1.4.20

O que faremos aos velhos quando isto acabar?

Abel Coentrão, in Público on-line

É cruelmente irónico que um vírus que nos obrigou a travar a fundo — assemelhando as nossas cidades a cemitérios em dia de semana e as nossas casas a jazigos com gente enterrada viva — se sirva desta distância cavada entre nós e os nossos idosos para os apanhar indefesos.

Por estes dias, algumas crianças do ensino básico da comunidade piscatória de Caxinas, onde nasci, deveriam estar a fazer entrevistas aos seus avós ou bisavós, antigos pescadores da faina maior. Mas, como quase tudo na nossa vida, o projecto “As Caras do Bacalhau”, parceria entre a Bind’ó Peixe - Associação Cultural, de que faço parte, e o Animar - serviço educativo das Curtas Metragens de Vila do Conde, está suspenso, à espera que a tempestade passe e possamos retomar as nossas vidas.

Interrompemos, por causa de um vírus com uma assustadora letalidade entre os mais velhos, um reencontro entre gerações. Interrompemos, mais do que isso, uma experiência de reconhecimento do valor simbólico dos percursos de vida de pessoas comuns por parte daqueles que, lhes sendo próximos, os conhecem mal. Numa das entrevistas já realizadas, uma menina escutava embevecida, as deambulações de um ex-pescador pelos mares da Terra Nova, as suas estratégias para pescar mais, antes de concluir com um sorriso nos lábios: “Pois é avô, tu só tens a 4.ª classe, mas sabes muito!”.

Lembrei-me desta frase por estes dias ao escutar responsáveis políticos norte-americanos admitir que talvez se pudesse sacrificar os velhos, para salvar a economia. Outros, em vários países, pensam o mesmo, embora se escondam em eufemismos, para o não dizer. Nos hospitais de Itália, perante a exiguidade dos meios disponíveis, os médicos já são obrigados a fazer escolhas em que a idade conta, em muitos casos, em desfavor dos doentes, seguindo protocolos que transpõem para os cuidados hospitalares aquela que tem sido uma regra da civilização ocidental, desde que homens e mulheres passaram a ser definidos pela sua produtividade e possibilidade de exploração enquanto força de trabalho.

A terceira idade “não é mais do que uma fatia de vida marginal, associal no seu extremo — um gueto, um adiamento, um talude antes da morte”, escrevia Jean Baudrillard no seu livro A Troca Simbólica e a Morte. Em 1976, quando o publicou, era assim. Agora, a terceira idade talvez ainda tenha algumas hipóteses. Pelo que se vê pelas estatísticas, a quarta idade, que criamos entretanto, para a substituir, é a que está a sofrer mais na pele os efeitos desta dupla pandemia, a do vírus, e a do medo. Parte destas pessoas vive esse pavor da antecipação dolorosa do destino em lares, para onde as expulsamos, ainda vivas, depois de termos expulsado a morte de casa (para os hospitais), e afastado os mortos para essas cidades muradas a que chamamos cemitérios.


Tendencialmente, os velhos tornaram-se um fardo na era do PIB, em que somos estimulados a viver o presente e sonhar com um futuro. Coisa que, chegados à “antecâmara da morte”, deixamos de ter, fomos ensinados a crer. Nesta lógica em que procuramos o valor facial de tudo na vida, eles servem-nos se, eventualmente, ainda puderem “funcionar” como cuidadores da próxima geração — e isso, como sabemos, vale dinheiro, ao Estado ou aos pais. Mas, para lá disso, ao mínimo sinal de dependência que ponha em causa a capacidade produtiva dos filhos, estes são, cada vez mais, compelidos a escolhas que, ao retirar os pais do meio familiar, os colocam perante “uma morte social antecipada”, como escrevia, na mesma obra que revisitei por estes dias, o sociólogo e filósofo francês.

Dessa forma, nós os que ainda não chegamos lá, ganhamos tempo e espaço para responder ao frenesim de um quotidiano que se resume a duas grandes palavras de ordem (no sentido de ordenação): produzir e consumir, ou produzir para consumir. E mais do que o trabalho, é a capacidade de consumo, de experimentar o novo, o que nos impele, e cada vez mais nos define. E parece não haver outro sentido para a vida que não seja alimentar-se do sonho do prazer constante — no qual ter e sentir se confundem — que ninguém, na verdade, consegue alcançar. Sonho no qual a morte, obviamente, não tem lugar.

O problema é que nenhuma sociedade presa ao mito da eterna juventude gostará de velhos. E é cruelmente irónico que um vírus que nos obrigou a travar a fundo – assemelhando as nossas cidades a cemitérios em dia de semana e as nossas casas a jazigos com gente enterrada viva –, se sirva desta distância cavada entre nós e os nossos idosos para os apanhar indefesos. Alguém terá de fazer alguma coisa. Incapacitados de reorganizar a nossa existência, no ambiente de pânico destes tempos de confinamento, já não seremos nós. Mas o Estado, que nos manda para casa, também falha, como se viu em Espanha, onde as autoridades encontraram, num lar, vivos deitados lado a lado com mortos.

Em Portugal, todos os olhos, e as preocupações do Governo, se voltaram também, nos últimos dias, para esses lugares. Mas entre as várias histórias arrepiantes que vou lendo, a que me trouxe a esta reflexão foi a desgraça que se abateu sobre a lar da Misericórdia de Foz Côa, por ali ter andado gente que, de outra forma, cuidou daquela gente que agora morre ou se arrisca a morrer. Há uma década, a Acôa - Associação de Amigos do Parque e Museu do Côa, iniciou, naquele lar, o projecto Arquivo de Memória, que passei a acompanhar desde que o PÚBLICO lhe dedicou duas páginas, em 2015, por partilhar os seus propósitos. Ao longo destes anos, eles vieram Douro abaixo, até ao mar, como barca salvando pessoas, e as suas histórias, de uma outra morte. A do apagamento a que, com o nosso desinteresse, as vamos condenando.

“Noutras formações sociais a velhice (...) funciona como base simbólica do grupo. O estatuto de idoso, que completa o de antepassado, é o mais prestigiado. Os ‘anos’ são uma riqueza real que se transforma em autoridade, em poder, ao passo que hoje os anos ‘ganhos’ são simplesmente anos contáveis, acumulados sem se poderem trocar”, escrevia o filósofo Baudrillard. Acácio Fortunato, um velho amigo, que conheci com 95 anos, autónomo ainda, e a cuidar da mulher, sublinharia por baixo. “Nino, ninguém quer saber da nossa vida para nada”, disse-me, quase no final do nosso primeiro encontro, talvez descrendo da “utilidade” das perguntas que lhe fazia naquela longa tarde, preparando uma entrevista em vídeo que nunca chegaria a fazer.

Acácio Fortunato morreu em Outubro de 2017, a meses de completar cem anos (e como maldisse da minha vida atolada noutras obrigações, quando o soube). Muitos outros embarcaram também para essa viagem sem retorno, sem nos deixarem testemunho das suas vidas. Em Foz Côa, Adriano Augusto Lobão, também de 99 anos, deixou-nos no dia 27 deste mês, depois de ter adoecido naquele lar cercado pela morte. Mas, pelo menos dele, guardaremos, para memória futura, as memórias que partilhou com alunos de uma escola local, e que são, na verdade, parte da nossa história colectiva.

Preso, em casa, às notícias sobre a pandemia, pergunto-me se ela é apenas uma doença, ou se pode haver, no sofrimento que nos inflige, algum vislumbre de salvação, para lá da cura que ansiamos. Penso na crise ambiental, nas cidades onde não sinto, hoje, saudades do barulho dos carros, mas penso, sobretudo, nestas pessoas. Que ao contrário desses mesmos automóveis, por exemplo, não têm espaço, físico e simbólico, para viver entre nós.

Não tem de ser assim. E eu acredito que, sejam eles caras do bacalhau, como muitos dos meus conterrâneos, caras da nossa agricultura, dos países para onde emigramos ou das guerras que travamos, os patrimónios destes velhos e velhas que nós e o Arquivo de Memória ou de, outra maneira, a Música Portuguesa a Gostar dela Própria andamos por aí a resgatar, acabam por nos resgatar, também. Sem eles, até poderemos ter futuro. Mas já não seremos humanos.