Apresentada como uma ideia ameaçadora, o “género” permite que se torne no guarda-chuva para rejeitar todos os progressos em matéria de direitos das mulheres, da igualdade e não discriminação.
A crescente polarização política e a consolidação de movimentos autoritários e populistas é um elemento significativo da crise democrática. Intensas divisões estão a rasgar as costuras das sociedades democráticas rejeitando o paradigma dos direitos humanos, que há muito tempo tem sido objeto de consenso alargado.
A pandemia da Covid-19 veio acentuar os problemas da Europa no respeito pelos direitos fundamentais e a exacerbar essa tendência de consolidação de movimentos autoritários. Em demasiados países da União Europeia (UE), o Estado de direito está em perigo, o racismo e a xenofobia estão a ser generalizados, há uma resistência renovada contra a igualdade de género e os direitos das mulheres.
Neste contexto, é particularmente alarmante, o anúncio da retirada de vários países europeus da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e Violência Doméstica, também conhecida como Convenção de Istambul.
Em maio de 2020, o parlamento húngaro aprovou uma declaração que rejeita a Convenção de Istambul afirmando “o direito de defender o país, a cultura, leis, tradições e valores nacionais e que as opiniões sobre o género defendidas pela minoria não devem pôr tudo isto em perigo“. Em junho de 2020, a Polónia anunciou a intenção de abandonar a Convenção de Istambul por considerar que esta incentiva demasiado o debate sobre sexualidade e género nas escolas, e que o documento é prejudicial por conter “elementos de natureza ideológica”. No último mês, o governo turco anunciou que também está a considerar a retirada da Convenção de Istambul, tratado que a Turquia paradoxalmente foi o primeiro país a ratificar.
Em Portugal, recentemente mais de 100 personalidades assinaram um manifesto contra a obrigatoriedade da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento (ECD) nas escolas, considerando que os pais têm direito à “objeção de consciência” e que os tópicos abordados são da responsabilidade educativa das famílias.
A igualdade de género é um valor essencial da União Europeia e que o direito à igualdade de tratamento e à não discriminação é um direito primordial consagrado nos Tratados e na Carta dos Direitos Fundamentais da UE. Em março deste ano, a Comissão Europeia apresentou a Estratégia Europeia para a Igualdade de Género 2020-2025, na qual se compromete a assegurar que a perspetiva de género seja integrada em todos os domínios de intervenção da UE.
A crescente resistência à Convenção de Istambul e à eliminação todas as formas de discriminação e violência de género precisa de ser entendida num movimento mais global de negação dos direitos humanos.
Tem uma longa história e é um ressurgimento de práticas excludentes e discriminatórias que a nova ordem mundial esperava conquistar para sempre, com a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a 10 de dezembro de 1948; e mais recentemente com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, reconhecendo que a igualdade de género e os Direitos Humanos são fundamentais para o desenvolvimento económico e humano.
O surgimento de movimentos sociais que se mobilizam numa batalha global contra a ‘ideologia de género” – conceito inicialmente popularizado pelo Vaticano – pretende agrupar uma série de questões sociais vistas como uma ameaça às estruturas familiares tradicionais e aos papéis de género. Numa espécie de pânico moral tornou-se numa ferramenta retórica fundamental na luta contra os direitos reprodutivos das mulheres, os direitos das pessoas LGBTI, a educação sexual nas escolas e a transversalidade da perspetiva de género nas políticas públicas.
Em causa não está apenas a negação de princípios e valores fundamentais das sociedades democráticas e inclusivas, mas a utilização de argumentos que tendem a criar reações adversas e a levar a medos irracionais.
Apresentada como uma ideia ameaçadora, o “género” permite que se torne no guarda-chuva para rejeitar todos os progressos em matéria de direitos das mulheres, da igualdade e não discriminação.
É neste terreno fértil do medo, da insegurança e da mobilização constante contra um inimigo comum, que a demagogia e o populismo encontra as bases para transformar o sistema de valores democráticos e humanistas para um público mais amplo. O objetivo é deslegitimar políticas sociais progressistas que defendem o respeito pelos direitos humanos. Deslegitimar os instrumentos legais que combatem as desigualdades de género e a violência contra as mulheres.
Promover a igualdade de género significa lutar contra as persistentes desigualdades de direitos e oportunidades entre homens e mulheres e todas as formas de discriminação e violência de género.
Muitas mulheres e raparigas ainda enfrentam inúmeros obstáculos, desigualdades e ameaças na sua vida quotidiana: vítimas de violência doméstica, abusos e assédio sexual, salários mais baixos, menos oportunidades de trabalho e emprego.
Na União Europeia, as mulheres continuam a ganhar, em média, menos 16% do que os homens por hora de trabalho não obstante os importantes progressos conseguidos em termos de habilitações académicas e experiência profissional. Como consequência, as mulheres auferem reformas e pensões mais baixas (35,7%) e estão mais expostas ao risco de pobreza.
Todos os anos, centenas de milhares de meninas, em todo mundo, estão sujeitas a práticas nefastas como a mutilação genital feminina e o casamento infantil. Estima-se que 33 mil meninas, todos os dias, sejam obrigadas a casar. O casamento infantil correlaciona-se com fim abrupto da escolaridade, o aumento taxas de analfabetismo e piores resultados educacionais, minando as perspetivas das meninas de ingressar no mercado de trabalho e obter a independência económica.
Pessoas com uma orientação sexual, identidade ou expressão de género diferentes da norma social continuem a ser alvo de violência, perseguição, tortura e morte em muitas partes do mundo. Em 72 países existem leis que criminalizam relações privadas e consensuais de pessoas do mesmo sexo, expondo milhões de pessoas ao risco de serem presas e processadas e, inclusive, condenadas à pena de morte, como acontece em pelo menos 8 países.
Neste quadro, é importante compreender a interligação entre os direitos humanos e a igualdade de género. Reconhecer que um sistema democrático sem os direitos das mulheres e de género é uma forma inferior de democracia. A democracia precisa da igualdade de género para ser um sistema governativo aberto, inclusivo, pluralista e duradouro.