Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Essa forma de privação material ultrapassa os 70% entre as pessoas que vivem abaixo do limiar da pobreza, como Ana Lino ou Júnia Valente.
Aos anos que Ana Lino não passa uma semana de férias fora de casa. Em toda a sua vida, só teve essa experiência entre os oito e os 12 anos, quando os pais iam acampar a poucos quilómetros de casa, na Praia da Lomba, na margem esquerda do Douro, no concelho de Gondomar. Dias inteiros a brincar na água, no areal, na área de piqueniques e campismo.
A possibilidade de gozar férias cresceu ao longo da última década, de acordo com os indicadores de privação material do Instituto Nacional de Estatística. No ano passado, entre Abril e Setembro, com a crise sanitária já instalada mas amortecida pelos apoios assegurados pelo Estado, 38% dos residentes em Portugal disseram que viviam em agregados incapazes de pagar uma semana de férias fora de casa, suportando a despesa relacionada com o alojamento e a viagem para todos os membros, menos 2% do que no ano anterior.
Procurarão entreter-se em casa ou perto, como Ana, que tem 30 anos, uma filha de oito e um filho de sete. “É brincar, é tentar fazer joguinhos, é montar puzzles, é fazer roupinhas para as bonecas”, exemplifica. “No ano passado, montei duas tendas no quarto deles e brincámos ao campismo.” Como mora na zona Ocidental do Porto, na freguesia de Lordelo do Ouro, perto das praias da Foz, leva-os até lá. Sempre podem chapinhar na água, fazer castelos na areia, apanhar sol. Também tem o Parque Urbano da Pasteleira, com escorregas, balouços, sombra de pinheiros e sobreiros.
Desigualdade a aumentar
Não é uma impossibilidade reportada apenas pelos pobres. Basta ver que os cálculos feitos pelo INE em 2020 com base nos rendimentos de 2019 apontam para 16,2% de residentes a viver abaixo do limiar da pobreza (60% do rendimento mediano por adulto, o que correspondia então a 540 euros por mês). Mas nesse grupo, claro, a percentagem é muitíssimo maior.
Na União Europeia, cerca de 28% dos cidadãos com 16 ou mais anos não podem pagar uma semana de férias fora de casa. Essa porção sobe para 59,5% entre pobres, pelas contas da Confederação Europeia de Sindicatos (ETUC, no acrónimo inglês) feitas com base nos dados coligidos pelo Eurostat em 2019 e 2020.
As piores taxas encontram-se na Grécia, onde 88,9% das pessoas pobres não pode suportar os custos de oito dias de fora de casa. Seguiam-se a Roménia (86,8%), a Croácia (84,7%), o Chipre (79,2%) e a Eslováquia (76,1%). Portugal (72,6%) integrava o segundo grupo, com a Hungria (72,8%), a Bulgária (71,6%) e a Itália (71,2%).
A análise feita pela ETUC revela que a desigualdade no acesso às férias entre os que têm rendimentos abaixo e acima do limiar da pobreza aumentou em 16 Estados-membros na última década. Em Portugal, passou de 32.2% em 2010 para 39.4% em 2019.
Muitas pessoas em situação de pobreza encontram-se desempregadas ou reformadas, mas esse grupo inclui milhões de trabalhadores, lembra a ETUC na nota divulgada esta segunda-feira, procurando preparar caminho para o projecto de directiva sobre salários mínimos adequados e negociação colectiva que será analisado pelo Parlamento Europeu depois do Verão. “Os salários mínimos legais deixam os trabalhadores em risco de pobreza em pelo menos 16 Estados-Membros.”
É uma realidade que Ana conhece bem. Até a pandemia de covid-19 chegar, fazia limpezas num hotel da Baixa do Porto ganhando o mínimo estipulado por lei. A unidade, que abrira havia pouco, dispensou-a de imediato. “Nunca tive tantas dificuldades em arranjar trabalho”, comenta. “Tenho o 9.º ano, o que é pouco, mas sempre consegui trabalhar aqui ou ali, a fazer limpezas, o que for. Agora, ligo para empresas de limpeza, mas não me chamam. Talvez haja muita gente à procura do mesmo, não sei.”
Rendimentos muito baixos
Em Portugal, a maior parte dos adultos em risco de pobreza trabalha de forma permanente ou intermitente. E muitos dos que estão acima do limiar, num instante, podem ficar abaixo.
“É preciso ter noção que os rendimentos em Portugal são baixos”, salienta Fernando Diogo, professor da Universidade dos Açores e investigador do CICS.NOVA. “Há uma percentagem importante de pessoas vulneráveis. Qualquer acidente, como o desemprego, o divórcio ou a doença, as atira para uma situação de pobreza.”
A própria linha de pobreza é um indicador simplista. Ignora as despesas. E até, como se lê nos boletins do INE, “os rendimentos obtidos pelos agregados através de autoconsumo (bens alimentares de produção própria), autoabastecimento (bens ou serviços obtidos sem pagamento em estabelecimento explorado pelo agregado), autolocação (autoavaliação do valor hipotéctico de renda de casa pelos agregados proprietários ou usufrutuários de alojamento gratuito), salários em espécie”. Se a conjuntura económica é boa, a mediana sobe. Se a conjuntura é má, a mediana desce.
Para quem vive a contar o dinheiro, passar uma semana de férias fora só se for em regime “low cost”, para usar a expressão de Fernando Diogo. Será acampar num sítio não muito distante, como chegou a fazer Ana Lino na infância, ou ficar em casa de amigos ou familiares, como faz Júnia Valente.
Júnia cresceu sem saber o que era ir de férias para qualquer lado. Experimentou há três anos, quando um tio, emigrado na Suíça, comprou uma casa com piscina em Oliveira de Azeméis. Desde então, no Verão, havendo boleia a partir do Porto, lá vai ela com as filhas – de 13, oito, sete e quatro anos. “Elas ficam superfelizes!”
Já passaram uma semana em família este ano. E era lá que ia celebrar o seu 29º aniversário no fim-de-semana que agora chegou ao fim. “Até optei por não dizer nada às minhas filhas para não estarem constantemente a perguntar: “Quando vamos? Quando é? Falta muito? Falta muito?”
Gosta desta possibilidade de “sair da rotina”. “Ver a felicidade das meninas é muito bom. Alinho em todas as brincadeiras. Passamos a tarde toda na piscina”, conta. Este ano o tio não conseguiu vir. “Quando ele está é mais divertido.” Recria velhos jogos. Inventa novos. “Se há coisa que me deixa feliz é elas cresceram com esta recordação das férias na casa do tio.”
No seu último estudo sobre pobreza em Portugal, Fernando Diogo ouviu alguns adultos, ainda que poucos, a expressar alguma mágoa por nunca terem conseguido passar férias fora de casa. Era o constatar de um fracasso: “Sempre fui pobre, sempre serei pobre”.
“Será fácil perceber que quem vive numa situação de pobreza não considera as férias uma necessidade”, sublinha Gabriela Trevisan, do ProChild COLAB. Às vezes, nem dá para o mais básico – a alimentação, a renda ou a hipoteca, a água, a luz ou o gás, o telefone e a Internet. Há que recorrer à acção social. Ou à família e aos amigos.
A classe média baixa também tem sempre destino para o eventual subsídio de férias, como lembra Elsa Teixeira, investigadora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Se não for preciso saldar uma dívida ou pagar algo indispensável, há que fazer poupança para enfrentar alguma despesa inesperada.
Consequências no bem-estar familiar
“Se quisermos ter noções mais alargadas, perceber o que significa fazer férias, saberemos que é algo que contribui para o bem-estar familiar”, torna Gabriela Trevisan. A pobreza também se define pelo acesso a experiências. Parece-lhe evidente que não é igual nascer numa família focada na sobrevivência ou numa família que viaja, que compra livros, que pode proporcionar actividades culturais ou desportivas.
Quando o dinheiro é pouco, “as práticas culturais e de lazer são as mais afectadas”, achega Elsa Teixeira. “O mais comum são idas a cafés, a alguns espaços comerciais”, prossegue. “O acesso a algum reconhecimento social é feito através de compras de produtos de marca, com enorme sacrifício ou dívida.” Os consumos são particularmente importantes na cultura infantojuvenil, sublinha Fernando Diogo. “A questão das roupas, do telemóvel, dos gadgets, dos dados.”
Os filhos de Ana ainda são demasiado pequenos para prestar atenção às marcas de roupa e aos gadgets, mas já lhe perguntaram mais do que uma vez se iam de férias, como os colegas da escola. Fizeram-no antes de ela ficar sem trabalho. “Tu trabalhas, o pai trabalha, não vamos de férias?”, insistiam. “A vida não permite”, explicou. “Eles sabem ouvir um não. Foram habituados com pouco e contentam-se com pouco.”