6.8.21

Estado quer usar imóveis devolutos para reforçar rendas acessíveis

Luísa Pinto, in Público on-line

Decreto que regulamenta a Lei de Bases da Habitação define a “função social do imóvel” e obriga Estado a resolver todas as situações em que os cidadãos não tenham uma habitação adequada.

Os municípios vão poder tomar conta de imóveis que estejam devolutos em áreas onde consideram haver pressão urbanística para os colocarem no mercado de arrendamento acessível e, com eles, poderem executar políticas públicas de habitação. Esta é uma das fórmulas encontradas pelo Governo para efectivar a “Função Social de Habitação”, num decreto-lei onde se assume que a habitação é “um direito que é de todos e não uma mera prerrogativa de apoio do Estado aos mais carenciados, de índole assistencialista”.

Trata-se do decreto-lei com que o Governo se prepara para regulamentar a Lei de Bases da Habitação, que está em vigor há quase dois anos. De acordo com a proposta, a que o PÚBLICO teve acesso, os municípios devem comunicar ao proprietário essa intenção de usar o imóvel para arrendamento acessível na altura em que, ao abrigo da lei que está em vigor desde 2006, se preparem para fazer a declaração com a classificação do imóvel como devoluto.

A declaração de imóveis devolutos, e a sua penalização em sede fiscal, é uma “arma” que tem sido usada com muita parcimónia pelos municípios. A declaração de um devoluto baseia-se na inexistência de contratos em vigor com empresas de telecomunicações e de fornecimento de água, gás e electricidade (ou na inexistência de facturação relativa a esses consumos), e tem como consequência um agravamento fiscal nos municípios que determinem fazê-lo. Com a regulamentação da Lei de Bases da Habitação, os municípios podem, agora, apresentar ao proprietário uma proposta de arrendamento, para ser o município a ficar com o imóvel para depois o subarrendar.

No texto do decreto-lei determina-se que a renda a propor pelo município ao proprietário deverá ser calculada com base no valor de referência definido no Programa de Arrendamento Acessível – e que determina que as rendas devem estar 20% abaixo do valor de mercado encontrado pelo INE, depois de calibradas a qualidade e conforto, por exemplo. O documento também define que, no caso de o imóvel necessitar de obras de restauro ou conservação, o município pode substituir-se ao proprietário, fazer coercivamente as obras para corrigir, por exemplo, más condições de segurança ou de salubridade, e depois exigir o ressarcimento destes custos ao proprietário.
Direito universal

A Lei de Bases da Habitação, que entrou em vigor em Setembro de 2019, institui que a habitação é um direito universal e que o Estado está obrigado a garantir a todos os cidadãos uma habitação condigna e adequada. Faltava regulamentar a forma como as entidades públicas ficam de facto obrigadas a garantir uma alternativa a todos os indivíduos e agregados com carências habitacionais. Neste decreto define-se que as entidades públicas ficam com o “dever objectivo” de encontrar uma solução alternativa às pessoas em situação de carência e prestar o apoio necessário a esses agregados.

A proposta de decreto-lei começa por definir que estão em “situação de efectiva carência habitacional” todas as pessoas “que não possuam, ou que estejam em risco efectivo de perder, uma habitação adequada”. E define, ainda, que não pode ser considerada uma alternativa habitacional “aquela que imponha uma alteração ao agregado habitacional pré-existente à situação de carência”. Ou seja, uma família alargada que esteja sob o mesmo tecto não pode ser separada, ou dividida, a não ser que essa mesma família esteja de acordo com isso. Normalmente, essa separação surge a pedido das próprias famílias.

O decreto-lei determina, ainda, o “direito à escolha do lugar de residência”. Isto é, os munícipes terão voz na localização da residência, apesar de terem de a conjugar com “condições de acesso, de critérios de elegibilidade ou da definição de impedimentos, bem como de condicionalismos urbanísticos”.

A prioridade das entidades públicas deve ser encaminhar esses agregados para uma resposta habitacional permanente dentro do parque habitacional público existente – seja propriedade dos municípios, seja do Estado central, isto é, do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Não havendo parque público disponível – e é essa a razão das listas de espera em cidades como Lisboa e Porto –, a lei vai determinar a obrigação de os municípios sinalizarem essa situação nas suas Estratégias Locais de Habitação e arranjar uma solução transitória, preferencialmente “através da Bolsa Nacional de Alojamento Urgente e Temporário”.

Em Julho, quando esteve na Assembleia numa audição regimental, o ministro da Habitação, Pedro Nuno Santos referiu que ainda havia 180 municípios a elaborar as respectivas Estratégias Locais de Habitação.

Recorde-se que tanto o Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (1º Direito), como a criação desta Bolsa, estão entre as principais fatias de subvenções que vão ser obtidas no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) : 1211 milhões de euros para financiamento da solução habitacional de 26 mil famílias; e 176 milhões de euros para a construção de 473 fogos e 2000 alojamentos de emergência.
Direito de preferência

Aumentar o parque público habitacional tem sido o principal objectivo anunciado por este Governo, com o ministro Pedro Nuno Santos a defender que só com um parque robusto é que se pode fazer “a verdadeira política pública de habitação”. Por isso, o decreto-lei que vem regulamentar a Lei de Bases também define os critérios que possibilitam aos municípios, às regiões autónomas e ao estado central, via IHRU, exercer o direito de preferência em todas as transacções de imóveis.

O decreto-lei refere que “o exercício do direito de preferência pode ser executado em zonas de pressão urbanística”, em que esta esteja “delimitada com fundamento na falta ou desadequação de oferta” habitacional, e também em todos os territórios que estejam identificados com essa desadequação “no Programa Nacional de Habitação”.

IHRU com poderes reforçados na fiscalização do arrendamento

O Governo propõe no decreto regulamentar da Lei de Bases da Habitação que o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU) fique com poderes reforçados na fiscalização dos contratos de arrendamento – uma possibilidade que tinha já sido anunciada pela secretária de Estado da Habitação em entrevista ao PÚBLICO.

Assim, o IHRU vai assumir competências no âmbito da fiscalização do arrendamento habitacional, ficando com o dever de participar às autoridades competentes “os factos de que tenha conhecimento no desempenho das suas funções que indiciem a prática de infracções cuja apreciação e punição não seja da sua competência”.

Esta actividade de fiscalização ainda terá de ser regulada por portaria, mas o executivo está considerar, por exemplo, a inexistência de contratos ou a existência de deficiências nas condições de habitabilidade de fogos arrendados ou subarrendados. O diploma estabelece que o IHRU pode solicitar à câmara municipal a determinação do nível de conservação do respectivo locado e, deste modo, em articulação com as autarquias locais, contribuir para a resolução dos problemas detectados nas condições de habitabilidade dos fogos arrendados.

O decreto-lei prevê ainda a obrigatoriedade de a publicitação dos imóveis com vista ao arrendamento ser acompanhada de elementos obrigatórios que permitam ao pretendente a inquilino ter um conhecimento prévio do prédio ou fracção a arrendar. Os anúncios de arrendamento devem ter explícita informação sobre licença de utilização e área útil do imóvel a arrendar. O incumprimento desta regra leva a coimas, a cobrar pelo IMPIC - Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção,​ junto das mediadoras imobiliárias. O objectivo é evitar a “publicitação de imóveis que não tenham uso habitacional autorizado ou que não reúnam condições para o efeito”.

O Programa Nacional de Habitação ainda não existe, porém. Em Fevereiro, quando tomou posse o Conselho Nacional da Habitação, o Ministério revelou a intenção de ter este “documento plurianual, prospectivo e dinâmico, com um horizonte temporal não superior a seis anos” pronto e aprovado ainda durante este ano de 2021.

O exercício do direito de preferência deve ser executado no prazo máximo de dez dias a contar da data em que haja publicitação, via notário, da intenção de fazer a escritura de compra e venda de um imóvel. Ou seja, a transacção de um imóvel entre privados pode sair prejudicada, se o imóvel for do interesse do município, ou do Estado, para cumprir a sua política de habitação. Basta o município, ou o Estado, igualar o preço que iria ser pago pelo privado. A hierarquia do direito de preferência é dada precisamente nesta ordem: prioridade aos municípios, que só perdem o direito de preferência se ele for invocado por arrendatários que estejam a ocupar o imóvel que vai ser transaccionado.