15.2.12

"A crise alimentar de 2008 não vai repetir-se no mundo"

Por Ana Rute Silva, in Público on-line

Ann Berg nunca tinha estado em Lisboa, mas, a convite da Associação Nacional de Produtores de Milho e Sorgo, falou, esta semana, para a plateia de 500 agricultores sobre o mercado de futuros e a volatilidade dos preços, durante o VII Congresso do Milho.

Numa altura em que as medidas de austeridade arriscam provocar uma descida do valor dos alimentos e um "êxodo da agricultura", a consultora da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e antiga corretora da Bolsa de Chicago, critica os movimentos especulativos e a falta de "transparência" em algumas transacções. Sem arriscar previsões para este ano, Berg defende que um cenário como o da grave crise alimentar de 2008, que fez disparar os preços do arroz e do milho em 170 e 140%, respectivamente, não deverá repetir-se.

Em 2011, os preços dos alimentos tiveram um movimento de subida constante. A tendência vai manter-se este ano?
Neste momento os preços dos cereais estão estáveis. E é impossível prever o que vai acontecer porque factores que menos esperamos afectam directamente os preços. Ninguém poderia prever a crise no mundo árabe ou o tsunami [no Japão]. Os preços dispararam. Há alguns factores que têm relação directa e que podemos identificar: os relatórios sobre as colheitas, a intervenção dos Governos nas exportações e na política monetária, e motivos climáticos que ninguém pode prever.

Todos estes acontecimentos influenciam da mesma forma a oscilação dos preços?
Depende muito da localização geográfica. A seca e os incêndios na Rússia [em Agosto de 2010] tiveram um enorme impacto. Toda a região é um grande produtor de trigo e, de repente, deixou de exportar. O efeito sentiu-se na Bolsa de Chicago, nos Estados Unidos, e nos mercados globais. O preço aumentou.

A crescente procura dos mercados emergentes, sobretudo da China, também tem grande influência no preço a que os cereais são vendidos.
Imensa. A China decidiu comprar uma grande quantidade de feijão de soja, tornando-se no maior importador do mundo deste produto. Vão produzir o seu próprio trigo e milho, comprando por isso quantidades mínimas, mas vão importar 50 milhões de toneladas de soja por ano. É uma quantidade enorme. Foi uma decisão governamental. Além disso, também há uma orientação política nos biocombustíveis, que favorece a alta dos preços do milho. Estamos a falar de 130 milhões de toneladas de grãos que são direccionados para os biocombustíveis.

Nos EUA, 40% da produção de milho destina-se aos biocombustíveis, o equivalente a alimentar 600 milhões de pessoas. É um contra-senso?
Estão em causa razões políticas. É uma questão de dinheiro e o lobby dos agricultores é muito poderoso. Não estamos a falar de pessoas pobres: são ricos, donos de milhares de hectares de terra e cada hectare vale, hoje, sete mil dólares. Os incentivos dados aos agricultores para venderem os seus cereais ao biocombustível não resolvem o problema energético. A única coisa que fizeram foi aumentar o preço do milho. Voltando à sua questão sobre o que vai acontecer aos preços dos cereais este ano, assistimos às altas em 2008, mas tivemos resposta do lado da produção e mais consciência do problema. Penso que o mesmo cenário não se vai repetir.

Que consequências tem esta volatilidade dos preços para as pessoas?
Um agricultor pode decidir, de repente, semear feijões de soja em toda a propriedade. Mas se todos decidirem fazer o mesmo, os preços descem e cria-se um problema. Os mercados podem ser muito úteis para vender e comprar, mas a volatilidade traz dificuldades para os agricultores, e ainda mais para quem vive com um ou dois dólares por dia. Esta realidade não existe na Europa. Quando compramos uma carcaça por 15 cêntimos, apenas 10% desse valor equivale ao preço do trigo. Tudo o resto são custos de transporte, embalamento, entre outros. Os altos preços das commodities [mercadorias] não afectam assim tanto as sociedades ocidentais. Não se passa o mesmo na carne. Quando os preços sobem, o consumo desce.

Quem é que mais beneficia com a instabilidade de preços?
Os operadores de mercado. Com os mercados hoje totalmente informatizados, podem ser os primeiros a aproveitar uma subida de preço e fazer muito dinheiro. Não há dúvida de que estes veículos se tornaram mais especulativos.

Pensa que a existência de regulamentação, como defende a França, pode travar esta excessiva especulação?
Não, isso não vai acontecer. Os países do G20 concordaram com alguns limites, mas os lobbies dos bancos são muito poderosos, sobretudo no Reino Unido, onde não há limite para os preços, nem para as posições a comprar. Em 2010, um fundo de investimento comprou cerca de 7% da produção anual global de cacau e o preço subiu para 2800 libras por tonelada [o valor mais alto dos últimos 33 anos]. Assim que a mercadoria foi entregue, em Setembro, o preço caiu 30 a 40%. Na minha opinião, houve manipulação de mercado. Nas leis dos Estados Unidos chama-se a isso "distorção de comércio" e é ilegal.

Defende, então, que é preciso regras mais apertadas na Europa?
Penso que outros mercados deveriam adoptar a lei dos Estados Unidos, que é um modelo a seguir no que toca à transparência. Por exemplo, proíbe o armazenamento da mercadoria.

Com a crise global, tem havido uma transferência dos investidores do mercado financeiro para as commodities...
O que é que hão-de fazer? Não estão a conseguir ganhar dinheiro. As taxas de juro estão a zero.

Mas isso significa que as commodities vão assumir cada vez mais importância?
Não sei. Há duas influências opostas a ter em conta: uma são os estímulos à economia que criam mais riqueza e fazem com que os preços subam; outra é a contracção, a diminuição da procura e as medidas de austeridade. Sei que a Reserva Federal está com muito medo da deflação, que afecta não só o preço dos alimentos, mas também da habitação. Olha para a Europa e questiona se estas medidas de austeridade não vão matar a economia...

E é também a sua opinião?
Penso que as medidas de austeridade são um comprimido e tenderão a contrair a economia. Há alternativa? Não sei. Não sou economista. Mas desejaria que houvesse formas de aumentar a produtividade.

Investir na produção agrícola é uma solução?
Há uma tendência para o investimento agrícola, nomeadamente na China, e se eu fosse governante tentaria garantir o abastecimento.

Tem defendido que os cortes para travar a crise provocam uma queda nos preços das matérias-primas e, em consequência, um êxodo de agricultores e abandono dos campos. Este cenário já está a acontecer?
Já estamos a assistir a uma queda do volume transaccionado no mercado dos EUA. Os bancos de investimento já estão a prever menos lucros este ano e não vêem as mesmas oportunidades de lucro.

Mas neste momento o abastecimento de alimentos à população mundial está em níveis satisfatórios?
Os maiores problemas são as infra-estruturas e a distribuição dos alimentos. Na Índia, onde estive, as perdas durante o transporte são muitas. As estradas são más. Se conseguíssemos diminuir o desperdício, teríamos excedentes. Não tem havido esforço suficiente neste aspecto.