2.8.21

A saúde das pessoas transgénero “não pode estar entregue a sortes e privilégios” — nem a crowdfundings

Nuno Rafael Gomes(texto), Adriano Miranda e Nuno Ferreira Santos (fotografias), in Público on-line

Com as demoradas listas de espera do SNS para as cirurgias que querem fazer, jovens transgénero viram-se para campanhas de angariação de fundos. Há quem consiga, mas isso não é regra — nem deveria, defende Guadalupe Amaro, que reuniu 15 mil euros para uma cirurgia de redesignação sexual em três dias. Falta, por isso, investimento e uma melhor distribuição de serviços. E representatividade, claro.

Guadalupe Amaro decidiu lançar uma campanha de angariação de fundos para a sua cirurgia de redesignação sexual. “Era cada vez mais urgente” iniciar este processo, diz. Publicou o apelo na sua conta do Twitter e criou uma página no Instagram somente dedicada à recolha de donativos. O objectivo era reunir 15 mil euros. Já tinha tudo planeado: como “a estimativa é para que a cirurgia seja feita no final do próximo ano”, iria “republicar” o link para a campanha ao longo do tempo. “Talvez, com sorte”, calculou na altura, pudesse “chegar a metade” do valor.

Enganou-se. No espaço de três dias, somando as contribuições na plataforma GoFundMe às que chegaram via PayPal, MB Way e transferências bancárias, ultrapassou a meta fixada. Apesar de não esperar angariar “tanto dinheiro em tempo-recorde”, sentiu-se ainda mais surpreendida “pelas consequências secundárias” que o “pequeno fenómeno” fez desenrolar. Tocou-lhe a “união das pessoas”: os donativos, que variaram “entre os 50 cêntimos e os 300 euros”, e as mensagens chegaram-lhe de “todos os estratos sociais e quadrantes políticos”, de “todas as faixas etárias”, de gente que não a conhecia até àquele momento e das “pessoas de sempre”. “Foi ‘bué’ lindo”, foi como se lhe estivessem “a sarar as feridas”.

Guadalupe, de 25 anos, vive em Lisboa, onde está a terminar o curso de Medicina Veterinária. Cresceu na Chamusca, Santarém. No início da puberdade e ao longo de parte da adolescência, “que não foi assim há tanto tempo”, não só não sabia “o que se passava” consigo como “não tinha informação” para o perceber. Também não sabia por que razão a sociedade a interpretava e tratava “de uma forma errada”, como escreveu no texto que acompanha a campanha. Era, também, “obrigada a partilhar espaços com rapazes” sem nunca se sentir “segura, a ser constantemente discriminada, assediada e agredida”. “Teria facilitado ter visto alguém ‘trans’ a falar do assunto”, alguma representatividade. E “teria ajudado imenso” contar com apoio psicológico na escola ou alguém em que pudesse confiar. “Sentia que não havia abertura de lado nenhum. Nem de família nem de colegas.” Por isso, refugiava-se no sucesso escolar.

Mesmo tendo “alguma consciência do que se passava”, não tinha “nenhum apoio”, “nem financeiro nem emocional”. Afirmou-se “contra o mundo” e hoje considera ter uma “história feliz”. Alegra-se por saber que pode ter tido influência noutros finais felizes: “A minha mensagem preferida foi a de um rapaz, um adolescente, a contar que, ao ver familiares e o círculo de amigos a partilhar o meu testemunho e a falarem sobre o meu caso, teve força e coragem para afirmar a sua identidade. Nessas pequenas coisas, tomou uma escala que não conseguia prever.”

Explica o porquê: “Durante a maior parte da minha vida senti que foi uma parte da identidade que tive de reprimir e de esconder, pelo que me foi ensinado e passado pela sociedade, e pelo meio em que estava inserida. Que me devia envergonhar. E agora, decidir expor-me tanto e tomar este passo e ver tanta gente diferente a celebrá-lo comigo... É a concretização de um sonho pessoal, mas o resto, esse impacto, foi supercatártico.”


Às pessoas transgénero que se querem submeter a este e a outros processos cirúrgicos são apresentadas “duas opções”: a pública, cuja longa lista de espera faz desesperar, e a privada, com preços “ridiculamente caros”, mas onde a lista é menor, como explicou Guadalupe no GoFundMe. Na última publicação na conta do Instagram criada para este efeito, alerta, contudo, que isto não deve ser norma: “Uma questão de saúde que afecta tanto a comunidade ‘trans’ não pode estar entregue a sortes e privilégios.” Isto porque, como observa, outros não terão a “sorte” que teve — tal como ela não tem “outras sortes”, como “privilégio económico” e apoio familiar. Por isso, defende, “falta mais investimento público” no SNS.

Até que os serviços de saúde públicos consigam dar a resposta necessária, recorre-se à via privada. “Pelo público, não vai lá”, considera Duarte Palmeira. O jovem de 24 anos abriu uma campanha de angariação de fundos na mesma plataforma para poder pagar uma mastectomia. Quer “poder sair à rua” sem se sentir mal, aproveitar o Verão na praia, em Esposende, onde vive, sem ter de usar uma “camisola preta com um casaco por cima”; no fundo, para se sentir “livre” e para fugir ao “sobe e desce” das listas de espera do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Começou a campanha já em Fevereiro, mas, desmotivado pelos parcos donativos, desistiu meses depois. A namorada incentivou-o a voltar a espalhar a palavra e o sucesso da angariação de Guadalupe deu-lhe novo fôlego. A sua meta é de 3300 euros (a 29 de Julho, não tinha ainda chegado a metade do valor).

Na “terra pequena” onde vive, nunca ouviu falar “de um homem ou de uma mulher ‘trans’”. E há “muito preconceito”. Quando tinha uma caravana para vender comida de rua, já ele ouvia “muita coisa” que preferia ignorar: “Tratavam-me mal e já me quiseram bater.” “Eu sempre me vesti à rapaz, tive sorte na escola porque a minha turma foi a mesma do 1.º ao 9.º ano. Mesmo no secundário, não tive grandes problemas. Mas, com o tratamento, a voz vai mudando e, sem mastectomia feita, acho que há pessoas que olham de lado”, conta. E depois vêm as perguntas, “as afirmações sem certezas”. E isso, diz, “dá cabo” da sua saúde mental: “Uma chapada dói menos do que certas palavras.”

Em tratamento hormonal há três anos, Duarte sente que, por vezes, “quanto mais uma pessoa quer, mais longe está”. E isso torna-se “desgastante”: “Nem tenho vontade de sair à rua. O medo vai estar sempre aqui e preciso mesmo de sair, de continuar com a minha vida.” Está desempregado e em Esposende não é fácil encontrar trabalho. Nesta situação, se não fosse a mãe, “nem dinheiro para ir às consultas em Coimbra” teria.
Poucas opções para um país inteiro

É lá que se situa a Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS), do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Em 2017, uma circular informativa do Ministério da Saúde estabeleceu-a como “unidade de referência nacional para o acompanhamento dos/as utentes no processo de reatribuição sexual”, existindo ali “competência técnica e científica para acompanhamento multidisciplinar em todo o processo”, que inclui um vasto leque de profissionais de saúde: psicólogos, psiquiatras, sexólogos, urologistas, ginecologistas, endocrinologistas e cirurgiões plásticos

No ano anterior à decisão da tutela, o Centro Hospitalar de São João, no Porto, também começou a fazer cirurgias de redesignação sexual. Contudo, desde 2017 que, para cumprir as “recomendações superiores, as e os utentes neste âmbito (...) são referenciadas/os ao CHUC”, esclareceu fonte do hospital portuense. O São João continua a tratar, ainda assim, quem já se tinha ali iniciado o processo de transição física. Na mesma cidade, o Hospital de Santo António passou a ter disponível “uma nova consulta transgénero, única na região Norte do país, que integra uma equipa médica multidisciplinar de dez especialidades”.

Em 2016, o PÚBLICO noticiava que, na URGUS, quem quisesse levar a cabo “todos os tratamentos e cirurgias” deste processo entrava numa jornada que dura, em média, quatro anos. A Guadalupe deram-lhe uma estimativa bem superior: “Da informação que obtive, o tempo de espera seria de cerca de seis anos. Não sei se a minha saúde mental conseguiria suportar.” Duarte diz que se sente “mesmo parado”, há demasiado tempo à espera do dia em que “uma chamada ou uma carta”, como lhe disseram, anuncie a cirurgia que quer fazer: “Um dia vou à página e estou no número 80, amanhã estou no 68, depois já está no 90. Nunca é certo, ando sempre para cima e para baixo.”

A pandemia agravou o cenário: de acordo com a reportagem O Meu Género, do programa Linha da Frente, da RTP, realizaram-se apenas “quatro cirurgias genitais e à mama” em 2020 na URGUS — nos últimos dez anos, fizeram-se 126. Mas a resposta na esfera pública já era insuficiente antes da covid-19.

Mesmo que a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, tenha dito, em Maio, numa visita à nova unidade do Santo António, que esta reflecte uma estratégia de “não deixar ninguém para trás”, “há poucas unidades de saúde especializadas” em saúde “trans” em Portugal, repara a directora executiva da ILGA, Marta Ramos. No SNS, e de acordo com uma lista de serviços de saúde “trans” da Rede Ex Aequo, o Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, tem serviços de acompanhamento psicológico e sexologia. Em Lisboa, esses serviços podem ser encontrados no Hospital Júlio de Matos. No Hospital de Santa Maria, também na capital, há consultas de endocrinologia e realizam-se cirurgias não-genitais (para além dos serviços atrás referidos). Por outro lado, em Braga, no Hospital da Misericórdia de Vila Verde, realizam-se mastectomias. A estes somam-se a URGUS e o Santo António.

É pouco. “São as opções para um país inteiro e não podemos esquecer as ilhas. Há listas de espera e dificuldades de acessibilidade”, aponta a directora executiva da ILGA. Para além das “inúmeras dificuldades” que a centralização dos serviços traz, Marta Ramos afirma ainda que falta “compreensão e vontade política”. O médico João Correia Rodrigues, de 25 anos, defende que cirurgias como mastectomias “não têm de ser feitas num centro especializado”. E, por isso, o também representante da Anémona, um projecto que pretende criar “pontes” entre a comunidade transgénero e o SNS, é da opinião de que este não é um problema de “falta de fundos”, mas antes de “gestão administrativa”.
“Temos sempre a nossa identidade escrutinada”

Dentro das portas dos consultórios médicos também há questões a trabalhar. “É suposto que o processo comece com o médico de família a referenciar [o utente] para uma consulta de sexologia clínica. Mas muitos não têm conhecimento de como se faz esta referenciação, apesar da circular informativa do SNS”, salienta Marta Ramos. E também há um “incumprimento daquilo que são os standards internacionais de saúde nesta área”, definidos pelas Normas de Atenção à Saúde das Pessoas “Trans” e com Variabilidade de Género da Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgénero.

No âmbito da sua tese de mestrado, João Rodrigues esteve “voluntariamente seis meses a entrevistar pessoas ‘trans’, na consulta de Sexologia do Hospital Magalhães Lemos”, como escreveu no P3 em Dezembro de 2020. Ouviu o “percurso, queixas e vitórias” de “mais de 100 pessoas”. No final, concluiu que “mais de 50% das pessoas  “trans”  são discriminadas, pelo menos uma vez, por um profissional de saúde”. Também foram “frequentes” as “confusões com nomes e pronomes” — “e alguns de tal forma repetidos e tão infrutiferamente corrigidos que culminavam na desistência de acompanhamento com o médico de família”.

Para além disso, “Portugal é o único país em que a Ordem dos Médicos tem o poder” de, na prática, decidir “se uma pessoa pode fazer uma cirurgia genital ou não”, caso o deseje, lembra Marta Ramos. Antes, tem de se submeter “a duas avaliações distintas por duas equipas multidisciplinares, que inclui avaliação psicológica, e depois tem de fazer um ou dois anos de tratamento hormonal”, explica o representante da Anémona. Para o fazer, uma pessoa “trans” tem “de receber um diagnóstico de disforia de género, mas nem todas as pessoas “trans” têm disforia de género”. Vale também lembrar que “cada pessoa ‘trans’ é uma pessoa diferente e que o tratamento deve ser individualizado” — até porque “nem toda a gente vai ter as mesmas expectativas e desejos”.

Ou seja: “Tens pessoas cisgénero [pessoa cuja identidade de género corresponde ao género que lhe foi atribuído à nascença] que estão constantemente a pôr a tua identidade em causa”, diz Guadalupe. “Entendo que estejam formadas, mas em alguns testemunhos que li soube que eram muito insensíveis e desactualizadas. Temos sempre a nossa identidade escrutinada por meses por uma pessoa cisgénero.”

Há riscos que não podem ser ignorados

Parte do trabalho de associações como a Anémona ou a ILGA é ajudar a contornar esses obstáculos. A última, por exemplo, tenta “orientar as pessoas” para alguns serviços, já que algumas preferem evitar “os seus médicos de família”. “Através do aconselhamento psicológico, a ILGA faz as cartas de referenciação e estabelece-a de forma directa para as unidades especializadas”, completa Marta Ramos.

Este acompanhamento pode evitar comportamentos de risco que, por vezes, surgem como reflexo da falta de respostas dos serviços de saúde. “Algumas pessoas tomam hormonas sem prescrição médica. Ouvem dizer que é assim que se faz e isso levanta um conjunto de riscos de saúde a que o SNS e a saúde em geral não podem estar alheios”, avisa. No campo da saúde mental, “quanto temos um objectivo que está directamente relacionado com a identidade e temos barreiras físicas, temporais e relacionadas com a discriminação de indivíduos que não nos deixam avançar, há lugar para perturbações de ansiedade e depressão”, diz João Rodrigues. Alguns dados ajudam a perceber o porquê: a título de exemplo, um estudo norte-americano da associação Trevor Project sobre a saúde mental da juventude LGBT concluiu que 52% dos jovens “trans” ou não-binários teve ideação suicida no último ano.​

Actos tão simples como respeitar o pronome de alguém podem prevenir isto: a taxa de tentativa de suicídio duplicou nos casos em que isso não se observou. E aqueles que conseguiram mudar o seu nome ou género em documentos legais “relataram taxas mais baixas”.

Ainda há muito por fazer

Guadalupe “só este ano” concluiu a mudança na documentação legal. A Lei n.º38/2018 estabeleceu o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e, também, à protecção das características sexuais de cada pessoa nas escolas. Antes, com a lei n.º 7/2011, era preciso apresentar um relatório médico que comprovasse um diagnóstico “de perturbação de identidade de género”. Mudar o nome e o marcador de sexo no cartão de cidadão custava 200 euros, taxa que foi eliminada com o Orçamento do Estado para 2020.

Quando não tinha “o bilhete de identidade alterado”, Duarte teve “uma situação chata”. Prefere não aprofundar o que terá acontecido. Conseguir a alteração “foi muito difícil”: “Aqui na conservatória não queriam alterar. Fui seis ou sete vezes e nem sabiam que já não se pagava os 200 euros. Só mesmo com ameaças é que consegui mudar.”

Para ambos, ainda há muito a fazer. “As pessoas têm de ouvir falar mais, ler mais, saber mais. Acho que há quem afasta para o lado a questão só porque não têm informação suficiente para reagir”, opina Duarte. Guadalupe tenta “combater a desinformação em menor escala” através das redes sociais, mas frisa que os meios de comunicação social também têm essa responsabilidade. “Só é falado quando é polémico: a questão das pessoas ‘trans’ nos desportos de alta competição, a questão das casas de banho que poderia ter sido só falada com o intuito de sensibilizar as pessoas e alertar para falhas no SNS”, aponta. Mas não é só isso que falha: “Falam de determinada pessoa ‘trans’ e apresentam o seu nome morto, o género que não é o dela. E vejo muitas vezes em programas de TV que as pessoas ‘trans’ são tratadas como adereços. Desumanizam-nos e ridicularizam-nos por sermos ‘trans’.”


Havendo sensibilização, haverá mais pessoas a importarem-se com as vidas “trans” e, “eventualmente, estas questões podem ser levadas e discutidas pelas pessoas que nos representam” ao Parlamento e “serem traduzidas em medidas políticas”. Guadalupe sente ter havido progresso em debates como o da orientação sexual ou da questão racial, “mas a questão ‘trans’ tem sido frequentemente ignorada”. Daí que o “pequeno fenómeno” do crowdfunding a tenha surpreendido.

Ela foi a excepção à regra — “o grosso das pessoas não consegue alavancar para si o dinheiro de que precisa”, constata Marta Ramos —, mas Guadalupe chama a atenção para outras campanhas, como a de Duarte, que ainda não teve a mesma sorte. Agora, é altura de falar sobre tudo isto. “E de se unirem por outros como se uniram por mim”, desafia.

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