20.2.12

Sandra Benfica. “Em pleno século XXI ainda existem pessoas que são escravizadas”

Por Giuliana Diaz, in iOnline

É preciso desocultar, informar, sensibilizar e agir para combater o tráfico de pessoas, um crime que afecta especialmente as mulheres

Aliciadas com a esperança de um futuro melhor, muitas das mulheres, vítimas de tráfico não sabem que vão ficar sem a sua liberdade para enriquecer os bolsos de...
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O tráfico de seres humanos é um crime que afecta milhões de pessoas em todo o mundo, sobretudo jovens raparigas e mulheres arrancadas do presente para um futuro de trabalho forçado, mendicidade e prostituição. Sandra Benfica é coordenadora do projecto “Tráfico de Mulheres - Romper Silêncios” e falou com o i sobre o sórdido e lucrativo negócio que reduz as suas vítimas à condição de escravos em pleno século XXI. Portugal não está imune a esta realidade e tem de melhorar as regras de combate ao tráfico para pôr fim a um crime que explora e viola a dignidade e os direitos das mulheres.



O tráfico de seres humanos tem diversos fins, mas o mais grave será a exploração sexual de mulheres. Qual é o perfil da vítima?

É reconhecido que há factores de vulnerabilidade das mulheres e das crianças levadas para estas redes de tráfico. Do ponto de vista social estão muito ligadas a questões económicas. Os traficantes centram a sua atenção nas mulheres que atravessam dificuldades económicas como o desemprego ou a pobreza extrema. Actualmente, com a crise económica, o tráfico de seres humanos em situação de escravatura tem atingido níveis nunca antes observados, falamos de cerca de 27 milhões de pessoas que vivem em situação de escravatura em todo o mundo. Claro que quando falamos da especificidade das mulheres e das crianças não é por acaso que sublinhamos a questão da exploração sexual e da prostituição, porque a esmagadora maioria das pessoas traficadas no mundo são mulheres e meninas. Daí a nossa preocupação em focar esta especificidade, como organização de mulheres, e trazer para o conhecimento geral que efectivamente não foi só o período de escravatura que marcou os séculos que nos antecederam. Hoje em pleno século XXI existem pessoas que são escravizadas e que sofrem todo tipo de violência.

As mulheres que migram são as mais vulneráveis ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual?

Sim. Vêm geralmente com promessas de trabalho e de um futuro melhor, é neste processo de aliciamento até a chegada a outro país, ou mesmo durante esse período de trânsito, que percebem que efectivamente estão numa situação que não é normal.

Como é que se faz esse recrutamento?

Estamos a falar de uma actividade ilegal e criminosa que tem um lucro anual, estimado pelas Nações Unidas, entre cinco e sete mil milhões de dólares, e portanto rivaliza com os lucros obtidos com o tráfico de drogas e de armamento. Falamos de algo que é muitíssimo bem montado e preparado. Há muitas formas de recrutamento, mas geralmente, poder--se-á dizer que uma percentagem muito significativa vem com a promessa de um futuro melhor, na Europa e nos EUA. Mas também é um facto que este não é um fenómeno que diz só respeito às mulheres que migram, no sentido em que nós, como país de destino, também temos pessoas portuguesas escravizadas em Portugal.

Porque é que há quem procure traficar pessoas em vez de armas ou drogas?

Porque é muito lucrativo. Se comprar uma dose de qualquer tipo de estupefaciente, consome-o no momento e uma mulher ou uma criança é consumida vezes sem conta. A droga chega, é vendida, é consumida e a seguir tem de ser novamente reposta. Uma mulher pode ser vendida 50 vezes por dia, daí ser absolutamente lucrativo, porque é criada uma mais-valia de algo que é inesgotável. Enquanto essa pessoa estiver viva, pode ser explorada a níveis que ultrapassam tudo aquilo que pode ser imaginado.

As rota de tráfico sexual dirigem-se mais de sul para norte?

Todos os anos chegam por volta de 700 mil mulheres à Europa, vítimas de tráfico de seres humanos. Vêm de África, da América Latina e da Ásia. As rotas e os esquemas de entrada são variados. Por exemplo, em países que já legalizaram a prostituição (como no caso da Alemanha), as pessoas traficadas acabam por entrar de uma forma que se pode considerar “legal”, porque vêm com vistos de trabalhadores imigrantes. Mas essa entrada legal não impede que elas estejam em situação de tráfico. Embora as autorizações de entrada no país tenham tido justificação, estas mulheres não sabem que lhes vão tirar toda a liberdade e a que actividades vão ser forçadas. Portugal segue a tendência internacional, mas não temos números que indiquem o número de mulheres que entraram no país com esse propósito nos últimos anos.

Qual é o papel do Movimento Democrático de Mulheres no combate ao tráfico de seres humanos?

Introduzimos a questão do tráfico de mulheres na nossa actividade há muito tempo. Somos uma organização que defende os direitos das mulheres e nesse sentido consideramos que defender os direitos das mulheres em Portugal, defender a sua condição e a sua valorização, é também introduzir esta questão. Decidimos lançar o projecto, “tráfico de mulheres - romper silêncios”, que funciona em Lisboa e no Algarve, e com o qual procuramos desenvolver um conjunto muito vasto de iniciativas que passem por desocultar, porque isto é ainda muito oculto na sociedade portuguesa. É preciso dizer que isto existe, que isto funciona assim e que não estamos imunes. É preciso alertar a população, porque não é possível conviver com isto. É por isso que dizemos que é necessário desocultar, porque o facto de ser oculto permite e alimenta o próprio crime. Também pensamos que é preciso conhecer, e debater com todos, e com um quadro de especialistas para identificar realidades. É necessário sensibilizar e informar as pessoas de que isto tem um método, e se possível, evitar que mais jovens sejam aliciadas. Agindo a todos os níveis, com o nosso contributo para a alteração de políticas e de visões. Procuramos, com este projecto, discutir as causas e consequências e as ligações do tráfico com prostituição porque são absolutamente indissociáveis.

As políticas de migração do primeiro mundo, em vez de estruturarem a imigração, empurram-na para a clandestinidade?

Claro que sim e a todos os níveis. Recebemos recentemente o relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) sobre o número de pessoas que morreram nas costas da Europa, vindas de África, e não podemos deixar de nos interrogar que Europa é esta, que políticas são estas? Quando vemos as pessoas como um amontoado de coisas e não conseguimos identificar que são seres humanos que representam sonhos, aspirações e necessidades, e fechamos os olhos aos milhares de jovens, mulheres e crianças que chegam a procurar um mundo melhor e que acabam por encontrar a morte daquela forma tão atroz, é porque alguma coisa não está bem. Parece que encaramos a imigração como uma ameaça, o que faz lembrar algum racismo e xenofobia, ambos perigosos e preocupantes.

Muitas pessoas pensam que as mulheres que são aliciadas e recrutadas sabem ao que vão. É sempre assim?

Mesmo que estejam dispostas, nada justifica a violência contra um ser humano, a escravidão. É preciso saber o que é prostituição. Penso que quem fala com tanta certeza não sabe o que isso significa e ignora que a idade média de entrada na prostituição é de 12 anos. E perguntamos se alguém com 12 anos sabe o que vai fazer, porque ninguém sabe o que é ser utilizada por um homem 50 vezes por dia, por 50 homens diferentes. Vivemos durante séculos com um sistema esclavagista e um escravo hoje para nós é uma vítima, mas o escravo não se identificava como uma vítima, de alguma forma consentia a sua própria condição, e não é por isso ter acontecido que nós deixamos de pensar que aquilo é uma violação grave dos Direitos Humanos. Quando falamos de tráfico e de prostituição, não estamos a falar de alguém que faz no seu quarto aquilo que quer, faz no seu quarto aquilo que outros querem para alimentar o negócio que enriquece os outros e que só a diminui enquanto pessoa.

O que é que diz a legislação portuguesa em relação ao tráfico de seres humanos e à sua penalização?

A legislação portuguesa acompanha no essencial os acordos internacionais. Mas uma coisa é a legislação e outra é a prova, os meios de prova e a aplicação da própria pena. Muita gente vê a prostituição como algo que é individual e não como um problema social que está associado a um lucro, a um negócio, que está patrocinado por outros, que é promovido por outros e que enche o bolso de outros. Enquanto olharmos para uma mulher que está numa casa de alterne apenas como uma prostituta, não conseguiremos ter uma outra visão para além disso. Achamos que ela está aí porque quer e não porque está a ser prostituída, essa visão não nos deixa identificar o verdadeiro problema, nem combatê-lo na origem.

E geralmente estas mulheres não denunciam os seus casos, porque têm medo de serem deportadas para os seus países…

Estas pessoas quando estão em situação de tráfico recebem ameaças contra elas e muitas vezes contra a sua própria família. Denunciar exige muita coragem e determinação que têm de ser acompanhadas de medidas efectivas de protecção à vítima, medidas que nós cremos que não estão ainda implementadas. Consideramos necessário que a vítima de tráfico, tal como a vítima de qualquer outro crime, se sinta segura e que o seu acto de libertação individual contribua para que quem esteja a perpetuar o crime seja efectivamente penalizado. O sistema de protecção em Portugal ainda não é eficaz para este e para um conjunto muito alargado de outros casos. Ainda há um caminho muito grande a ser feito no sentido de uma maior protecção das vítimas. O tráfico de seres humanos é uma rede bastante complexa e trata- -se, em muitos casos, de máfias.

Como se pode combater este crime organizado?

Tem de ser combatido nas causas porque é aquilo que efectivamente pode prevenir e reduzir o fluxo. Há que tornar o negócio não lucrativo para deixar de ser apetecível. Devem-se coordenar esforços internacionais no sentido de um combate eficaz policial e legal contra estas redes, o que é difícil quando existem visões distintas entre os países. Combate-se nas causas, na sensibilização e na informação, e a nível de uma melhor eficácia das políticas de intervenção.