2.8.21

“Um bairro neste estado é terrorismo social”

Cristiana Faria Moreira, in Público on-line

Barracas que eram casas foram demolidas para, diz a Câmara de Loures, tentar travar o crescimento destas construções precárias. Como fica quem ficou sem casa? O que diz quem as deita abaixo? Pequena viagem ao Bairro de Montemor onde o entulho faz dele um território minado.

Mal se entra no antigo estaleiro da Ropisa, em Loures, é como se entrássemos num país que custa a acreditar que ainda exista. Uma casa em escombros, uma casa de pé, outra casa em ruínas. Os gatos correm e escondem-se entre o cascalho dos tijolos, placas de ferro cortantes, electrodomésticos amassados, inconscientes do perigo que ali está.

Mesmo perante aquele cenário — “de guerra”, como os moradores vão classificando —, Nelma Santos não perde o sorriso. Atrás de si está a casa que viu ser demolida há um mês, uma das 17 que a Câmara de Loures mandou deitar abaixo com o objectivo de impedir que cresçam no bairro mais habitações precárias e à semelhança do que tem feito noutros bairros semelhantes do concelho.


Nelma tem 20 anos e já uma responsabilidade grande ao colo. Chama-se Sophie e está prestes e completar cinco meses. Era ali naquela casa abarracada, que já não temos noção de como seria, que viveriam as duas até a vida tomar outro rumo, que dali as tirasse. “Queria ter o meu cantinho, com as minhas coisinhas”, resume assim o sonho desfeito em escombros.

Não conheceu outro lar em Portugal, que não o Bairro de Montemor. Os pais chegaram de São Tomé e ali se instalaram. Ela veio depois e, desde então, passaram-se nove anos. Foi trilhando o seu caminho: está a terminar o curso de Gestão Comercial e Vendas. Além de estudar, faz três horas de limpezas por dia para poder pagar as propinas: 350 euros todos os meses.

Há dois anos, começou a construção da casa, que agora viu destruída. “Foi construída aos poucos, com a ajuda dos meus pais, com um pouco de extras que eu faço.”

A primeira vez que lhe bateram à porta para fazer o recenseamento do bairro, Nelma não estava em casa. Estava na faculdade e, segundo lhe contaram os vizinhos, os técnicos do município rasgaram parte dos plásticos que ainda revestiam as janelas e tiraram fotos para o interior da casa. “Como não tinha quase nada na parte da frente da casa, deram a casa como desocupada”, conta.

Quando, na sexta-feira, 18 de Junho, viu os editais para a demolição a serem colocados nas casas, Nelma foi até à câmara tentar que não lhe partissem a casa. Sem sucesso.

“Na segunda-feira, batem à porta e dizem que eu tenho de sair, que a casa vai ser partida. Eu fiquei em choque, sem reacção, sem nada. Só consegui tirar o meu computador porque tinha que entregar o meu projecto da escola”, conta. De resto, tudo ficou para trás. “Deixei tudo. Roupa de bebé, a minha roupa, a banheira da bebé. Até lhe estou a dar banho num balde”.

Os pais moram na casa em frente. É lá que tem ficado com a filha, mas não é solução para muito mais tempo. A casa é já muito apertada. As despesas vão crescendo. “Ela já está a começar a comer. Tenho de comprar alimentos para a sopa, leite. Tenho de matriculá-la numa creche para eu recomeçar a trabalhar. Como é que vou pagar renda agora?”

As últimas semanas têm sido um turbilhão. “Com toda esta confusão entreguei trabalhos sem pés nem cabeça. O projecto final está todo destruído. Se eu perder o ano eu nem sei…”

Ainda tentou pedir apoio à Segurança Social, mas dali recebeu como resposta de que teria como ajuda um mês de renda. “Ao fim de um mês eu faço como?”.
O bairro “explodiu tipo cogumelos”

Pelo bairro erguem-se casas de alvenaria, de tijolo, muito diferentes entre si. Umas com fachadas pintadas com cores coloridas, mais arranjadas, com azulejos e tapetes à entrada. Outras com cimento e tijolo aparente, consoante o que cada um pode.

Os primeiros moradores chegaram em 2006. Instalaram-se numas antigas instalações do desactivado estaleiro da Ropisa. A partir dessas antigas construções, foram acrescentando tijolos, cimento e telhas.

Quando Januário Fernandes e Fátima Gonçalves começaram a trabalhar no bairro, em 2013, havia cerca de “50, 60 famílias”. “Os primeiros moradores relatam-nos que quando chegaram no bairro as famílias necessitadas dormiam no meio de ratazanas”, conta Fátima Gonçalves que, com Januário, tem uma associação dedicada aos jovens e que integra a cooperativa InterHazera. Não tinham portas, nem janelas. Não tinham nada. “Foram uns desbravadores.”

Desde então, o bairro foi crescendo. Hoje, segundo a autarquia, serão mais de cem famílias. A esmagadora maioria da população que ali vive é originária das ex-colónias, grande parte de São Tomé, que chegou ao país ao abrigo de programas de tratamento médico.

Com o começo da pandemia, o bairro “explodiu tipo cogumelos”, diz Januário, hoje também ali pastor de uma igreja que serve de espaço à associação e que, após as demolições, “foi forrada de colchões” para as pessoas desalojadas poderem pernoitar. “A condição social das pessoas degradou-se muito. E as pessoas começaram a socorrer-se destes locais.”

Foi o destino de Freddy Choi, de 35 anos, uma das muitas vítimas colaterais da pandemia. Despedido do restaurante onde trabalhava em Belém, o dinheiro escasseou para fazer face a todas as despesas. Requereu apoios à Segurança Social, mas com a demora na atribuição deixou de ter como pagar a renda.

Como deixou de conseguir pagar a renda, deixou a casa. “Nem me pagaram o salário completo de Março. Ganhei até ao dia em que o restaurante fechou por causa da pandemia. Graças a Deus que depois me deram esse apoio, senão não sei onde estava hoje”, conta Freddy.

Durante um mês foi viver para a casa de uma prima na Quinta do Mocho, também em Loures. Depois uns amigos trouxeram-no para o bairro. “Consegui meter um tectinho, estou a viver aqui com a minha família humildemente”, diz Freddy, ainda perturbado com o que viu no bairro há umas semanas.

“Nós, quando emigramos, vamos à procura de melhores condições. O mal não se pode pagar com o mal. Eu não digo que nós não estamos no mal. Viemos ocupar um lugar que é ilegal. Mas vieram aqui partir. Foi uma coisa muito triste mesmo”, diz o homem, consciente de que aquela é uma ocupação fora da lei, mas também de que a alternativa seria ficar ao relento. “Você trabalha e no fim do mês nada resta por causa da renda. O que você ganha, a renda leva”.
“Não criem novos sem-abrigo”

Muitos do que ali vivem têm profissões precárias. Empregadas de limpeza, trabalhadores da construção civil, cuidadoras. “As pessoas são empurradas para esta situação “, acrescenta Januário na conversa, antecipando já receio para quando terminarem as moratórias.

E é isso que revolta Fátima e Januário que, apesar de não viverem no bairro, passam grande parte da semana lá. Se o realojamento é “impraticável” nesta altura, como lhes disse o presidente da câmara, Bernardino Soares, as casas não deveriam ser mandadas abaixo. “Se é impraticável realojar neste momento não partam. Não criem novos sem-abrigo”, insiste o pastor.

Mas há ainda outras questões que os revoltam. A Câmara de Loures, dizem, foi fazer o recenseamento dos moradores sem avisar. “Se a câmara tivesse avisado que vinha ao bairro pode ter a certeza que essas famílias estariam em suas casas”, diz Fátima. Mais: “Os técnicos [da câmara] diziam que as casas tinham de ser acabadas, porque sem determinadas partes entendiam que era uma casa imprópria para habitar. Os moradores fizeram a obra e depois os técnicos disseram que a casa tinha sido acabada no fim-de-semana [justificando assim a sua demolição].”

Confrontada pelo PÚBLICO, a câmara nega estas acusações. “O recenseamento foi feito durante o dia, tendo em conta os horários em que a maioria das pessoas se encontrava no bairro e ocorreu durante dias diferentes”, diz o município, que nega ainda que os técnicos tenham dado essas informações aos moradores.

Desse levantamento, o município “marcou” 17 casas para irem abaixo, fixando um edital, e dando 24 horas às pessoas para desocuparem as casas. Como era sexta-feira, a demolição seria na segunda. Assim foi.

“Nós não estamos a pôr em questão a legitimidade do edital. Nós só combatemos a questão de não ter sido acautelado o aspecto social das pessoas. Um bairro neste estado é terrorismo social. Parece uma zona de guerra”, diz Januário, mostrando a porta de algumas casas que ficaram de pé, mas que têm à sua frente uma montanha de escombros. E preocupado com os mais de cem miúdos no bairro que, inevitavelmente, vão andar a brincar com os destroços, onde há chapas, pontas de aço cortantes.

Na reunião de câmara de 30 de Junho, o autarca Bernardino Soares insistiu que a câmara só demoliu casas que estavam desocupadas e algumas em fase final de construção. “Temos uma situação que é complexa, que envolve pessoas com carências habitacionais e é preciso ter as medidas adequadas para ao mesmo tempo não premiar aproveitamentos e não permitir que, sem qualquer controlo, as situações de bairros deste tipo progridam indiscriminadamente. Mas também não criar situações de impacto social tremendo para as quais não temos solução imediata”, disse o autarca.

E voltou a repetir que houve “situações manipuladas”, de “pessoas que se meteram nas casas durante o fim-de-semana”, que, segundo apurou o município na sexta-feira anterior à demolição quando andava a colocar os editais, essas se encontravam desocupadas.

Caminhando pelo bairro, ora em zonas de terra batida, ora pelo pavimento cimentado, não há lixo pelo chão, faz questão de notar Fátima. É por isso que os montes de entulho deixados para trás pelas demolições a revoltam. “O que eu ensino aqui para essas crianças é respeito. Depois do terrorismo que fizeram na mente das crianças, eles entraram nos seus carros e foram embora. E aqui como ficam as mentes das crianças que eu cuido há anos? Eu estou muito revoltada.”

Ao PÚBLICO, o município insiste que “não existem desalojados decorrentes desta acção já que não havia moradores nestas casas” e que “foram disponibilizados todos os apoios sociais da competência do município e da Segurança Social a todos aqueles que o solicitaram e revelaram necessitar desses apoios sociais”.

Os moradores têm, porém, outra versão. “A câmara alega que esses casos foram todos resolvidos. E não é verdade”, diz Januário.
“Precisava do meu espaço”

A mão de Letícia Silva, de 21 anos, vai amparando a barriga de oito meses. Em Agosto há-de nascer o primeiro filho. E ela ainda não sabe bem onde sequer poderá colocar o seu berço.

“Aqui era o meu espacinho que a câmara fez questão de destruir”, diz, emocionada. A sua casa, um anexo de uma outra que estava já construída e erguido com o dinheiro que os familiares em São Tomé e em Inglaterra lhe foram enviando, também veio abaixo. Mesmo sem electricidade, já lá vivia. Pegava em velas e em lanternas. “Precisava do meu espaço próprio para viver a minha vida”.

Nessa segunda-feira, ela recorda-se de estar deitada na cama e de se aperceber da chegada da polícia. Pensava então que vinham recensear as pessoas, já que, quando os técnicos do município lá passaram, ela não estava em casa. Disseram-lhe que não podia voltar a entrar porque iam demolir a casa. Ela ripostou: “E se vocês demolirem a casa onde é que eu fico?”

Não houve nada a fazer. “Eu vejo esta casa destruída e só me dá raiva da câmara. É uma coisa desumana. Um ser humano precisa de uma casa para viver.”

Depois das demolições, ligaram-lhe da Segurança Social de Loures para perceber se tinha onde ficar. Disseram-lhe que poderia ir para uma casa de acolhimento, mas Letícia rejeitou com receio que lhe tirem o filho quando nascer.

Não foi uma conversa fácil. Do outro lado de lá da linha ouviu que o dinheiro que “o estado português lhe atribui” - 189,86 euros de Rendimento Social de Inserção mais o valor de um subsídio pré-natal de 149,85 - seria o suficiente para arrendar um quarto. “É o dinheiro que o estado português lhe atribui e é com esse dinheiro que a senhora vai ter de viver”, disse-lhe a técnica.

Letícia exasperou-se. “A senhora sabe que esse dinheiro não chega para nada aqui em Portugal”, disse-lhe, afirmando que nem sequer chegaria para arrendar um quarto, quanto mais para fazer face a todas as outras despesas.

Letícia está em Portugal há quatro anos. Chegou para estudar. Fez o 12.º ano e um curso de cozinha. “Trabalhava nas férias. Ia para o Algarve e ficava a trabalhar nos sítios onde ia estagiar”. Queria candidatar-se à faculdade, mas deixou passar o prazo para se candidatar a uma bolsa. Sonho adiado por agora e sem saber como será daqui em diante.

“Já não tenho um berço para colocar o meu filho se ele nascer. Não tenho lugar para ficar. As coisas que eu tinha lá tenho de comprar agora tudo de novo. Onde é que eu tenho esse dinheiro? Como vai ser a minha vida daqui para a frente?”

Januário e Fátima apontam este exemplo para rejeitar a afirmação da câmara, que diz ter os casos todos resolvidos, de que há pessoas de outras zonas da área metropolitana que foram ocupar aquelas casas. Mas nada é assim tão claro.

Letícia vivia com o pai do filho num quarto em Queluz. E é essa morada que ainda está referenciada na Segurança Social, onde tem também uma assistente social atribuída. E por isso a câmara diz que Letícia tem uma alternativa habitacional – que, por agora, não o é.
O realojamento

Na reunião de câmara de 30 de Junho, Bernardino Soares disse ainda que não tem “nenhuma perspectiva, a curto prazo, de resolver o problema daquele bairro”. “Não temos como intenção derrubar o bairro a eito, mas não podemos assistir impávidos e serenos ao seu crescimento. Ainda por cima, quando há sinais claros de que esse crescimento envolve negócios de venda de habitações precárias, que são condenáveis”, sublinhou o autarca.

No bairro, ninguém diz nada sobre esse assunto. A câmara diz estar a preparar a apresentação dessa queixa, o que deverá acontecer “nas próximas semanas”.

Na reunião que teve com o autarca pouco depois das demolições, Januário Fernandes disse que a autarquia se comprometeu a não demolir mais, a concluir o recenseamento e a limpar os espaços demolidos. Ao PÚBLICO, a autarquia diz que “essa diligência será articulada com os representantes dos moradores do bairro”.

Para já, o realojamento não é uma solução, assume o município, e tal só poderá ser feito no quadro da Estratégia Local de Habitação a partir dos milhões do Plano de Recuperação e Resiliência.

O que ainda revolta mais Fátima Gonçalves é a destabilização que as demolições provocaram nos jovens que ela acompanha. Nelma, por exemplo, foi uma das crianças que frequentou os projectos que ela e Januário fazem na comunidade. Agora é uma mulher adulta com sonhos já cumpridos, mas muitos ainda por concretizar, como o mestrado que custa três mil euros e que, agora sem casa, não sabe se conseguirá concretizar. “Agora vem esse povo e destrói aquilo que nós construímos.”