3.7.20

“O teletrabalho não é uma situação saudável se for prolongado”

Alexandra Campos, in Público on-line

O médico infecciologista António Silva Graça avisa que vai demorar muito tempo até haver imunidade protectora da população e diz que a gestão da pandemia não é fácil porque ainda nos faltam “muitas armas” e “muito conhecimento”.

Durante mais de um mês e meio, o médico António Silva Graça comentou diariamente na RTP a evolução da pandemia de covid-19. Especialista em infecciologia, o major-general na reforma acredita não vamos precisar de voltar a estar confinados no futuro, mas sublinha que vai ser necessário continuar a ter um grande cuidado e intensa vigilância para evitar que surjam surtos de covid-19 e que os mais vulneráveis sejam afectados. “Tudo isto é como se fosse uma pequena onda que chega à praia, temos que esperar que vá molhando a areia progressivamente, não queremos ser surpreendidos por uma onda que possa afogar muita gente”, ilustra, numa altura em que “já há mais de 10 milhões de pessoas infectadas no mundo”.

Um século depois, estamos a usar as mesmas estratégias que foram utilizadas durante a gripe espanhola para conter a epidemia. Não dispomos de armas mais avançadas para lidar com uma pandemia?
Existem instrumentos de saúde pública para conter epidemias que não mudaram. Perante uma doença infecciosa transmissível por via respiratória, há medidas de contenção que continuam a ser válidas tanto hoje como em 1918, como o afastamento físico, a criação de uma barreira física, agora mais sofisticada, para impedir a transmissão das secreções respiratórias, e, também, o cordão sanitário, agora usado de uma forma mais impositiva na China. Actualmente existem outros meios, como os fármacos ou uma vacina, mas [este processo] não está a ser tão rápido como precisávamos. A produção da última vacina demorou entre quatro a cinco anos.

A história também nos ensina que é habitual haver uma segunda onda nas pandemias. Será inevitável termos que enfrentar uma segunda onda com o novo coronavírus?
Procuramos sempre aprender com a história e, para isso, socorremo-nos do que têm sido as epidemias de gripe, em que têm acontecido duas, por vezes três ondas, e a segunda ou a terceira até podem ser mais violentas. Sabemos que os vírus desta família [coronavírus] têm uma forma de se transmitir mais fácil e uma gravidade clínica maior. O vírus circula na comunidade, pouco a pouco vai infectando as pessoas, vai manter-se a circular até chegar o tempo mais frio e é natural que possa infectar de forma mais fácil e que haja um recrudescimento da infecção. Agora, não temos condições neste momento de antecipar se vamos ter uma segunda onda mais exuberante ou se vamos ter pequenas ondas, recrudescimentos.

É provável que ocorra uma pandemia desta magnitude num futuro próximo?
Era provável que pudesse acontecer uma pandemia como esta que estamos a viver. Era de esperar. Ao longo dos anos, quem se tem dedicado a estudar as sucessivas pandemias, sabe que é preciso um conjunto de condições para que possam ocorrer e nos últimos tempos percebia-se que esta emergência de novos agentes patogénicos, nomeadamente novos vírus que são agentes que mutam muito facilmente, faria com que, pelas mutações e a forma como se multiplicam, isto pudesse acontecer. E nada nos garante que não possa voltar a acontecer.

O que é que aprendemos com a evolução da pandemia de covid-19?
Esta epidemia coloca-nos dois tipos de desafios extraordinariamente importantes. Percebemos que este vírus respiratório se transmite muito mais facilmente do que acontece com o da gripe ou outros vírus respiratórios. Basta o falar, a respiração forçada, o cantar, tudo isto pode levar à disseminação da infecção. Há outro aspecto que também é desafiante, a transmissão da infecção pelos indivíduos assintomáticos que não é habitual neste tipo de situações. Percebemos que cerca de 40% das infecções são diagnosticadas em pessoas que não têm sintomas e que apenas uma pequena fracção, provavelmente 10%, desenvolverão posteriormente sintomas e continuamos a lidar com uma situação para a qual não temos um tratamento reconhecidamente eficaz. A gestão da pandemia não é fácil e faltam-nos muitas armas, muito conhecimento. Há tanta coisa que está por perceber quando, em seis meses, já temos 10 milhões de pessoas infectadas no mundo... A epidemia começou na Ásia, passou para a Europa, para a América do Norte, depois para a América do Sul, já está em África, portanto, em seis meses está a correr o mundo. África já está a ser afectada, possivelmente não muito ainda não só por causa [da média] da idade da população, que é jovem, mas porque a maior gravidade da infecção está relacionada com doenças associadas fundamentalmente ao estilo de vida e à abundância, como a diabetes, as doenças cardiovasculares, a displidemia.

O que é correu bem e o que correu mal em Portugal? O que é que vamos ter que fazer de outra forma no futuro?
Correu bem o facto de termos sido afectados pela epidemia de uma forma mais tardia. Houve aqui um factor tempo que jogou a nosso favor para nos apercebermos da gravidade do que estava a acontecer noutros países, como Itália e Espanha, e percebermos quais os recursos de saúde que era necessário alocar. O que não correu tão bem, ou correu mal, foi a forma como o desconfinamento foi feito e comunicado. Definiram-se fases, estabeleceram-se datas e fez-se logo uma calendarização sem dar a entender que este desenrolar, este fluxograma, ia depender de nós. Houve um problema de comunicação. Deu-se a ideia de que a avaliação das fases não ia ter consequências na progressão do desconfinamento.

Acha que Portugal desbaratou o capital que tinha acumulado de país que lidou muito bem com a epidemia? Vários países europeus, como a Dinamarca, decidiram agora proibir a entrada de residentes portugueses por causa do número de novos casos de infecção nas últimas semanas.
Não me parece que tenhamos dado um salto assim tão grande de bom aluno para mau aluno. Comparando com outros países, a nossa taxa de mortalidade é muito aceitável. O que me parece é que seria de esperar que o acréscimo de casos já estivesse controlado e não está. Mas o que a Dinamarca faz é uma análise pontual da situação. Constata que nas últimas semanas houve em Portugal mais do que 2100 casos de infecção em cada semana, o que faz ultrapassar aquele valor que foi considerado o limiar para se concluir que é um país em que situação não está devidamente controlada. Na última semana até tivemos mais novos casos. É um critério pontual. Também estamos por vezes a comparar aquilo que é difícil de comparar. Há países que não utilizam o conceito das infecções activas, como a Holanda, o Reino Unido, a Bélgica. É muito mais preciso e importante quantificar os doentes em cuidados intensivos, os doentes internados e os óbitos para percebermos a repercussão da epidemia. Quantificar os novos casos pode ser um bocadinho erróneo.

Como é que interpreta aquilo que está a acontecer na Área Metropolitana de Lisboa?
É um passo atrás. Actualmente a preocupação com a economia é maior, e isso é legítimo, mas talvez se tenha subalternizado a parte sanitária. Também tem que haver um investimento grande na passagem da mensagem, sobretudo para os mais jovens, que não passou. Eles sentem-se menos vulneráveis e foi-lhes transmitido que não havia hipótese de terem festivais de Verão, de terem outros espaços para se encontrarem. Sobra-lhes o espaço público. Não foi só cá, vimos o mesmo em França, na Bulgária. Os jovens têm necessidade de conviver, de liberdade e uma assumpção menos coerente dos riscos e as alternativas vão ter que surgir. Vamos deixar que espaço público seja utilizado, criando normas, não podemos dizer que não haverá nenhuma manifestação cultural este Verão, chamemos-lhe festival ou o que quer que seja. Não estou a dizer que é fácil, mas não se pode à partida negar completamente essa possibilidade. Há espectáculos que podem ser realizados ao ar livre.

Corremos o risco de voltar atrás, de ter que estar completamente confinados como já estivemos?
Acho que não vamos precisar de voltar a estar confinados, mas continuará a ser necessária uma grande vigilância para evitar que surjam surtos e que os mais vulneráveis sejam afectados. Tudo isto é como se fosse uma pequena onda que chega à praia, temos que esperar que ela vá molhando a areia progressivamente, não queremos ser surpreendidos por uma onda que possa afogar muita gente. Proteger os grupos de risco é uma prioridade, as pessoas ir-se-ão infectando progressivamente até se construir a imunidade protectora da comunidade, a chamada imunidade de grupo.

As pessoas vão infectar-se e o vírus vai tornar-se endémico, portanto? Quanto tempo vai demorar esse processo?
Não será uma coisa imediata, que irá acontecer no próximo ano. Pensamos que o vírus vai continuar entre nós, primeiro transmitindo-se de forma menos acentuada, com intervalos entre ondas ou recrudescimentos, mas esta imunidade de grupo constrói-se muito lentamente porque, se tivermos o vírus a transmitir-se de uma forma não abrupta, progressiva, lenta, vai demorar muito tempo até haver anticorpos na população. É por isso que é pouco credível que isso possa acontecer no primeiro ano, mesmo tendo este vírus elevada transmissibilidade. Também não queremos que a população seja infectada toda de uma vez. Temos que encontrar o equilíbrio entre a população ir-se infectando progressivamente, impedindo [ao mesmo tempo] a ocorrência de surtos que vão provocar aquilo que todos queremos evitar - que os mais vulneráveis, pelas doenças que têm ou pela idade, sejam infectados e que a mortalidade cresça de uma forma expressiva.

O Serviço Nacional de Saúde, que tem respondido bem, vai sair desta experiência mais robustecido?
Há uma área que percebemos que vai evoluir favoravelmente. Estávamos muito deficitários em cuidados intensivos e houve um reforço de meios, mas penso que será necessário complementar este reforço com um investimento em serviços dedicados ao intensivismo e em formação de intensivistas. Tirando este aspecto, não antevejo que possa haver uma evolução favorável do sistema de saúde, não reconheço de momento mais-valias noutras áreas. O SNS respondeu, mas temos que considerar que o aconteceu em Portugal foi notoriamente diferente do que aconteceu noutros países e desbaratou os seus sistemas de saúde. Como quase fechou para o que era o seu funcionamento normal, há agora um atraso enorme nas cirurgias programadas, nos exames complementares, um atraso para recuperar na vacinação.

Esta experiência permitiu também perceber que é possível que as pessoas trabalhem a partir de casa e há muita gente que prefere esta forma de trabalhar. Acha que o teletrabalho veio para ficar?
O teletrabalho não é nada de novo. Não era é generalizado nem muito bem aceite. Agora, o teletrabalho não é uma situação saudável se for prolongado e se for feito em exclusividade. É uma forma de trabalhar sem ter em conta aspectos ergonómicos, e, por outro lado, implica estar a trabalhar sem horário a maior parte das vezes. É uma situação que obriga a algum confinamento dentro da própria habitação, não é saudável para o próprio ambiente familiar. Penso que na fase actual o teletrabalho só deve ser mantido em situações em que se possa justificar, por motivos de saúde ou acompanhamento de filhos menores, mas que se deve procurar reduzi-lo e torná-lo não exclusivo.

O sacrifício que fizemos durante o confinamento foi em vão? O que é que se perdeu entretanto? O que é que vai permanecer?
Penso que alguns aspectos não se irão perder. As pessoas vão perceber daqui para a frente a importância do seu comportamento para evitar a transmissão, para se protegerem e protegerem os outros. Mas também é desejável é que progressivamente vão perdendo o medo. Foi pelo receio do desconhecido, por não se ter ainda outros meios para fazer face à pandemia, que se optou pelo confinamento. Foi uma estratégia de saúde pública.