Texto Jorge Nascimento Rodrigues, in Expresso
Kenneth Rogoff Professor de Economia na Universidade de Harvard, EUA
A possibilidade de a economia portuguesa voltar a sofrer uma crise de dívida como entre 2011 e 2013 é muito baixa, diz o guru norte-americano das crises que há uma década atrás defendeu uma reestruturação da dívida portuguesa e dos periféricos. Agora, em entrevista ao Expresso realizada por correio eletrónico, acha que não é necessária uma redução de dívida. Mas se o controlo da pandemia da covid-19 demorar, a recuperação em países como Portugal, muito dependente do turismo e com alto nível de endividamento, vai demorar muito mais e vai exigir muito mais ajuda financeira. O académico norte-americano quer que o Banco Central Europeu aplique taxas ainda mais negativas e que aceite transformar as obrigações do Tesouro (como as portuguesas) que tem em carteira em dívida perpétua.
O disparo do endividamento público em Portugal e nos periféricos do euro, devido à resposta à pandemia, vai levar a uma nova crise da dívida na zona euro?
Não no curto prazo. O risco para Portugal e para os outros é atualmente muito baixo. Mas quanto mais tempo for preciso para resolver a covid-19, mais os problemas económicos, políticos e sociais na Europa se vão tornar difíceis de gerir.
Mas para superar esta crise, Portugal com o terceiro mais alto nível de dívida no PIB na zona euro e uma economia com forte dependência do turismo vai precisar de mais tempo e milhões de euros para recuperar?
Sim, infelizmente. Vivemos uma conjuntura muito crítica para o projeto europeu. Em que os países do Norte têm de apoiar os do Sul. Quero recordar que, aquando da crise financeira passada, eu defendi, com vigor e por diversas vezes, que deveria haver uma redução na dívida dos países periféricos, como era o caso de Portugal. A Alemanha, França e os outros países do Norte da zona euro deveriam pagá-la, aliás para segurarem os seus próprios bancos.
Isso foi um erro capital que levou a uma recaída em crise entre 2011 e 2013?
Não terem feito essa redução de dívida foi o maior erro que a Europa cometeu durante a crise financeira. Se o tivessem feito, isso teria levado a uma recuperação muito mais rápida e forte.
E agora?
Desta vez, não é necessária uma reestruturação de dívida como defendi então. Os mercados esperam que haja uma crescente partilha do esforço orçamental europeu. A dependência do turismo por parte dos países periféricos, como Portugal, exige uma ajuda financeira de médio prazo enquanto as economias estiverem a recuperar. Algum dia haverá um choque que vai afetar fortemente o conjunto do sector industrial da zona euro, e os periféricos poderão, então, retribuir o favor.
O Fundo Europeu de Recuperação para 2021 a 2023 e o novo quadro financeiro plurianual da Comissão Europeia até 2027, com um envelope global de mais de €1,8 biliões, não é suficiente?
Ajuda, mas dificilmente é suficiente até que a pandemia esteja sob controlo.
Desta vez não é necessária uma reestruturação de dívida pública como defendi na crise da zona euro”
Teme que as regras da austeridade para os periféricos regressem, nomeadamente logo que a chanceler alemã Merkel saia de cena?
No curto prazo, independentemente do que aconteça em Berlim, haverá seguramente mais ajuda. Pelo menos enquanto as taxas de juro se mantiverem em mínimos históricos — muito abaixo do que estavam uma década atrás, e até muito inferiores ao que os mercados e os decisores esperavam. A longo prazo, para que haja uma mudança sustentável na zona euro, é necessária mais integração política e orçamental.
E se isso não acontecer?
Quando as taxas de juro reais globais subirem, como acontecerá seguramente algum dia, o atual sistema da zona euro é simplesmente demasiado instável.
A política de estímulos do Banco Central Europeu (BCE), que tem permitido aos governos dos periféricos endividarem-se com juros muito baixos ou mesmo negativos em vários prazos, é suficiente? Ou vão ser necessários novos resgates?
Eu defendo fortemente um caminho para uma política mais eficaz de taxas do banco central ainda mais negativas, sobretudo se a Europa estiver longe da recuperação daqui a dois anos.
Ele já aplica taxas muito negativas na remuneração dos depósitos excedentários da banca da zona euro, o que tem gerado muita crítica...
Tem-se escrito muita coisa sem sentido sobre esse assunto. As investigações sérias feitas sobre as taxas negativas sugerem que, quando feito corretamente, isso pode ser tão eficaz quanto os cortes normais das taxas diretoras do banco central. Se o crescimento for muito fraco daqui a dois anos, e a política monetária existente ficar paralisada, então os bancos centrais — e os governos — terão de pensar a sério nisto.
E isso significa o quê?
No mínimo, exige pensar em desencorajar o comportamento dos fundos de pensões, das seguradoras e das instituições financeiras. A altura para começar a estudar seriamente o assunto é agora — e não apenas preocuparem-se em responder aos lóbis do sector financeiro. As principais ideias já as escrevi no meu livro de 2016, “The Curse of Cash” (“A Maldição do Dinheiro”). Para os mais interessados sobre o tópico, vou publicar com Andrew Lilley, no livro “Strategies for Monetary Policy” (‘Estratégias para a política monetária’) a sair na editora da Hoover Institution, um artigo precisamente intitulado ‘The case for implementing effective negative interest rate policy’ (‘Em defesa da implementação de uma política efetiva de taxa de juros negativa’). Nesse artigo, distinguimos entre o que tem sido feito na Europa e no Japão, com uma política de taxas negativas ainda muito limitada, e uma implementação sem restrições que defendemos.
Quando as taxas de juro subirem, como acontecerá um dia, o atual sistema da zona euro é demasiado instável”
O BCE é cada vez mais o maior credor oficial de Portugal e dos periféricos. Esses títulos que tem em carteira devem ser transformados em dívida perpétua, como defendem alguns economistas europeus?
Não é necessariamente uma má ideia. Mas, quanto a mim, isso não é política monetária, mas é do foro da política orçamental. Essa seria exatamente uma daquelas decisões dos governos europeus que ajudaria imenso se fosse tomada.
Acha que a recuperação económica na zona euro vai ser mesmo em ‘V’ como muita gente nos mercados espera, depois de um colapso histórico do PIB no primeiro semestre?
Haverá uma expansão, mas longe do que é necessário para uma recuperação, o que, a meu ver, vai demorar vários anos mais.
E à escala global?
Dois anos para a retoma seria ótimo, mas parece-me pouco provável. Cinco anos de retoma é a média depois da Segunda Guerra Mundial. Mas não sei como vai ser agora.
Se não tivesse havido uma resposta massiva com estímulos financeiros dos bancos centrais e dos governos na ordem de 15% do PIB mundial, qual teria sido a dimensão desta crise?
Os pacotes orçamentais provavelmente serão melhor classificados como ajuda de socorro a uma situação de catástrofe, do que estímulos no sentido em que costumamos usar. E foram muito importantes e úteis, sem dúvida. Nesta ocasião, ficou claro qual é o benefício de ter uma boa posição orçamental: é precisamente a de poder reagir, muito agressivamente, em situações extremas como esta gerada pela covid-19. Na terminologia do xadrez, os défices orçamentais são um tipo de movimento forçado. [Os campeões de xadrez, como Rogoff na juventude, considerado nos anos 60 e 70 como um prodígio, tendem a calcular antecipadamente, com muita rapidez, este tipo de movimentos que obrigam o outro jogador a um número muito limitado de respostas.]
E quanto à política monetária ultraexpansionista?
Direi que muito do que os bancos centrais fizeram nesta crise será provavelmente melhor descrito como política orçamental do que monetária, por mais estranho que pareça. Especialmente, no caso dos Estados Unidos, onde a Reserva Federal efetivamente garantiu grandes parcelas do crédito privado e municipal.
Essa resposta global tem funcionado?
Até agora, as políticas macroeconómicas têm funcionado. E provavelmente vão ter de continuar por muito mais tempo. Mas a estratégia que está subjacente baseia-se em larga medida na hipótese da pandemia ser controlada rapidamente. Mas se uma vacina vai demorar dois anos em vez de um só a surgir?
O que pode acontecer?
A confiança dos agentes económicos evapora-se. As taxas de juro podem começar a subir em alguns países — o que, aliás, já está a acontecer nos mercados emergentes. É por isso que é absolutamente imperativo colocar o vírus sob controlo. Os EUA, nesse campo, até agora, falharam completamente.
Eu defendo taxas do BCE ainda mais negativas, sobretudo se a Europa estiver longe da recuperação”
Com a dívida mundial em níveis recorde, o que podemos esperar?
Bom, enquanto as taxas de juro estiverem tão baixas, as dívidas nas economias desenvolvidas vão continuar a disparar. Recordemos que, nos EUA e na Alemanha, duas dívidas de referência, aquelas taxas estavam muitos pontos percentuais acima há uma década. Elas caíram muito mais do que os bancos centrais e os economistas esperavam.
Esse ambiente vai continuar?
Os analistas que fazem analogias com a crise de 2008, e pensam que as taxas de juro só podem seguir em queda, podem vir a revelar-se redondamente errados.
Porquê?
Desta vez é diferente. No curto prazo, o choque pelo lado da procura foi ainda maior do que o choque na oferta. E é por isso que as taxas de juro caíram. Mas, no longo prazo, sobretudo se os governos continuarem a estimular a procura sem conseguirem controlar a pandemia, aquela situação pode reverter. Grandes parcelas do stock de capital provavelmente vão valer muito menos no final desta crise. Será que as empresas vão regressar aos níveis de atividade anteriores? O teletrabalho é uma inovação positiva que ganhou dimensão, mas vai levar ainda algum tempo e exige muito investimento até atingir um novo equilíbrio.
O recuo na globalização pode agravar esse risco?
Há uma forte hipótese de que a tendência de queda das taxas de juro e da inflação tenha muito a ver com a ascensão da China na cena mundial nas últimas décadas. Se houver uma reversão parcial da globalização, isso vai obviamente afetar a situação.
Em que sentido?
Certamente não é difícil imaginar um regresso da inflação se a oferta plena for atingida e os governos continuarem a estimular a procura. Os bancos centrais, nesse caso, vão ficar muito relutantes em aumentar as taxas diretoras, com medo de piorarem a situação. Mas se houver uma pressão para a subida das taxas, isso pode afetar a sustentabilidade de altos níveis de vida, especialmente para o caso de países, como os EUA, que têm um prazo médio relativamente curto na dívida pública.
Um dos traços surpreendentes desta crise é a desconexão entre a euforia nos mercados financeiros e a economia real em colapso. Como isto é possível?
Ninguém sabe ao certo o porquê. Mas há um conjunto de fatores que podemos referir. Um primeiro é o nível tão baixo das taxas de juro, o que torna as obrigações menos atraentes que outras aplicações. Além disso, os bancos centrais ‘socializaram’ uma grande parte da dívida privada e dos municípios nos EUA e da dívida pública nacional na Europa. A pandemia, também, está a afetar mais seriamente as PME, que não têm os bolsos cheios para sobreviverem à recessão. Por isso, as cotações das grandes empresas em bolsa sobem, mas isso não augura necessariamente nada de bom para o crescimento da economia.