vai chegar o dia em que este exercício da “verdade selectiva” vai levar o Ocidente ao colapso.

Fala dos refugiados, claro — é também autor do documentário Human Flow (2017) —, mas de muito mais. “Os refugiados são empurrados para o oceano, diariamente morrem pessoas e o Ocidente pergunta ‘porque é que vêm?’.” As perguntas de Weiwei são outras: quem cria aquelas guerras? Quem vende as armas para matar os iemenitas? Qual é o acordo entre o Ocidente e a Arábia Saudita? As pessoas dizem ‘não é connosco, não vamos falar sobre isso’. Mas vai haver consequências. Neste momento enfrentam a China. É algo sobre o qual já não podem dizer ‘não é um problema nosso’”.

O Ocidente acreditou na sua própria “propaganda”, que dizia que quando ficasse rica, a China tornar-se-ia uma democracia. Não percebeu uma coisa: “A democracia não vem de se ficar rico, é uma estrutura política que tem que vir com uma visão de como é que uma sociedade se deve manter e desenvolver”. E para Weiwei há algo bastante claro: “A China nunca se vai tornar uma democracia livre, não importa quão rica for, porque nunca vai mudar a ideologia do partido único”.

Estamos, portanto, entalados entre o capitalismo e a visão do mundo chinesa. Não há saída? “A China está num beco sem saída e o capitalismo também”. Falta no Ocidente “uma autoconsciência clara” que é a própria essência do comportamento humano. “Temos que estar alerta e ter essa autoconsciência que vem de um julgamento moral muito básico sobre se estamos certos ou errados”. O problema, diz, é que “há muito que no Ocidente falta este tipo de julgamento moral”.

O olhar crítico não exclui o próprio artista. Tenta, com o seu trabalho, despertar consciências? “Não. Tento manter-me desperto a mim próprio. Basicamente sou uma pessoa muito egoísta, só quero saber o que se está a passar, ter uma visão mais clara do tempo em que estou a viver e com quem estou a lidar. Espero que mais tarde os meus filhos possam dizer que o pai tinha razão sobre isto. Sou responsável pelos meus filhos e tenho amigos que se identificam com as minhas ideias e com quem trabalho. É isto. O resto é sorte. Teremos sorte? Não sei.”

O optimismo que lhe resta, reserva-o para uma espécie muito própria de fé no humano: “Não tenho uma boa visão da Humanidade, excepto o pensar que cada vida é tão preciosa, e em relação a isso sinto-me muito positivo sobre a forma como os humanos tentam lutar para sobreviver. Isso é muito positivo. Mas continua a não haver uma visão clara sobre como vão sobreviver”.

Seja qual for o motivo que o leva, em plena pandemia, a querer mostrar o que se passa no interior da cidade fechada de Wuhan, há neste projecto um risco — dele, enquanto a artista que dá a cara por Coronation, e dos amigos que, na China, fizeram as filmagens. “Digo sempre que é por causa destes perigos que existo. Se não enfrento os perigos, isso significa que já desapareci ainda antes de a minha vida ter desaparecido.”

Esse é precisamente um dos problemas que vê na atitude do Ocidente. “É tão protegido, está tudo bem, as companhias de seguros tratam de tudo, e isso torna o nosso cérebro preguiçoso. Não agimos, não respondemos, transformamos esses sentimentos essenciais, de luta, de combate, sejam certos ou errados, noutra coisa qualquer que é totalmente abstracta. E perdemos o significado de liberdade”.

Sinal disso poderá ser a forma como o seu filme não foi aceite por nenhum dos grandes festivais de cinema (nomeadamente o de Veneza) nem pela Netflix ou a Amazon (para ser visto, pode ser alugado ou comprado nas plataformas Vimeo e Alamo). “Todos recusaram, o que é muito compreensível. A China tem uma grande influência, toda a gente quer passar os seus filmes na China. Esses festivais são um mercado de vegetais, onde as pessoas vão comprar, e não querem que eu coloque ali no meio o meu cogumelo, não é bom para o mercado”, diz, sorrindo.

E não tem tanto a ver com medo. É, sim, na sua visão, a “ânsia de fazer negócios”. Empresas como a Netflix ou a Amazon “estão a fazer milhões durante a pandemia, adoram dinheiro, adoram ver a linha a subir na Bolsa, é assim que o mundo funciona, até um dia colapsar totalmente”.

E não, o vírus não vai mudar nada. “Nas ruas de Berlim todos estão a agir normalmente outra vez. Há já grandes festas, ajuntamentos, bares cheios, como se nada tivesse acontecido, como se um vento tivesse passado e o sol já tivesse voltado. As pessoas nunca aprendem com as tragédias. Põe-se a máscara, tira-se a máscara, voltamos ao business as usual. E a China percebeu isso perfeitamente”. Morreram alguns milhares de pessoas em todo o mundo. Poderia ter sido evitado? Provavelmente. Mas ninguém quer perder a oportunidade de fazer negócios com a China.

Esquecem-se, diz, que “um Estado autoritário toma conta de tudo, incluindo as ideias das pessoas — é isso que o Ocidente quer?”. O vírus já entrou. Os chineses “trabalham nas fábricas, produzem as máscaras de protecção, produzem os chapéus para a Administração Trump, aqueles que dizem ‘America First’”. Há nisto uma ironia que nos escapa.

Ai Weiwei olha para a relva e a piscina no meio do Alentejo. Daí a pouco, para a sessão fotográfica, vai dar um mergulho, percorrendo o espaço debaixo de água quase sem vir ao de cima respirar. Quando emerge, a água pinga-lhe da barba.

Gosta muito de Portugal, o país tem sol, tem praias. “Mas enquanto vocês aproveitam o sol na praia, os chineses estão a trabalhar para fazer as vossas toalhas, os vossos fatos-de-banho, o shampoo, a touca de banho. Por isso eles vão ganhar todo o dinheiro. Vocês têm o sol, que é óptimo, ficam bronzeados, vão ficar perfeitos nas fotografias. E eles até criaram o Tik Tok para que vocês possam apresentar a vossa imagem nas redes sociais. Que belo filme de Hollywood”.