1.7.20

A desigualdade de género nas empresas. E a RTP

Maria João Marques, in Público on-line

Talvez fosse melhor alguém da tutela informar o Provedor da RTP que, entre promover a igualdade de género e as ofensas de opereta de conservadores, não há escolha nenhuma a fazer

Na última semana tivemos três notícias que, parecendo que não, estão relacionadas. A primeira foi a telenovela à volta dos episódios dos desenhos animados Destemidas, que contam a história de mulheres que romperam com estereótipos e preconceitos e se notabilizaram num mundo que as relegava para lugares secundários. Não são desenhos animados políticos. Ou são, na medida em que é política a mensagem de que as mulheres valem, têm mérito, são destemidas, que o sistema que tenta confinar mulheres somente ao estatuto doméstico está a sufocar talento.

Os episódios são bem dispostos, claros, representando mulheres tão diversas como a jornalista Nellie Bly, a imperatriz Wu da China, a guerreira apache Lozen ou a atriz e cientista Hedy Lamarr. Não vendem ideologias e todas estas mulheres podem ser ótimos modelos, pela tenacidade, talento e garra, tanto para rapazes como para raparigas. Recomendo mesmo que se usem com abundância na disciplina de Cidadania a partir do 5.º ano.

Não espanta que os setores políticos mais conservadores não apreciem vozes audíveis de mulheres. Mas que o Provedor do Espetador – e da espetadora, que a população feminina é metade do total e vê televisão – acompanhe a sanha de apagar histórias de mulheres de uma televisão pública, para aplacar indignações estrepitosas causadas por pruridos datados, é inconcebível e leva à pergunta se o Provedor sabe o que está a fazer e para que serve a RTP.

Antes de continuar com estas perguntas, refiro as outras duas notícias que mencionei no início. Por um lado, lemos nos jornais que não encurtamos as diferenças salariais entre homens e mulheres. As mulheres ganham menos cerca de 16% que os homens em Portugal. As políticas públicas adotadas são muito bonitas no papel, mas não têm efeitos.

Por outro lado, só 10% dos administradores executivos das empresas cotadas em Portugal são mulheres. Em 2017 ficou legalmente estabelecido que estas empresas chegariam, em 2020, aos 33,3% de mulheres nos conselhos de administração. A lei tinha dentes pouco afiados para os incumpridores, mas produziu alguns efeitos. Como bons chicos-espertos, o número de administradoras não executivas aumentou para cumprir a lei. No entanto, a administração executiva continuou nas mãos de quem sabe: só homens.

Não cabe aqui uma análise exaustiva às causas das realidades que as duas notícias descrevem, nem todas as tentativas de soluções que se devem estudar e implementar. Ou os infinitos impactos negativos de ambas. Ficaria dias escrevendo sobre isto. Mas deixo algumas ideias.

Ter mulheres no topo das empresas é benéfico a todos os níveis. Desde logo para as receitas. Em 2012 o Credit Suisse verificou que, nas grandes empresas, as receitas eram maiores em 26% quando tinham pelo menos uma mulher no conselho de administração. Outras instituições trazem números no mesmo sentido.

É benéfico para as outras mulheres. As chefias femininas tendem a contratar mais mulheres, contribuindo por isso para equipas mais diversas e dando mais oportunidades a mulheres. Dando só um exemplo, um estudo feito com empresas alemãs em 2016, More Female Manager Hires through More Female Managers? Evidence from Germany, concluiu que quanto maior a percentagem de mulheres gestoras que contratavam, maior proporção de gestoras eram contratadas a seguir, sugerindo um círculo virtuoso na contratação de mulheres para cargos de gestão. Segundo o World Economic Forum, as gestoras femininas muito produtivas são melhor pagas quando dependem de líderes executivas mulheres que quando acima estão executivos homens.

Uma das razões das diferenças salariais entre os sexos é a falta de acesso que as mulheres têm aos cargos de topo mais bem pagos. Não por falta de mérito e talento feminino, ou porque não há mulheres disponíveis para a promoção, mas porque as mulheres são recorrentemente subavaliadas. Incontáveis estudos científicos fazem o favor de nos deprimir dando-nos a informação, para as mais diversas áreas, de como apresentando exatamente o mesmo trabalho ou o mesmo CV às chefias com poder de decisão, mudando somente o sexo do autor, a avaliação é sempre melhor se vem ligado a um nome masculino.

Dou também só outro exemplo. Os recrutadores que procuram possíveis candidatos no Linkedin clicam 13% menos nos perfis femininos que nos masculinos. Sendo que, quando clicam, a probabilidade de contactarem é praticamente igual para os dois sexos. Mas o preconceito e a resistência iniciais estão lá e podem fazer perder oportunidades a mulheres com talento.

Este enviesamento que prejudica profissionalmente mulheres vem de questões culturais, que tradicionalmente vêm os homens como os líderes naturais, mais ambiciosos, mais ousados, mais capazes de fazer acontecer a mudança. E o que pode contrariar estes preconceitos que sufocam as aspirações e o talento feminino? Acertou: a educação e o reforço da mensagem no espaço público de que mulheres também são aguerridas e capazes de provocar a transformação.
Ora sendo o Estado proprietário de uma estação de televisão e rádio, diria eu que é obrigação dessa estação veicular valores essenciais como a igualdade de género. E contribuir para eliminar enviesamentos culturais que promovem o desaproveitamento do talento feminino, os espartilhos que ainda limitam a vida às portadoras de cromossomas xx e, até, a pobreza das mulheres.

Menores salários e menores rendimentos têm impacto na vida das mulheres, não são só diletantismos teóricos. Também não só das mulheres. Em Portugal, quase quatrocentas mil famílias são monoparentais encabeçadas por mulheres. Não contrariar as diferenças salariais entre os sexos é promover a pobreza destas famílias e comprometer as oportunidades dos filhos que nelas crescem.

Assim sendo, talvez fosse melhor alguém da tutela informar o Provedor da RTP que, entre promover a igualdade de género e os benefícios que dela tiram as mulheres (e os seus filhos) e as ofensas de opereta de conservadores porque uma mulher nuns desenhos animados leu Marx e beijou outra mulher e fez abortos, não há escolha nenhuma a fazer. Esteve bem a RTP: depois de sobressaltos, contrariou o Provedor, continuou a exibir a série Destemidas para o mesmo público e manteve-a na RTP Play. Quem sabe, com o balanço, para contrariar a hegemonia masculina que também persiste na estação pública, decidem exibir ainda mais conteúdos sobre, com e por mulheres. Para todas as idades.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico