Ana Cristina Pereira, in Diário de Notícias Madeira
Ouvimos o nosso pai contar que calçou sapatos pela primeira vez aos 12 ou 13 anos. Em casa dos pais dele, tantas vezes se almoçava sem saber se haveria ceia. E às vezes não havia mesmo. Deitavam-se, com fome, à espera de um dia novo.
Ouvimos a nossa mãe gabar-se que fome não. Havia sempre qualquer coisa. Nem que fosse só sopa ou semilhas. Mas a mãe dela perdeu 8 dos 16 filhos. E o pai dela morreu novo, com cancro, sem assistência médica.
Assim vivia Portugal rural, temente a Deus e ao diabo, sob vigilância permanente, a trabalhar desde tenra idade – estático, não fosse a emigração, sobretudo a clandestina, a que foi criminalizada pelo Estado Novo dois meses depois de ter estourado a guerra em Angola, para que abundasse carne para canhão e mão-de-obra baratíssima, quase escrava, para os senhores das terras.
Podíamos não ser gente ainda, mas sabemos que a pobreza infectava tudo. A pobreza infectava o que se pensava, o que se dizia, o que se vestia, o que se calçava, o que se comia, o que se fazia no tempo de trabalho e no tempo livre, que nunca era livre, era sempre determinado pelo medo de pecar, pela ordem de abstinência, pela necessidade e poupar ou pelo não ter o que gastar.
Fez-se uma revolução. Podemos ter nascido depois dela, mas sabemos o que implicou. E sabemos o quanto lutaram os nossos pais para garantir que nós não desistíamos de nós, dos nossos sonhos feitos sonhos deles. E ficamos indignados quando ouvimos anunciar, serenamente, como se nada fosse, que Portugal tem de empobrecer, que Portugal tem de empobrecer mais ainda do que empobreceu nos últimos anos. E já nem nos falta quem nos diga, sem pinga de vergonha, que quem tem emprego tem muita sorte e tem mais é que ficar bem caladinho. Como Federico Garcia Lorca, damos por nós a gritar: “Protesto! Protesto! Protesto!”