1.4.20

"Se não fosse esta refeição, morria." Como se protege os idosos da cidade da pandemia

Catarina Reis, in DN

Uma freira de 85 anos comanda a missão, os funcionários seguem-na. É assim que se continua a alimentar os idosos na Penha de França em tempos de pandemia. Uns na fila, com distância, outros em casa. O retrato do risco de uma capital envelhecida e pobre.

Dez minutos para as 12.00 e a fila já é longa na Rua Dr. Oliveira Ramos, na Freguesia da Penha de França, em Lisboa. A distância de segurança exigida torna mais silenciosa a espera destas dezenas de idosos - ao todo, são perto de 50. Todos se conhecem, porque estar aqui é um ritual diário, mas não trocaram palavra, nem sobre o sentimento de viver estes novos tempos que assolam Portugal e o mundo. Têm os olhos pregados ao chão ou atentos ao fundo da rua, tornando clara a tristeza destes dias.

Os idosos aguardam à porta do Centro Social Paroquial São João Evangelista de saco na mão. Dentro, os recipientes de plástico vazios que se hão de encher. À porta, Lúcia Moreira, 44 anos, rosto familiar a todos, vai recolhendo os sacos, três a três, e volta a trazê-los minutos depois com uma refeição quente - sopa e prato do dia -, fruta e laticínios. E é assim, nesta fila, que uma das zonas mais pobres e envelhecidas de Lisboa vai sobrevivendo ao coronavírus. Com as medidas de segurança exigidas. Mas mantendo a ajuda necessária.

A paróquia era o antigo centro de dia para muitos dos que esperam agora à porta. Aqui vinham conversar e estar. Mas agora as medidas de contingência fecharam as portas de espaços como este - sobretudo onde se aglomeravam vários grupos de idosos, considerados o maior grupo de risco do coronavírus. Não por acaso, os lares têm estado no centro da maior atenção por parte das autoridades de saúde e são os locais onde o vírus tem chegado em força. A maioria das vítimas mortais em todo o mundo tinham mais de 60 anos - sendo a taxa de mortalidade mais alta a partir dos 80.

O centro está a meio caminho entre o Bairro Horizonte e a Quinta do Lavrado, onde foram realojadas mais de 500 famílias da bem conhecida e já demolida Curraleira. Foi no verão de 2001 que o antigo bairro, um dos maiores aglomerados de barracas da capital, desapareceu do mapa. Alguns dos seus moradores estão agora nesta fila que se estende à porta do Centro Social Paroquial São João Evangelista. "Poucos são utentes e outros são apoiados com cabazes de alimentos", explica a Junta de Freguesia da Penha de França.

A maioria dos idosos que hoje procuram uma refeição quente em frente a estas portas são antigos vendedores ambulantes e ex-operários de fábricas de confeção de chapéus, luvas, roupas entretanto desaparecidas da cidade. "Realizaram muito do seu trabalho antes do 25 de Abril e, portanto, não fizeram ou fizeram poucos descontos para a Segurança Social", dependendo agora de "pensões baixas", esclarece o gabinete da presidência da junta. Uns vivem nas suas casas, mas grande parte dos que esperam nesta fila adormecem todas as noites num quarto alugado.

É o caso de Luís Santos, de 61 anos. Sem querer adiantar muito das voltas que a vida deu para aqui chegar, confessa que "se não fosse esta refeição não conseguiria mesmo sobreviver. A expressão é forte, mas sei que morreria à fome". Há sete anos que frequenta o centro de dia da paróquia, onde ia almoçar, "ficando para lanchar também". Por lá, mas a um canto, mais isolada, estava sempre Deolinda Coelho, 76 anos. "Gosto do meu espaço, de estar sossegada", diz. Por isso agora não lhe faz muita diferença a distância social que tem de manter na longa fila em que espera.

Cravando o olhar perdido ao fundo da rua, descai o ombro direito encostado à parede, com a mão esquerda agarra três sacos e com a direita apoia-se a uma grade de ferro preta. Debaixo do lenço axadrezado sobre os ombros leva uma manta lilás que esconde o topo da bengala canadiana em que ampara as mazelas que a vida lhe deixou no corpo: aos 72 anos, submeteu-se a uma mastectomia para travar um cancro feroz, há dois meses foi operada aos olhos, o que a obrigou a andar com uma pequena pala transparente e esburacada no olho esquerdo. Deolinda vive agora no quarto de um hostel "umas ruas acima". Faltam-lhe condições para mais e "daqui a uns dias" muda-se novamente.

Emanuel e as "cinco missionárias", projetistas da causa
"Ao que nada espera, tudo o que vem é grato", escrevia Fernando Pessoa. Uma máxima pela qual a paróquia se faz reger todos os dias. Os tempos de pandemia não são exceção. Enquanto a fila cresce e decresce lá fora, cá dentro fala-se de saudade: das mesas cheias, do burburinho das conversas cruzadas, do entra e sai de dezenas de seniores residentes na freguesia.

Sobre as mesas estão agora as cadeiras em que antes se sentavam. Falta o fado que se cantava depois da refeição, importado de uma antiga utente, "Fernanda, La fadista", vendedora ambulante de peixe e de boas cantigas quando de xaile ao ombro. Mas falta também o cantarolar do Bingo, as peças de dominó a tilintar umas nas outras na hora da competição.

"Faz falta", admite quem ainda fica cá. Mas "não era possível parar porque eles precisam tanto de nós", diz Lúcia. Vai até à sala quase vazia em passo apressado, com os sacos que recolheu na fila na mão. Dirige-se ao fundo da sala, onde se abrem duas largas portas para o cenário da cozinha do centro de dia. Lá dentro estão Carla e Tina, de 50 e 49 anos, respetivamente, as cozinheiras.

O relógio ainda não batera as 10.00 e já se preparavam as refeições quentes do dia: hoje é dia de sopa de grelos e esparguete com hambúrguer. "Fazemos tudo com muito gosto", sorri Tina, há quatro anos funcionária neste espaço. É este o menu, mas "eles gostavam era de uma feijoada ou de um cozido, isso é que era". E Carla acrescenta: "Antes ainda dava para fazer, agora já não, temos de pensar bem as refeições para que durem boas durante mais tempo."

Depois de encher os tupperwares, Lúcia continua a sua maratona. Não baixa a máscara, não descura o uso das luvas e atenta em cada passo, em cada toque, para garantir a máxima higiene no processo. Corre, corre para o dia acabar o mais cedo possível. De segunda a sexta, ergue-se todos os dias cedo da cama, para regressar muito perto da meia-noite. Em casa deixa cinco filhos e um marido acamado. "Tenho vivido de coração nas mãos, tenho de ter muito cuidado. Ando de máscara sempre que posso. Quando chego a casa descalço-me e dispo-me para ir logo tomar banho", conta. Os dias são passados 24 sobre 24 horas debaixo da máxima segurança: em casa ou aqui, Lúcia reconhece que todo o cuidado é pouco quando se vive perto daqueles para quem o vírus representa maior risco.

Antes de aparecer à porta onde devolve os sacos, faz uma paragem, passando o testemunho para Emanuel Sousa, 31 anos, auxiliar de serviços gerais do centro. O sol mal se tinha levantado nesta manhã e já o jovem guiava pelas ruas de Lisboa em direção à sede do Banco Alimentar, onde foi recolher "os frescos" - "porque na quinta-feira é dia de frescos" - e outros produtos que compõem o cabaz que entregam no saco que os idosos lhes trazem.

A parceria entre o centro e a instituição tem anos, "ainda era o Banco Alimentar uma pequena cozinha em Alcântara", conta. Uma embalagem de iogurte grego, outra de gelatinas, um queijo dos Açores, fruta. Emanuel vai enchendo os sacos e lembrando como um dia foi ele mesmo e a sua família quem precisou de sair daqui de saco cheio em direção a casa.

"Tinha 9 anos, a primeira vez que aqui vim", conta. A mãe trabalhava como funcionária num colégio "aqui perto" e depois das aulas, com ela, Emanuel vinha até à paróquia para almoçar a sua refeição quente. "Antes, juntavam-se aqui tanto novos como velhos", todos à procura de apoio alimentar para o qual raramente as finanças do mês chegavam. Entretanto, e durante vários anos, tornou-se voluntário no centro, onde há cerca de dois anos assumiu funções a tempo inteiro como braço direito da irmã Ângela Lopez, a maior responsável pela gestão diária do espaço.

De cabelo grisalho, bengala na mão, é do alto dos seus 85 anos que a irmã Ângela diz: "Não tenho medo deste vírus". Teme pelos outros, diz ter dobrado as rezas diárias por todos aqueles que já não entram pela porta todos os dias, mas a ela o vírus não assusta, garante num sotaque barcelonês. Talvez por "já ter visto tanta batalha". Nascida em Barcelona, Espanha, rumou a Portugal em 1955, de uma ditadura para outra. Estava "no Rato" quando a Revolução de Abril aconteceu. Nasceu em plena Guerra Civil Espanhola, e as marcas fizeram parte do seu crescimento nos primeiros anos de vida. Para cada conto da história, tem a resposta na ponta da língua e por isso, sublinha, a pandemia não a assusta.

É por ela que o centro continua aberto. "A irmã não suportava a ideia de deixarmos de dar a mão a estas pessoas", garante Carla. Por isso deu ordens para que "as cinco missionárias", além de Emanuel, ali permanecessem como engrenagens necessárias para que a causa aconteça. "Cinco missionárias", como decidiu chamar-lhes, um grupo integrado pela cabo-verdiana Lúcia, as portuguesas Carla e Tita, uma outra funcionária indiana e ainda a assistente social do centro paroquial, também portuguesa.

Depois de Emanuel encher os sacos, Lúcia pede a atenção da irmã Ângela, ditando-lhe nomes. Sentada ao canto de uma mesa, de caneta vermelha na mão, a irmã marca com uma cruz os nomes escritos na extensa lista. Fechadas as portas da hora de almoço, verifica se todos os que prometeram vir lhe bateram à porta naquele dia. Senão, faz-lhes uma chamada: "Tento perceber porque não vieram, se está tudo bem, se estão doentes, se podemos fazer alguma coisa por eles." Afinal, o fado ainda ecoa cá dentro.


É então que liga Armindo Lopes, 75 anos, cuja ausência ficou marcada no papel que a irmã preenchia durante a hora de distribuição do almoço. É um dos dois a quem o centro tomou a iniciativa de entregar a refeição ao domicílio. Emanuel agarra dois sacos e guia até umas ruas abaixo. Armindo já o espera à porta de casa. "Amanhã à mesma hora?", pergunta, enquanto Emanuel lhe entrega o saco através da janela da carrinha. "Exatamente. Tenha um bom almoço!" Armindo é utente do centro há vários anos, mas "anda muito devagar, tem dificuldade motoras", com compras "ainda pior", por isso, nesta altura da pandemia que pede resguardo, a equipa tomou a liberdade de lhe levar a refeição todos os dias.

Pé no acelerador e Emanuel arranca outra vez. Agora até à casa de um casal também conhecido de todos no centro paroquial. Emanuel prepara o terreno para o que vamos encontrar: "A esposa tem uma doença leve, é o tipo de pessoa que se sair da rotina fica perdida. Se o marido sai, ele fica aflita, por isso nós levamos a refeição. São pessoas que tiveram outro tipo de educação, não conseguem entender muito bem esta fase, a dimensão das coisas." É quinta-feira e no dia seguinte há almoço reforçado para todos, "para evitar que saiam de casa durante o fim de semana", adianta.

De regresso ao centro, é a vez de Lúcia dar por terminada a entrega de refeições. Todos os dias, de saco na mão, máscara, luvas e touca, se dirige a um prédio antigo com vista para o velho Cemitério de São João para entregar a refeição quente a uma idosa de 76 anos. Foi a pedido da sua irmã, utente do centro, que se passou a prestar este serviço ao domicílio, ainda antes de estes tempos de pandemia exigirem o cuidado. Lúcia dá-lhe de que agora a sala do centro ficou vazia para que todos estejam em segurança.

Escadas abaixo, as portas dos vários andares do prédio vão-se abrindo para dar as boas-vindas a Lúcia, presença a que já estão habituados. Quando não vem, assinalam-lhe logo a falta: "Ontem não foste tu", lembra um dos vizinhos, José Antunes. No rés-do-chão, vai preparar o almoço para a mãe. E dá o exemplo: antes de passar a porta de casa tira o robe escuro que ainda tinha vestido e muda de chinelos. No rés-do-chão, veste outro robe, descalça os chinelos e coloca uma máscara para cumprimentar a mãe, Constância, de 86 anos. "Tem de ser, temos de cuidar dos mais velhos, principalmente nesta altura."

José Antunes vai preparar o almoço para a mãe. E dá o exemplo: tira o robe escuro que ainda tinha vestido
José Antunes vai preparar o almoço para a mãe. E dá o exemplo: tira o robe escuro que ainda tinha vestido e muda de chinelos. © Reinaldo Rodrigues/Global Imagens
Como conviver com a pandemia quando a casa é um quarto
Foi a pensar no bem-estar da população mais vulnerável e carenciada que o Banco Alimentar decidiu criar neste mês uma rede de emergência alimentar, através da qual um grupo de voluntários se dedica à entrega de refeições ao domicílio a quem se inscrever para este apoio.

No dia 19 de março, o país entrou em estado de emergência. O primeiro-ministro falou aos cidadãos portugueses, sem fazer grandes exigências, apenas pedindo que todos fossem conscientes do que vivemos e do que ainda se avizinha. Para os maiores de 70 anos, considerados grupo de risco para o covid-19, o decreto prevê "um dever especial de proteção".

Os mais idosos só deverão circular em espaços e vias públicas ou em espaços e vias privadas equiparados a vias públicas para deslocações específicas: ao supermercado, a hospitais ou a centros de saúde, a bancos e para "passeios higiénicos" de curta duração. Mas são os que têm mais restrições os menos dispostos a aceitar as exigências dos novos tempos.

De acordo com um estudo da Nova SBE Health Economics & Management Knowledge Center da Universidade Nova de Lisboa (NHEM), através do qual uma equipa de investigadores acompanhou os hábitos dos portugueses durante a evolução do novo coronavírus no país, "são os idosos que dizem manter a sua vida mais normal do que os outros". Quem o diz é Eduardo Costa, investigador em economia da saúde no NHEM, em entrevista ao DN. "O inquérito em si não nos diz porquê, mas podemos ter algumas hipóteses, nomeadamente o facto de os mais velhos já terem passado por outras crises semelhantes, e portanto terem alguma suspeita em relação a esta situação. Efetivamente, alguns idosos podem não ter alternativas fáceis para continuar as suas vidas, e por terem continuado a sair à rua no início."

"Nada de andar na rua. Se o vir na rua, vou chamar a polícia." Foi assim que Emanuel Sousa se despediu do casal ao qual fez a última entrega ao domicílio do dia, na quinta-feira passada. São pessoas que "costumam sair quatro a cinco vezes por dia", por isso repete-se a recomendação as vezes necessárias. Vivem num quarto alugado, à semelhança de muitos idosos residentes na capital. Na Freguesia da Penha de França vivem lado a lado com "uma classe média bem estabelecida, sobretudo de pessoas que exerceram profissões liberais, comerciantes ou que tinham pequenas fábricas ou oficinas" e que "não necessitam do apoio alimentar do centro", explica a junta em resposta ao DN. "Há quem se ofereça para apoiar outros seniores com maior fragilidade apoiados pelo centro."

Luís Santos, um dos que esperavam na fila à hora de almoço, vive também num quarto alugado. E justifica a necessidade de continuar a passear pelas ruas da cidade, que apesar de mais vazias continuam movimentadas. "Menina, moro num quarto pequeno. Acha que vou ficar ali o tempo todo?", lança a discussão. Com o movimento que a casa que partilha com outros inquilinos tem, garante sentir-se mais seguro lá fora. "A frequentar o mesmo WC, a mesma cozinha... Em que ficamos? Ando a fugir das pessoas? Mais vale estar cá fora", diz.

A irmã Ângela responde e lembra: apesar das dificuldades, "temos todos de perceber que a nossa proteção é agora também a de todos os outros".