Plano do Governo de subida do salário mínimo já está, oito meses depois de ter sido anunciado, a ser outra vez discutido. As circunstâncias são, por causa da pandemia, bastante diferentes, mas os argumentos são em tudo semelhantes aos do passado.
Para já, o que é certo é que a pandemia reanimou o debate sobre o salário mínimo. Até há pouco tempo, o assunto parecia estar, pelo menos temporariamente, fechado. Em Dezembro do ano passado, o executivo não só definiu uma subida do salário mínimo de 600 para 635 euros este ano, como traçou o objectivo de, com aumentos anuais graduais, colocar este indicador nos 750 euros em 2023, concretizando a maior subida de sempre num período de quatro anos.
Com este plano definido, a expectativa era a de que as habituais discussões anuais sobre a actualização do salário mínimo fossem a partir de agora bem mais moderadas. Para 2021, por exemplo, num cenário em que nada de substancial na economia tivesse mudado, um aumento do salário mínimo para perto de 670 euros (o ritmo que permite colocar o valor em 750 euros em 2023) não geraria provavelmente grande discussão, uma vez que o essencial das negociações tinha sido feito no final de 2019.
Mas agora, com a conjuntura económica virada de pernas para o ar, a meta traçada pelo Governo para o salário mínimo - e em particular a subida a realizar em 2021 - já está novamente no centro do debate político.
De um lado, as associações empresariais pressionam o Governo a suspender o seu plano de subida do salário mínimo. Do outro, os sindicatos e os partidos à esquerda usam os seus trunfos para garantirem que não há qualquer alteração de planos.
Não será possível ao executivo deixar as decisões para perto do final do ano porque Bloco de Esquerda e PCP querem que seja tomada uma posição definitiva sobre o assunto já nas próximas semanas, ligando esta matéria às discussões sobre o Orçamento do Estado para 2021 (OE 2021) e tentando aproveitar ao máximo o desejo de António Costa de estabelecer um novo acordo de governação estável entre o PS e os partidos à sua esquerda.
Em relação aos argumentos, se os empresários dizem que um aumento do salário mínimo de 635 euros será a gota de água que levará muitas empresas à falência, os sindicatos e os partidos à esquerda defendem que desistir do salário mínimo agora seria mais uma machadada na procura interna, alertando para a contradição que seria abdicar de um instrumento de combate à desigualdade no momento em que as desigualdades são mais evidentes.
Argumentos económicos
Também entre os economistas consultados pelo PÚBLICO é o peso que se dá a cada um destes argumentos que determina aquilo que pensam sobre o que fazer ao salário mínimo.
Uma coisa pelo menos é certa: a crise económica de proporções inéditas amplifica a importância das escolhas que serão tomadas agora e pode, em alguns casos, mudar a opinião sobre aquilo que se deve fazer.
É o caso do economista Vítor Bento, que antes da crise tinha defendido a existência de vantagens para a economia portuguesa na opção de subir o valor do salário mínimo. Nessa altura, explica em declarações ao PÚBLICO, defendeu que o aumento do salário mínimo, “num contexto de pleno emprego ou próximo disso, poderia ser um indutor da reestruturação do tecido empresarial, no sentido de forçar a procura de formas organizacionais e processos produtivos com maior produtividade”. Mas agora, “dada a excepcionalidade e imprevisibilidade da situação vivida, o mais prudente seria esperar que esta estabilizasse” antes de se realizarem novas subidas, considera.
“Actualmente, estamos no meio da maior recessão económica de que as gerações vivas terão memória e da qual não conhecemos ainda toda a profundidade, duração e impacto final no volume de emprego. Sabemos apenas que este vai aumentar, várias empresas já fecharam ou irão fechar e, entre as sobreviventes, muitas terão ficado muito depauperadas financeiramente. Aumentar custos salariais nestas circunstâncias poderá levar ao fecho de algumas destas sobreviventes e tornar mais difícil a absorção do desemprego entretanto criado”, afirma Vítor Bento.
A mesma opinião é expressa por Pedro Martins, professor no Queen Mary College da Universidade de Londres. “Em termos económicos e sociais, um aumento do salário mínimo como o previsto poderia criar vários problemas no mercado de trabalho. As empresas estão muito fragilizadas e o desemprego iria crescer ainda mais”, afirma. “Não digo que não haja empresas que continuem a contratar. Temos 400 mil empresas em Portugal, vai haver de tudo. Mas penso que a maioria, ainda para mais se tiverem de enfrentar um aumento de custos, não o fará”, diz.
O economista, que era secretário de Estado do Emprego entre 2011 e 2013, um período em que o desemprego cresceu apesar de o salário mínimo se ter mantido congelado, defende que essa foi a opção certa, mostrando-se convicto de que “se o salário mínimo tivesse sido aumentado, o desemprego teria subido ainda mais”.
José Castro Caldas, professor na Universidade de Coimbra, tem a opinião exactamente oposta. “Se pensarmos na forma de evitar que a crise tenha um efeito duradouro, a preocupação devia ser tentar evitar uma descida de salários, não promovê-la”, diz, defendendo que “no que diz respeito ao salário mínimo, no mínimo, deve-se manter o plano de subida”.
O que este economista teme é que, se o nível dos salário não for promovido, a procura interna irá ressentir-se e, deste modo, prejudicar ainda mais as empresas e a economia. Por isso, diz, o argumento de que o desemprego pode subir mais não é válido. “Esse é o argumento de sempre, que não olha para as condições da procura e só olha para o lado da oferta. É preciso ter em conta que, desta vez, não há uma saída da crise pelo exterior, pela desvalorização salarial, pela redução dos custos salariais que aumente a competitividade externa, porque estamos num cenário de contracção da procura externa”. Pelo contrário, Castro Caldas defende que a solução para mitigar o efeito da pandemia “passa pelo mercado interno” e dá o exemplo do sector do turismo. “O que tem estado a mitigar a crise no turismo é o turismo interno. Por isso, estar a querer reduzir salários neste contexto, é estar a infligir danos a si próprio”, afirma.
Pedro Martins - ecoando os economistas que temem que uma nova subida do salário mínimo gere mais desemprego - sublinha que o argumento da defesa da procura interna funciona, mas ao contrário. “Se as empresas, porque os custos são muito elevados, acabam por não contratar, ficamos sem essa procura adicional”, afirma.
O nível certo
Já na anterior crise, foi intensa a discussão sobre se aumentar o salário mínimo provocaria mais desemprego. Quando, em 2015, o governo de António Costa tomou posse e mostrou a intenção de iniciar um processo de subida ambicioso, Comissão Europeia e FMI mostraram a sua oposição, alertando para os efeitos que isso poderia ter no emprego.
Os anos seguintes mostraram que, com a economia a crescer, foi possível, em simultâneo, subir o salário mínimo e fazer cair a taxa de desemprego. Será que isso continuaria a acontecer agora?
Stefano Scarpetta, director do departamento do emprego e assuntos sociais da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) diz que a resposta a esta questão está no nível do salário mínimo. “Na Alemanha, quando se introduziu o salário mínimo em 2015, discutiu-se muito se iria afectar o emprego. E a verdade é que não afectou. Mas tudo depende do nível do salário mínimo, se estiver ainda a um nível adequado, não terá efeitos negativos. Se o seu nível for alto de mais, haverá trabalhadores que não vão beneficiar dele porque ficam no desemprego”, explica, em declarações ao PÚBLICO.
O nível do salário mínimo em Portugal continua, apesar das subidas dos últimos anos, na metade mais baixa da tabela europeia, quando se olha para o valor nominal e mesmo para o valor tendo em conta o poder de compra.
No entanto, Portugal é um dos países em que salário mínimo está mais próximo dos valores médio e mediano dos salários. Para além disso, a percentagem de trabalhadores a receber o salário mínimo cresceu nos últimos anos para um valor acima de 20%. Isto são sinais de que o salário mínimo pode estar a um nível relativamente elevado quando se compara com o resto dos salários que se praticam em Portugal.
Esta é uma questão importante numa altura em que começa a haver sinais de que o nível salarial global em Portugal pode vir, por causa da crise, a interromper a tendência de subida dos últimos anos.
“Já se começa a notar nos dados publicados sobre as remunerações que houve um abrandamento dos salários nos últimos meses”, assinala João Cerejeira, professor da Universidade do Minho, destacando que este sinal dado pelo mercado pode constituir um aviso para o impacto que uma subida do salário mínimo pode ter. “Numa trajectória de subida do desemprego, o risco de um aumento do salário mínimo fazer subir o desemprego torna-se maior”, diz. Ainda assim, este economista assinala que neste momento, o cenário é ainda de grande incerteza. “Não sabemos quanto vai ser o desemprego, principalmente no próximo ano”, acrescenta.
Subidas adaptadas
Outro factor que pode ser importante na actual discussão é o facto de alguns dos sectores onde o salário mínimo é mais prevalente serem simultaneamente aqueles onde a crise está a ter um maior impacto. Em particular, de acordo com os dados do Ministério do Trabalho relativos a 2018, quase um terço (32,5%) dos trabalhadores no sector do alojamento e da restauração auferem o salário mínimo. Este é o valor mais alto entre todos os sectores analisados.
“A restauração é um dos sectores mais afectados pela crise e não vai estar a recrutar nos próximos tempos, vai estar provavelmente a despedir. Existe o risco de um aumento do salário mínimo forçar o encerramento de algumas empresas”, assinala João Cerejeira.
Isto faz levantar a questão sobre se não seria de pensar em tratar de forma diferente os vários sectores, permitindo que em actividades com maiores dificuldades não se aplique uma subida do salário mínimo. O economista da Universidade do Minho não vê isso a acontecer. “No início do salário mínimo havia um conjunto de excepções, mas foram desaparecendo ao longo do tempo. É uma tendência na lei portuguesa, não me parece provável que se volte atrás nesta matéria”, afirma.
O economista sugere no entanto uma solução inovadora que ajudasse a adequar o nível do salário mínimo àquilo que está a acontecer no mercado de trabalho. “Poder-se-iam estabelecer patamares de actualização do salário mínimo de acordo com a taxa de desemprego registada. Essa modelação da evolução do salário mínimo tinha a vantagem de despolitizar um pouco o tema, deixando ainda assim a flexibilidade ao Governo para decidir dentro dos patamares definidos como é que o salário mínimo pode evoluir”, aconselha. Seria uma solução com semelhanças àquela adoptada para as pensões.
Para 2021, no entanto, esta solução já não virá a tempo para o Governo, que terá, mesmo num cenário de grande incerteza, de tomar uma decisão.
O mesmo aconteceu ao executivo liderado por Angela Merkel. Na Alemanha, patrões e sindicatos discutiram no final do passado mês de Junho, já no meio da crise trazida pela pandemia, qual a evolução do salário mínimo no país. Chegaram a um entendimento relativamente à realização de um aumento em quatro fases dos actuais 9,35 euros por hora até aos 10,45 euros em Julho de 2022, com a primeira subida a ser feita no próximo mês de Janeiro. É um acréscimo de 11,8%, que compara com o aumento de 18,1% que o Governo português se comprometeu a fazer desde agora até ao final de 2023.
E o governo alemão já disse, pela voz do ministro do Trabalho, que, apesar da crise, este acréscimo será mesmo para passar à prática. “O salário mínimo tem sido uma história de sucesso, que precisa de continuar a ser escrita”, disse.