20.9.20

Congestionamentos de tráfego: o anormal regresso à normalidade

Luísa Pinto e Rui Barros, in Público on-line

Depois de quase terem desaparecido do mapa em Março, os picos de tráfego regressaram em Setembro, com o fim das férias. As principais cidades portuguesas ainda estão longe dos níveis de pré-pandemia e os especialistas em mobilidade sublinham que medidas como o teletrabalho e o carpooling podem evitar regresso a esses níveis.

Durante o estado de emergência e com o confinamento obrigatório, impressionaram as imagens das ruas das cidades desertas. Assim como nas redes sociais se repetiam os relatos deslumbrados de quem já se permitia a ouvir o silêncio – ou, pelo menos, o chilrear dos pássaros. Quase sete meses depois, esta seria a altura do regresso à normalidade – as férias acabaram, as escolas recomeçaram. Os dados do TomTom Traffic Index, uma plataforma que analisa os níveis de congestão nas ruas de mais de 416 cidades mundiais, mostram que o “regresso à normalidade” já começa a reflectir-se no trânsito das principais cidades nacionais. Mas ainda não atingiu os níveis de antes da pandemia de covid-19.

O PÚBLICO recolheu e analisou os dados de trânsito desta plataforma para Lisboa, Porto, Braga e Coimbra e confirmou que os níveis de congestão rodoviária nos dias de semana (de segunda a sexta-feira) têm vindo a crescer desde a 35.ª semana do ano, que se iniciou a 24 de de Agosto, confirmando o fim das férias e o retomar da actividade para muitos.

O indicador do fabricante de dispositivos de navegação automóvel, que mede a percentagem de tempo extra que uma viagem de 30 minutos demora devido ao trânsito, por comparação com a cidade sem tráfego, mostra um padrão semelhante nas quatro cidades analisadas. Até à 10.ª semana deste ano (ou seja, até ao dia 6 de Março), as quatro cidades apresentaram sempre níveis altos de trânsito – a pandemia ainda não estava declarada. Em Lisboa, até essa data, uma viagem dentro da cidade demorava, em média, mais 31% do tempo devido à existência de trânsito automóvel. No Porto, o valor apurado era 33%, em Braga 25% e em Coimbra 20%.

Este indicador caiu abruptamente em todas as cidades ainda antes do estado de emergência, tendo apenas assistido a um crescimento algo significativo após a semana que se iniciou a 27 de Abril. No período seguinte os números mostram um crescimento lento no trânsito das cidades, com especial destaque para o Porto que, das quatro cidades, foi a que registou níveis de congestionamento de trânsito mais altos desde então (antes da pandemia, os valores semanais de Lisboa e Porto andavam sempre muito próximos). Este crescimento lento foi apenas interrompido em Agosto.

Mas findo esse mês e com muitos portugueses a regressar ao trabalho, os dados mostram que em todas as cidades portuguesas o trânsito tem aumentado. Só de 14 a 18 de Setembro - uma semana marcada pelo regresso às aulas -, a cidade do Porto já registava um valor semanal médio de 31,4% neste medidor de congestionamento de trânsito. Segue-se Lisboa (28,8%), Braga (22,2%) e Coimbra (19%). Se compararmos esta última semana com a de 2 a 6 de Março, período em que o trânsito nas cidades portuguesas ainda podia ser considerado “normal”, as cidades de Braga e Coimbra são aquelas onde se verifica a menor diferença (8,6 pontos percentuais), seguidas do Porto (8,8) e, por último, Lisboa (11,6).

Os níveis de congestionamento vão regressar aos níveis pré-pandémicos? Ou poderão, até, piorar, com o aumento do recurso do transporte individual? Ninguém sabe como é que pandemia vai evoluir, mas defende-se que agora é que devem ser tomadas medidas concretas que possam melhorar a mobilidade nas cidades.

Receio do transporte público

José Manuel Viegas, catedrático do Instituto Superior Técnico, especialista em Mobilidade e Transportes, admite que o aumento do transporte individual é expectável, por causa do aumento de casos de covid-19. “Vai haver um aumento da ansiedade e do medo. Há três semanas estávamos numa situação bipolar, algumas pessoas a dizer que isto está a passar, não é nada. E outras que persistiam com medo. Parece que vamos ter uma transferência forte da equipa dos relaxados para a equipa dos ansiosos”, antecipa.

E a ansiedade joga contra a utilização de transportes públicos, apesar de, reconhece José Manuel Viegas, não estar provado que os transportes colectivos sejam um local de forte propagação. “A recolha internacional de dados ainda não o evidenciou. A ausência de prova não é a mesma coisa que a prova da ausência, mas tem significado. Em muitos países do mundo tem continuado a haver utilização de transportes colectivos. As pessoas já antes viajavam quietas e caladas. Agora, com medo do vírus, de máscara posta, muito mais caladas vão”, argumentou.

O inquérito à mobilidade efectuado pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) em 2018 detectou que entre 68% a 70% das deslocações eram feitas de carro e que apenas 16% usavam o transporte público. O receio de contaminação nos transportes colectivos poderá implicar uma ainda maior transferência para o transporte individual.

Porém, tanto José Manuel Viegas, como Frederico Moura e Sá, urbanista especializado em Mobilidade, professor na Universidade de Aveiro, lembram que têm sido tomadas medidas importantes, do lado da procura, que podem ter um impacto importante e diluir as horas de ponta: os horários desfasados e o recurso ao teletrabalho, cuja utilização foi muito potenciada durante a quarentena. Moura e Sá recorda que o aumento do desemprego também vai reduzir, pelas piores razões, a pressão dos movimentos pendulares.

O impacto do teletrabalho

José Manuel Viegas acredita que o teletrabalho é uma das medidas que trarão maior impacto não só para o objectivo de evitar focos de contaminação mas também para diminuir os expectáveis congestionamentos de trânsito. “Vamos pensar nos 65% que fazem as deslocações casa-trabalho de carro. Se se conseguir que, através do teletrabalho, em cada dia, não venha 1/3 de 1/3 – e acho que pensar que um só 1/3 das empresas é que pode funcionar em teletrabalho é conservador - estou a reduzir 1/9 de 65%, isso quer dizer estar a reduzir 7%. Ora esta percentagem é praticamente metade dos 16% de quota do transporte público”, contabiliza José Viegas. Ou seja, “o teletrabalho é um contributo muito significativo para reduzir as pessoas que vêm de carro, numa escala semelhante à daquelas que usavam transporte colectivo e agora não o fazem com medo do contágio”, conclui.

O perito considera que não se deve esperar que as pessoas regressem ao transporte público, ou que aumentem a sua utilização, não só porque têm medo como também porque há limitações do lado da oferta. “Não há como querer o aumento da utilização do transporte público, e manter a baixa densidade de ocupação. Isso só duplicando a oferta, e não consegue fazer isso, nem que se quisesse. Comprar 500 autocarros demora um ano. Se for comboios, demora cinco. Formar motoristas também leva o seu tempo”, argumenta. Viegas considera que esta rigidez na oferta também afecta as bicicletas – um meio cuja utilização disparou com a pandemia, mas que está limitado pela falta de capacidade de produção. “O principal fabricante europeu de bicicletas está em Portugal, mas tem a produção nacional tomada para os próximos dois anos”, explica. Viegas considera que a notícia de que estão a aumentar as pistas cicláveis é boa, porque se está a criar infra-estrutura, mas acha que elas não terão impacto no curto prazo, como era necessário.
Carpooling é solução?

Para José Manuel Viegas, o fomento do carpooling é a única forma de reduzir o número de veículos na cidade, mesmo que, por causa do receio de contágio, cada condutor possa levar apenas um passageiro. A equipa do investigador fez uma simulação para a Área Metropolitana de Lisboa, considerando apenas casos em que a distância casa-trabalho fosse de quatro quilómetros e o desvio para ir buscar o parceiro de viagem não superior a 1,5 km. “Chegámos à conclusão que esta medida permite reduzir em 30 a 40% o número de carros que entra na cidade”, afirma, insistindo que, com alguma criatividade no modelo de negócio, esta seria “uma boa solução para incrementar durante a pandemia, mas que se poderia manter depois”. A criatividade terá de assentar, explica, na flexibilidade das parcerias. “Só medidas como fomentar o teletrabalho e o carpooling permite ter efeitos escaláveis no imediato”, defende.

Frederico Moura e Sá tem outro tipo de preocupações. Ao discurso anticarro prefere o discurso pró-peão. “A pandemia tornou mais visível a fragilidade do nosso espaço público. É um espaço muito motorizado. E a rede pedonal é descontínua, subdimensionada, não está organizada para a estadia e permanência. O peão é o elo mais fraco”, afirma. O urbanista defende que as cidades têm mesmo de construir “uma política de mobilidade coerente”, que combine medidas de atracção, “como qualificar redes pedonais, redes cicláveis, conforto, frequência e preços mais baixos no transporte público”, mas também medidas de dissuasão, como “uma política de estacionamento coerente”. “Não alinho no discurso que a pandemia pode ser uma grande oportunidade para mudar as coisas. Esta pandemia é acima de tudo uma tragédia, que faz emergir duas grandes necessidades. A urgência de qualificarmos as nossas cidades e de humanizar o espaço público”.