Claudia Carvalho Silva, in Público on-line
O neurocientista Joseph LeDoux defende que “não há nada de melhor em relação aos humanos” e que o nosso cérebro nos traz problemas que outras espécies não têm, como o ódio, a ganância, o narcisismo e a inveja. Quanto à pandemia deste “inimigo invisível”, acredita que as culturas e o mundo estão a mudar “e isso significa que algo no nosso cérebro muda também”.
Há mais de quatro décadas que o neurocientista norte-americano Joseph LeDoux (da Universidade de Nova Iorque) estuda o cérebro, o equilíbrio entre os mecanismos conscientes e inconscientes e também os circuitos cerebrais de sobrevivência, sobretudo na relação com o medo e a ansiedade. Depois de explorar esses temas em livro (The Emotional Brain ou Anxious), chega agora a Portugal O Cérebro Consciente -Uma longa história da vida (ed. Temas e Debates), uma edição que explica minuciosamente a longa viagem até à consciência humana, com todos os pequenos passos que foram moldando o cérebro, passos esses que não passaram de “um conjunto de acasos”. Tudo começou com a pergunta “quão para trás na história da evolução temos de ir para perceber a detecção do perigo?”, explica o professor e investigador de 70 anos em videochamada, mas a viagem foi mais longa do que esperara: quatro mil milhões de anos – e a certeza de que temos mais em comum com seres unicelulares do que ousaríamos pensar. E que, acredita, não somos mais nem melhores do que os outros animais. Só diferentes.
Tendo em conta este cenário pandémico, o facto de estarmos em isolamento, longe de contacto humano e com esta preocupação constante de ficarmos doentes, pode ter impacto na forma como o nosso cérebro funciona?
Certamente que terá impacto na psicologia, que é parte do que o nosso cérebro faz. Acredito que durante mais tempo seremos muito mais cautelosos, mais tímidos em situações sociais, relutantes em viajar, relutantes em ir a restaurantes. O mundo está a mudar e isso significa que algo no nosso cérebro muda também, para entender essa mudança e para lhe dar resposta. Faz parte de tudo o que está a acontecer, que é bastante invulgar.
Mas isso acontece só a nível individual, certo? É só para quem está a viver isto ou é uma mudança estrutural?
As culturas também estão a mudar. Toda esta ideia de sair para jantar, por exemplo, já não é o que era. Ou a ideia de ir a um concerto: as pessoas não querem estar em sítios fechados com pouca ventilação.
Há então actividades que eram normais e passaram agora a ser coisas que entendemos como perigo?
Que consideramos perigo, sim. Se é um perigo real, não sei. Pode haver perigo, é certo, mas não sabemos onde é que ele está. Normalmente, quando algo faz com que nos sintamos receosos, está presente. Agora, aqui não é tanto medo – é ansiedade. Nunca ninguém viu o vírus, portanto estamos ansiosos por não sabermos onde possa estar. A ameaça está presente, mas é invisível. O que faz com que fiquemos muito mais ansiosos por não saber o que está a acontecer. Incerteza: é aquilo que a ansiedade é. Incerteza e falta de controlo e preocupação em relação ao que isso possa significar.
O nosso cérebro é mais complexo, mas isso não significa que seja melhor. Temos problemas que as outras espécies não têm. Os problemas sociais que temos: o ódio, a ganância, o narcisismo, a inveja. Não me parece que os animais tenham este leque de capacidade que lhes permita ser tão cruéis e maus uns para os outros de formas tão subtis
Falando sobre o seu novo livro: nele defende que os seres humanos não são melhores do que os outros animais só por causa do cérebro.
Não se pode falar de evolução em termos de progressão, a evolução é mudança – não é progressão. Há colónias de formigas que estão possivelmente tão bem adaptadas às suas circunstâncias quanto nós estamos. É só que o nosso cérebro é mais complexo, mas isso não significa que seja melhor. Temos problemas que as outras espécies não têm. Os problemas sociais que temos: o ódio, a ganância, o narcisismo, a inveja. Não me parece que os animais tenham este leque de capacidade que lhes permita ser tão cruéis e maus uns para os outros de formas tão subtis. Num ambiente selvagem, há lutas e mortes; mas as nossas lutas são interacções desagradáveis, são coisas mais subtis – não matam, mas desgastam. Perseguem-nos, mas de forma psicológica.
Portanto não somos melhores nem piores, somos só diferentes.
Sim, somos só diferentes. Não há nada de melhor em relação a nós. Nós gostamos das nossas diferenças porque são nossas. Se um rato pudesse apreciar os seus talentos, também iria gostar deles. Não creio que um rato possa conceber o tipo de coisas de que falamos. São os nossos talentos melhores? Acaba por ser um julgamento moral. E o tipo de cérebro que temos permite-nos fazer isto muito facilmente, mas isso não faz de nós melhores só porque conseguimos ter valores morais. É só uma invenção humana; os animais têm as suas próprias maneiras de fazer as coisas, que os mantêm vivos e bem e a interagir e a agir enquanto grupos, mas os nossos são muito mais complexos porque temos linguagem e todo o tipo de capacidade argumentativa, podemos pensar em relações em termos muito abstractos e conseguimos estabelecer hierarquias e discutir o que é que alguma coisa é ou não é. Posso usar a palavra “rato” para falar de tudo o que eu sei sobre ratos por ter feito experiências em ratos durante anos, uma única palavra abre um banco gigantesco e conceptual de memória a partir do qual posso falar. Sem a linguagem e todas estas interacções semânticas, um animal não conseguiria ter este entendimento complexo. Não conseguiria abrir um conhecimento enciclopédico a partir de uma única palavra.
O estudo do cérebro acaba por ser o cérebro a estudar-se a si mesmo, os humanos a estudarem-se a si mesmos. O conhecimento que temos sobre o cérebro acaba por ser influenciado por isto e pelas tendências antropomórficas ou antropocêntricas?
São ambos problemas. Tendemos a projectar as nossas capacidades mentais em outros animais e tem sido dito que a tendência para os humanos o fazerem pode ser uma função inata do cérebro humano – não algo que herdámos, mas algo que era útil para os nossos antepassados ao domesticarem animais, ao utilizarem-nos na agricultura. É-nos quase impossível não ser antropomórficos em relação ao comportamento de outros animais, não conseguimos imaginar que um animal consiga fazer algo complexo como apontar para um ponto na sua cara [ao ver-se ao espelho] sem ter uma força mental a guiar esse comportamento. Porque sempre tivemos essa capacidade à mão quando fazemos coisas complexas e pensamos que é assim que a mente funciona.
E como funciona, afinal?
Se pensarmos em comportamentos simples que são associados a estados mentais complexos, como quando um rato fica paralisado de medo, assumimos que está bloqueado porque está com medo. Que o medo é a causa do seu comportamento. Mas o trabalho que tenho feito mostra que esta parte do cérebro chamada “amígdala” está envolvida em controlar estes comportamentos de paralisação e de fuga que os animais apresentam quando estão em perigo. Mas a ideia que apareceu mais recentemente é que o medo em si é um processo separado no cérebro, a experiência consciente do medo está separada. Quando temos medo, muitas vezes ficamos paralisados e quando ficamos paralisados muitas vezes estamos com medo, ou a fugir ou algo do género. Portanto, fazemos uma correlação e confundimo-la com causalidade. Pensamos que o sentimento de medo nos faz fugir dos ursos, mas creio que isso não é verdade: o medo em si e a resposta comportamental e fisiológica são processos separados no cérebro. E a razão pela qual são tão frequentemente associadas é porque têm o mesmo ponto de partida. O perigo.
Que problemas podem surgir por pensarmos assim?
Culturalmente, sempre ouvimos dizer que é o medo que nos faz fugir do perigo. Temos estas ideias culturais que nos dizem que o cérebro funciona de uma certa maneira. Uma das implicações é que, quando são feitos medicamentos para ajudar com o medo e a ansiedade, são desenvolvidos através de estudos em animais, portanto usamos medicação num rato para tentar perceber que tipo de medicação o fará paralisar menos; um medicamento que o faça paralisar menos, é tido como um medicamento que o torna menos receoso e, quando dado a uma pessoa, deveria fazer com que ficasse menos receosa. Mas não. A medicação não é muito eficaz; pode ter alguns efeitos, mas não são tão úteis quanto se gostaria que fossem. O problema é que não se pode ir do comportamento dos ratos controlados pela amígdala para o sentimento de medo sentido pelo córtex pré-frontal nos humanos. Os ratos não têm córtex pré-frontal como nós temos; têm um, mas é muito primitivo. É por isso que acho que a medicação não é tão eficaz quanto deveria. Baseia-se em investigação relacionada com a amígdala, mas o medo não vem da amígdala, é uma construção cognitiva do córtex pré-frontal.
Então acha que há medicamentos que as pessoas tomam para a ansiedade que podem não ser os mais adequados? Que alternativas existiriam?
As opções que os terapeutas usam agora são boas, mas a maneira como são usadas pode não ser muito correcta. Por exemplo: numa sessão de terapia em que temos uma hora ou 45 minutos, muito breve, tem de se fazer o que se consegue em tão pouco tempo. Proponho que existem três sistemas que têm de ser abordados. O primeiro é na questão do medo, por exemplo, tem de se dominar a amígdala primeiro, fazer com que a amígdala não esteja responsiva. Em segundo lugar, tem de se mudar o hipocampo, que é onde estão guardadas as memórias sobre quem somos e o que achamos de nós mesmos e o que achamos do perigo em si. E também temos de ter terapia normal para falar. E tudo isto pode acontecer numa sessão de terapia em que se faz terapia de exposição, fala-se de atitudes e depois fala-se de si mesmo. O que eu proponho é que fazermos isto numa sequência seria mais eficaz. Há que domar a amígdala porque se a amígdala faz o que normalmente faz, de todas as vezes que se fala ou se vê uma imagem de aranhas ou cobras (se se tiver fobia a uma destas coisas), vai fazer com que se fique muito agitado e nervoso, com o coração a bater rápido e as palmas da mão a transpirar – e isso interferirá com a possibilidade de trabalhar no hipocampo e no córtex pré-frontal. Pode-se usar estímulos subliminares – em que se apresenta o estímulo por pouco tempo e a pessoa não sabe conscientemente do que se trata. Se fizermos isto em humanos, eles começam a ter o coração a bater mais rápido e as palmas das mãos a suar, mas não sentem medo e não sabem sequer o que é. É também por isto que eu digo que o medo não está na amígdala. Nestes casos, deveria sentir-se medo e mostrar as respostas, mas só se mostra a resposta. Depois, pode-se mostrar elementos visuais. Depois disso, o cérebro estará preparado para psicoterapia, em que podem ter uma conversa relaxada sobre a vida e problemas pessoais. Isto só funciona com determinados estímulos.
A forma como agimos e reagimos a esses estímulos acaba por ser muito mais primitiva do que achamos?
Temos muitos comportamentos. Há alguns comportamentos que as nossas emoções controlam, mas não aqueles que normalmente associamos a isso. Podemos ficar alarmados quando um assaltante se aproxima, isso não é controlado pelo medo, é um reflexo que está enraizado no sistema nervoso. Certos estímulos far-te-ão ficar em alarme. Depois paralisa-se. E, de novo: o medo não nos faz paralisar. O medo vai à amígdala, muito rapidamente, activando-a antes sequer de sabermos que está ali um assaltante e paralisamos; até antes de sabermos que temos uma cobra à nossa frente, paralisamos.
Acaba por ser mais um mecanismo de sobrevivência do que propriamente um reflexo das nossas emoções.
Estes comportamentos não são causados pela emoção em si. Digamos que avançamos para outro nível em que temos a capacidade para criar um modelo mental do nosso mundo. Quando vemos uma cobra, criamos um modelo mental que nos dá uma ideia interna do que devemos fazer. Isso pode ser feito de forma consciente ou inconsciente. A versão inconsciente pode ser feita por outros primatas, talvez por roedores e mamíferos. Muitos animais podem ter um modelo mental, mas possivelmente só os humanos terão um modelo mental consciente. Talvez outros primatas também. Não sabemos o que é que os outros animais sentem. Prefiro falar só em humanos: num cérebro humano, podemos criar um modelo mental inconsciente que não depende da emoção ou, assim que estejamos receosos, o medo pode ser a fonte de um outro modelo mental que nos abre um novo mundo de tomada de decisões. Portanto, quando falamos de emoções e comportamentos, há muitas coisas que temos de manter separadas porque alguns deles são controlados pelas emoções e outros não.
Então a reacção que temos a cobras e alturas, por exemplo, é primitiva?
Sim.
Porquê?
Outra forma de dizer isto é que as capacidades para detectar e reagir a cobras automaticamente (ou a alturas ou a aranhas) é baseada no nosso passado primata. Os nossos antepassados primatas viviam em árvores em que havia aranhas e cobras e viviam em ramos altos, portanto todas estas coisas eram perigosas para eles. Isto é algo que herdámos porque foi assim que começámos. Quando se tem estas coisas no cérebro, que estão interligadas, é difícil desconectá-las. Algumas das coisas que herdámos dos primatas, provavelmente úteis para os nossos antepassados, podem agora ser apenas um vestígio do passado. As pessoas que vivem em cidades raramente vêem cobras. Talvez vejam aranhas. Mas as coisas são menos perigosas em termos de estímulos nas vidas que levamos agora. Excepto quando temos algo um inimigo invisível como um coronavírus. Mas isto é um caso especial porque é invisível.
A viagem dos humanos até à consciência foi longa: como diz no título do livro em inglês [The Deep History of Ourselves – The Four-Billion-Year Story of How We Got Conscious Brains], é uma viagem de quatro mil milhões de anos.
Qual é o nome em português?
O Cérebro Consciente - Uma Longa História da Vida.
Tiraram a parte engraçada. Comecei este projecto porque pensei “quão para trás na história da evolução tenho de ir para perceber a detecção do perigo?”. Estudei a amígdala, que detecta o perigo, os ratos também o fazem, macacos, qualquer mamífero reagirá ao perigo. Qualquer animal responde ao perigo. Tenho colegas que estudam invertebrados como lesmas e moscas e abelhas – e eles também respondem ao perigo, naturalmente, porque têm de se manter vivos. E acontece que os mecanismos bioquímicos que estão por detrás da capacidade de uma mosca ou um caracol aprender sobre um estímulo que está associado a algo negativo como um choque eléctrico é o mesmo mecanismo bioquímico que está relacionado em nós. Portanto, se começamos a pensar nisto e se ambos temos isto, provavelmente veio de um antepassado comum. E qual é o antepassado comum de uma mosca e um humano? Vai-se para trás, para trás, para trás e havia uma pequena minhoca que parece ser o antepassado comum e tudo isto aconteceu de forma genética e conseguimos encontrar estas conexões. Essa pequena minhoca, que foi o antepassado de todos os animais, foi precedida de organismos parecidos com alforrecas e invertebrados desse género, que tinham sido precedidos por sua vez por esponjas. É esta a história de todos os animais: esponjas, alforrecas, minhocas, invertebrados, vertebrados. É um resumo muito sucinto, mas é basicamente isto.
É esta a história de todos os animais: esponjas, alforrecas, minhocas, invertebrados, vertebrados. É um resumo muito sucinto, mas é basicamente isto.
Então e as esponjas?
Elas também têm alguns destes mecanismos bioquímicos de que temos estado a falar. E elas evoluíram de protozoários unicelulares. Um microorganismo unicelular que tem algumas características parecidas com os humanos. A única célula que viveu tempo suficiente para criar uma nova célula que se dividiu e que pôde criar outra célula foi há 3700 milhões de anos. Chamava-se LUCA (last universal common ancestor) da vida. Tudo começa aí. Essa célula detectava o perigo, incorporava nutrientes, termorregulava-se e reproduzia-se. Isto são tudo as coisas que fazemos de forma comportamental. São os mecanismos de sobrevivência de todos os organismos. Mas quando fazemos estas coisas, projectamos a parte psicológica neles: falamos de medo quando detectamos perigo, falamos de fome quando andamos à procura de comida e prazer quando comemos, de sede quando bebemos, também do prazer sexual e da reprodução. Mas estes estados mentais que associamos a esses comportamentos nada têm a ver com a razão pela qual temos esses comportamentos. Esses comportamentos existem para nos manter vivos, tal como está numa bactéria para a manter viva. Essa capacidade de as células bacterianas detectarem e responderem ao perigo está hoje em nós na amígdala, a amígdala acaba por ser uma continuação da história desses 3700 milhões de anos. Faz muitas outras coisas também. É por isso que digo que a amígdala não tem nada a ver com medo, tem a ver com manter-nos vivo. O medo é algo separado que acontece quando nos apercebemos do que está a acontecer.
Portanto, temos mais em comum com organismos unicelulares antigos do que pensaríamos.
Sim, sem dúvida.
Algum dia seremos capazes de provar que os outros animais têm ou não consciência?
Não acredito que alguma vez o consigamos provar. Uma forma de abordar esta questão é: nunca conseguiremos entrar na mente de outro animal e saber exactamente o que está a pensar. E de cada vez que se tenta fazer uma experiência para provar que um animal está consciente de algo, uma outra pessoa pode fazer uma experiência para mostrar que o comportamento que estão a usar para demonstrar consciência no animal pode ser resolvido de uma forma não consciente. Podemos fazer coisas de forma consciente ou inconsciente. Posso dizer “eu vejo-te” ou posso apontar para ti no ecrã e ambos te representam a ti. Mas outro animal só será capaz de apontar. As coisas que nós estamos conscientes que fazemos, só as podemos fazer de forma não-verbal. Se fazemos algo de forma inconsciente, não podemos falar sobre o que fizemos e como o fizemos. Podemos responder verbal ou não verbalmente a algo de que estamos conscientes; mas só podemos responder de forma não-verbal a algo de que não estamos conscientes. Retornando ao nível da estimulação subliminar, se eu apresentar uma imagem de uma cobra à sua amígdala, o seu coração irá acelerar – e isso é uma resposta não-verbal. Se lhe perguntar o que viu, vai dizer “não vi nada”. Se lhe mostrar a imagem da cobra durante mais tempo, pode dizer “há uma cobra” e o seu coração voltará a bater rapidamente, mas agora estará consciente disso e pode falar sobre isso. A regra de ouro para determinar se algo é consciente ou não num humano é se a pessoa pode falar sobre isso. Não quer dizer que possamos falar de tudo aquilo de que estamos conscientes. Ou que o relato verbal seja uma forma perfeita. Mas é uma forma segura de dizer, de forma geral, que a pessoa estava consciente daquilo. Para a maioria das coisas, se não pode falar sobre algo é porque não se está consciente disso.
Portanto, será difícil saber.
Não gosto de dizer nunca. Não vejo como. Uma coisa que podemos fazer para o melhorar seria saber mais sobre a consciência humana e os mecanismos cerebrais que estão envolvidos. Há uma região na parte frontal do cérebro, chamada pólo frontal, que não existe noutros primatas. Há uma outra parte que está presente em nós e noutros primatas, mas não noutros mamíferos. E há ainda outras regiões no lobo frontal que estão presentes em todos os mamíferos. Então uma possibilidade é ver se este pólo frontal está envolvido na consciência humana e isso poderia ser uma forma de separar o que pode ser único na consciência humana e não está presente noutros primatas. Mas a verdade é que não sabemos o suficiente sobre o cérebro.
Também defende que deveríamos mudar o uso da palavra “emoção”. Pode explicar?
A “emoção” é provavelmente o maior problema desta questão do medo. Se usarmos palavras como “emoção” e “medo”, que é um exemplo que gosto de usar, dependerá do que queremos dizer. A maior parte pensa que falamos de emoções. Se falamos de medo e emoção, as pessoas pensam nas emoções e no que sentem. A minha investigação é sobretudo sobre as respostas do corpo e comportamentos. Se mostrarmos uma imagem de alguém com uma expressão de medo, a amígdala acende-se e pensamos que a amígdala está a detectar medo, mas o que está a detectar é o perigo. Acham que estas caras são universais, as emoções devem ser universais. Na verdade, o que é o universal é o perigo. O medo não é universal. Cada cultura vivencia o medo de uma forma diferente. Todas vivenciam algo, todas têm perigo – se existir perigo, existe uma palavra para isso e, se essa palavra for “medo” para as experiências que temos quando estamos em perigo, então pensamos que o medo faz parte de todas as culturas: e sim, a palavra “medo” está em todas as culturas. Mas a experiência de medo é diferente em todas elas.
A mensagem que deixa no final do livro é de que a nossa mente nos torna egoístas. Porquê?
Porque nos permite ter uma concepção mais alta de nós mesmos, das nossas necessidades, os nossos desejos. Todo os animais são egoístas por uma questão de sobrevivência. Mas nós criamos egoísmo de formas novas, até mais cruéis. É um pensamento, um conceito. É: “Eu quero e farei o que for preciso. Tomo decisões conscientes para ser um chefe complicado, ou desagradável com o meu parceiro.” Podemos fazer isto de forma inconsciente também, mas temos a capacidade de fazer destas coisas prioridades da nossa mente consciente. Não dizemos “ah, vou ser egoísta”, mas desenvolvemos um tipo de objectivos que nos permite agir de forma egoísta. Não há um centro de egoísmo nos nossos cérebros. O egoísmo é uma forma de controlarmos o nosso comportamento e o que fazemos. Mas a nossa capacidade de ter estas emoções complexas de nível superior como a ganância, inveja, ciúmes, narcisismo, tudo isto... talvez alguns animais tenham alguma versão disto nos seus comportamentos, mas acho que somos os únicos organismos que o põem numa questão de “eu”, de “mim, mim, mim”. Não é que se diga “eu sou narcisista”, mas é quando se torna o “eu” o centro de tudo – não é a palavra “eu”, é a ideia do “eu” – que é um conceito consciente que é agora a força motriz de tudo o que fazemos se formos narcisista. Conhecemos um homem famoso nos Estados Unidos, que tem pele laranja e cabelo estranho, assim...
Qual é o maior mito que as pessoas acreditam em relação ao cérebro?
O que me parece maior é que a maior parte do nosso comportamento é controlado de forma consciente. Há debates intensos relacionados com o livre-arbítrio. Penso “vou pegar neste copo” e pego, portanto devo ter livre-arbítrio. Mas há sempre outra pessoa que pode criar outro tipo de explicação para isso, é como a consciência animal, pode-se sempre encontrar uma explicação não consciente. Pode-se sempre ter uma explicação que não envolva livre-arbítrio daquilo que nos parece ser livre-arbítrio. Por exemplo: antes de qualquer coisa ser consciente, é inconsciente. Antes de um pensamento estar na nossa mente consciente, está num estado pré-consciente. Há uma coisa chamada metacognição e uma destas ideias é que são o passo antes da consciência. Aquilo de que estamos conscientes é construído de forma não consciente na metacognição e isso gera uma pequena narrativa que entra na nossa mente consciente, e isso é aquilo de que estamos conscientes. Podemos ter uma espécie de metacognição do livre-arbítrio que é o que me faz dizer que vou pegar neste copo. Acaba por ser um método inconsciente que precede tudo. É como se a metacognição e a consciência andassem de mãos juntas, como se fossem uma só coisa, mas precisa-se de uma para ter a outra. De volta à consciência e ao comportamento, não temos de pensar na maior parte das coisas que fazemos. Se o fizéssemos, estaríamos sempre tão ocupados a planear as nossas acções que não seríamos capazes de fazer mais nada. Imagina aprender a andar de bicicleta. Ao início todos os movimentos são controlados conscientemente, mas depois com o tempo ficamos melhores e melhores e nem se pensa mais. Pega-se na bicicleta e anda-se. O mesmo com conduzir um carro. Ser um humano é mais ou menos assim. Ao início, temos de pensar em tudo e aprender a fazer tudo, mas conforme vamos ficando mais velhos, cada vez mais coisas estão definidas e não se tem de pensar nessas coisas e vamos pela vida a fazer as coisas. Acredito que muitos dos nossos comportamentos são controlados desta forma implícita e não consciente. E acho que isso é um problema para a lei. Temos todos estes sistemas no nosso cérebro e como é que se decide que parte da pessoa é culpada? Quando a pessoa vai a julgamento, tratamo-la como a pessoa consciente, mas há todas estas camadas de inconsciente que também são a pessoa. Qual é que vai para a prisão? Todas. Mas é mais complicado do que isso.