Victor Ferreira, in Público on-line
Inspectores e especialista em direito falam em dupla ilegalidade, porque não pode haver férias durante a suspensão do contrato nem há redução salarial para 66%. Mas há pareceres contraditórios.
Há empresas a impor férias a trabalhadores que estão em layoff. É uma situação, ilegal segundo um dos maiores especialistas de direito laboral no país e de inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho consultados pelo PÚBLICO.
Essas mesmas empresas, embora paguem o subsídio de férias por inteiro, como manda a lei, cometem uma segunda ilegalidade, segundo as mesmas fontes, porque se refugiam nas regras do layoff, que prevê o corte de 33% no salário, para continuarem a pagar só 66% da remuneração.
“Isso é patético”, reage com veemência Fausto Leite, advogado especialista em Direito do Trabalho. “Um trabalhador ou tem o contrato de trabalho suspenso ou tem o contrato de trabalho em vigor e, neste caso, pode ou não estar de férias. Estar em layoff e em férias em simultâneo é um disparate jurídico, que deve ser denunciado e travado”, comenta o mesmo especialista. “Além do mais, em férias, tem-se direito à totalidade do salário”, acrescenta. “Recorram aos tribunais, se for preciso, para travar isto.”
Ainda que haja serviços da ACT a dizer isto mesmo a quem telefona a pedir esclarecimentos, a própria ACT enviou parecer a uma empresa a dizer o contrário. E no site da Direcção-geral do Emprego e das Relações de Trabalho, também se afirma que “havendo acordo” poderá manter-se a marcação das férias, e as mesmas serem gozadas com o trabalhador a receber durante as férias “o valor da compensação retributiva acrescido do subsídio de férias, total ou proporcional, que lhe seria devido sem qualquer redução”.
Layoff “não afecta” férias, diz a lei
O último dia de Junho poderia ser, como noutros anos, a antecâmara da época principal de férias de dezenas de milhares de trabalhadores, que escolhem os meses de Julho e de Agosto para gozar as férias.
Porém, a pandemia trocou as voltas aos cerca de 850 mil trabalhadores atirados para o layoff simplificado (quantos continuam, não se sabe, já que o Governo nunca o disse e as estatísticas no site do ministério do Trabalho não são actualizadas desde o dia 23 de Junho).
Em vez de se fazer malas de férias, 30 de Junho de 2020 é o último dia para as empresas pedirem acesso ao layoff simplificado (ver texto). E pode ser um dia de mais conflitualidade laboral, às portas da época alta em que as escolas já estão de férias e dezenas de milhares de empresas continuam a lidar com as consequências da covid-19.
Fausto Leite aponta para o Código do Trabalho (CT). “O artigo 306.º é claro quando diz que o tempo de redução ou suspensão não afecta o vencimento e a duração do período de férias”. Portanto, não se pode estar de férias com o contrato suspenso, nem quando se tem redução de horário, que é a outra modalidade do layoff. “Não se pode trabalhar de manhã e à tarde estar de férias. É um disparate”, insiste.
E prossegue: “Quem está em férias, não pode estar em layoff ao mesmo tempo e, além disso, tem direito a 100% da sua remuneração normal, exceptuando obviamente o subsídio de alimentação, uma vez que se está em férias não vai para o trabalho. O mesmo artigo afirma que a redução ou suspensão não prejudica a marcação e o gozo de férias, nos termos gerais, tendo o trabalhador direito ao pagamento pelo empregador do subsídio de férias devido em condições normais de trabalho. Ora, indo ver o que diz o diploma sobre os termos gerais, nada se encontra que autorize estas empresas a impor períodos de férias a contratos suspensos e muito menos a cortar na remuneração, como se eles estivessem em layoff.”
As alterações legislativas do teletrabalho
Esses termos gerais estão definidos no mesmo CT, nos artigos 237.º em diante. As férias são marcadas “por mútuo acordo", insiste o advogado, embora ressalve que a própria lei prevê soluções no caso de não haver acordo. Mas Fausto Leite aponta sobretudo para o artigo 243.º, que estipula que as férias já marcadas só podem ser alteradas ou interrompidas “por exigências imperiosas do funcionamento da empresa”.
“Exigências imperiosas são circunstâncias absolutamente extraordinárias e só nesses casos poderá a empresa alterar ou interromper o período das férias, tendo o trabalhador o direito a indemnização pelos prejuízos sofridos por deixar de gozar as férias no período marcado, como diz a lei”, sublinha o mesmo especialista.
Três casos no Norte
Nos últimos dias, o PÚBLICO tentou perceber a dimensão do problema junto de partidos, sindicatos e da própria Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) que, na semana passada, revelou ter detectado numerosos atropelos à lei por parte de empresas (por vezes com a colaboração dos próprios trabalhadores).
Dois inspectores desta autoridade, um do Minho e outro de Lisboa, disseram ao PÚBLICO que, até ao momento, não há registo de muitos pedidos de informação ou de denúncias de tentativas de marcação de férias com cortes salariais a trabalhadores suspensos pelo layoff. “Temos ouvido de tudo, até trabalhadores em layoff que são substituídos por contratados a prazo só porque a administração não gosta deles e prefere tê-los em casa”, disse um inspector que presta serviço no Minho, e que pede para ser não identificado.
O mesmo inspector admite, contudo, que a aproximação de Julho e Agosto poderá levar a um aumento deste tipo de participações. Carla Cardoso, inspectora da ACT em Lisboa e dirigente sindical, diz o mesmo. “A entrada no período alto de férias pode levar a um aumento desta conflitualidade”, afirma.
O que não é matéria especulativa, para nenhum destes dois inspectores, é que ninguém pode ser obrigado a gozar férias enquanto estiver em layoff. Consequentemente, ninguém poderá ver o salário cortado para dois terços da remuneração enquanto estiver de férias. “Essa é a informação que temos e a que estamos a dar.”
Não é a primeira vez que há imposição de férias durante esta pandemia. Em Março, antes de haver layoff simplificado, muitas empresas recorreram férias até que houvesse decisões do Governo. Nessa altura, como o PÚBLICO noticiou, as férias foram uma solução de recurso enquanto não havia o layoff simplificado. Porém, o problema agora é bem diferente. E o regime simplificado baseia-se no que diz o CT que, na óptica das fontes contactadas nos últimos dias, não permite a acumulação de layoff e férias e correspondente corte de salário.
Ao PÚBLICO, chegaram relatos de situações destas em três empresas. E num dos casos há informação enviada por escrito pela ACT que contraria a leitura da lei que tem sido feita.
O estado de emergência não institui a impunidade laboral
Duas empresas são de Vila Nova de Gaia (uma é um grande produtor de bicicletas e a outra produz cabos). A outra é do concelho da Maia (e também produz cabos) e constitui “a situação mais premente”, diz Miguel Ângelo, do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Transformadoras, Energia e Actividades do Ambiente do Norte (Site-Norte), filiado na CGTP.
Informações contraditórias
Segundo correspondência interna vista pelo PÚBLICO, esta empresa de 1000 trabalhadores e em layoff desde finais de Março, quer impor férias com corte de 33% no salário. Isso mesmo foi comunicado por e-mail pelo serviço de gestão de pessoal que, dada a contestação de trabalhadores e sindicatos, pediu um parecer ao Centro Local do Grande Porto da ACT. A resposta deste serviço, a que o PÚBLICO teve acesso, contraria o que um dos funcionários dessa empresa ouviu da ACT, quando ligou para lá.
Num e-mail oriundo do “gabinete da directora” desse centro local da ACT, cita-se o já mencionado artigo 306.º do CT e depois acrescenta-se que "estando as férias marcadas para este período, poderão ser gozadas, tendo o trabalhador direito a receber neste período o valor da compensação retributiva (correspondente a 2/3 da retribuição ou 635 euros, conforme o mais favorável)”.