2.9.20

Os “parasitas” que nos alimentam

Daniel Oliveira, in Expresso

“O distanciamento social é um privilégio”, disse o sindicalista e migrante Aboubakar Soumahoro às duas documentaristas que o usaram para registar as condições dos 200 mil imigrantes indocumentados em Itália que, durante a pandemia, mantiveram a agricultura em funcionamento. Quando vejo um líder de extrema-direita chamar “parasitas” aos que fazem o trabalho que mais ninguém quer sinto nojo. É bom ter o privilégio de não ver a desgraça dos que nos alimentam. Nem temos de lhes agradecer

Enquanto Itália se encerrava em casa, alguém garantia que a comida chegava aos pratos. Com o sector agrícola a ganhar uma total centralidade, descobriu quem quis descobrir que havia uns trabalhadores indispensáveis: os 200 mil migrantes indocumentados, a que o mundo “civilizado” chama “ilegais”, como se houvesse humanos que o fossem. Sem que outros imigrantes pudessem entrar e com os italianos pouco dispostos a aceitar tal trabalho, foram eles que trataram de dar de comer ao país.

Num acesso de “generosidade”, foi-lhes dada autorização de trabalho temporário, por seis meses. Matteo Salvini gravou um vídeo em que avisava os italianos que estavam em casa com medo de perder o emprego que o governo se prepara para a malfeitoria de legalizar aqueles que há tanto trabalham para eles. Mas estes imigrantes têm agora uma voz, uma liderança: o migrante, sindicalista e desde este ano dirigente da Lega dei Braccianti (jornaleiros), Aboubakar Soumahoro. Nasceu na Costa do Marfim, chegou a Itália em 1999, trabalhou nos campos, formou-se em sociologia e hoje dá voz a estes homens e mulheres: “legalizar todos os seres humanos, não porque seja conveniente, mas porque é responsabilidade do Estado”.

“O distanciamento social é um privilégio”, disse Soumahoro às duas documentaristas italianas a viver nos EUA, Carola Mamberto e Diana Ferrero, que o usaram como seu braço para registar o que ele tão bem conhece: as condições miseráveis dos migrantes em Itália. 14 ou 15 horas de trabalho por dia por apenas três ou quatro euros à hora, sem contratos, sem acesso a cuidados de saúde ou direitos de residência. Graças a isso, preços baixos nos supermercados.

Se querem saber porque é que na Suécia ou em Portugal os imigrantes foram dos mais afetados pelo coronavírus; porque é que os subúrbios de Lisboa foram o problema quando chegou o desconfinamento, atentem nestas palavras: “o distanciamento social é um privilégio”. E por ser um privilégio, as maiores vítimas da pandemia na população ativa foram os que estiveram na linha da frente e a quem ninguém bateu palmas. Essenciais para a economia.

Quando vejo um político de extrema-direita a chamar parasitas aos que fazem o trabalho que mais ninguém quer, aos que enchem s comboios às cinco da manhã com um tom de pele que eles teimam em colar ao crime, que limpam as casas, limpam as empresas, erguem os prédios e fazem as estradas, estão nas estufas no Alentejo ou nos campos agrícolas da Apúlia, sinto nojo. Chamam parasita a quem nos dá de comer. Os que, quando tantos puderam ficar em casa, mantiveram a casa das máquinas a funcionar.

É bom ter o privilégio de não ver a desgraça dos que nos alimentam. Nem temos de lhes agradecer. Não existem. Só na CMTV, quando se fala de crime. Só na boca de verdadeiros parasitas, que vivem da desgraça e da ignorância alheia, como o boçal Salvini, o inútil herdeiro Trump, o oportunista Ventura. No curto documentário, menos de dez minutos, Soumahoro dá-nos um resumo da tragédia destes migrantes. A que alimenta a superioridade civilizacional europeia que lhes esfregamos na cara com desprezo. Bom ter a barriga cheia para escarnecer de quem a enche.