5.7.20

Prevenção é o caminho para perceber que o suicídio não é romântico nem inevitável

Carla R. Ribeiro, in Público on-line

O suicídio não é doença. Mas é um comportamento que, na maioria das vezes, decorre de uma patologia. Educar e desmistificar são alguns dos objectivos do Plano Nacional de Prevenção Contra o Suicídio para 2020.

O suicídio permanece um assunto tabu. No entanto, os especialistas defendem que “não falar de suicídio não é a solução”. Em vez disso, é imperativo “saber como falar” do tema, enfrentá-lo sem o pessoalizar, desmistificar o seu enquadramento e pôr um ponto final à romantização do acto.

“Dentro dos suicídios que se realizam no contexto de patologia psiquiátrica”, explica a assessora do Programa Nacional para a Saúde Mental, a psiquiatra Ana Matos Pires, “nem todos obedecem a um plano: muitas vezes são fruto apenas de um momento, sem uma intenção associada ou carta de despedida”, como se vê nos filmes. “É necessário acabar com esta romantização”, alerta.

Como deve agir a comunicação social em caso de suicídio?

E palavras como “coragem” ou “cobardia” têm de ser simplesmente abolidas. ​"O suicídio é um momento de desespero absoluto. E é preciso retirar a culpa de quem o pratica, mas também de quem fica”, que, muitas vezes, fica à procura de um sinal que não percebeu, mas que, na realidade, nunca existiu. “O suicídio é um problema de saúde pública”, no sentido das implicações sociais colaterais que tem, esclarece a também coordenadora regional da Saúde Mental da ARS Alentejo. “Mas é preciso compreender que não é uma doença; é um comportamento e, felizmente, raro”, explica, sublinhando que, apesar de a grande maioria dos suicídios (a especialista estima que sejam cerca de 90%) serem fruto de doença mental, ter uma doença mental não leva necessariamente a esse comportamento.

Autópsia psicológica

O enfermeiro especializado em saúde mental e membro da Associação Portuguesa de Suicidologia, José Carlos Santos, acusa a sociedade de, muitas vezes, procurar uma análise linear do suicídio quando esta é muito complexa e multifacetada, insistindo que “a causa é diferente do momento”, que descreve como um episódio de uma “enorme desesperança”. Porém, as estatísticas não passam de estimativas, uma vez que “para se perceber melhor este número seria necessário que houvesse mais autópsias psicológicas”, que passa por fazer a reconstituição dos últimos meses de vida. “No entanto, este é um processo caro e pouco aplicado”, lamenta.

“Quando se faz uma autópsia psicológica, percebe-se que havia um quadro de depressão grave ou, por exemplo, uma esquizofrenia diagnosticada, tendo, neste último caso, o comportamento ocorrido ou num momento de alucinação ou após o primeiro episódio psicótico”, sintetiza Ana Matos Pires. Segundo José Carlos Santos, em cerca de 80% dos casos, estas autópsias revelam ainda que “houve pelo menos um contacto com um médico no ano anterior ao acto”, mas muitas vezes o que acontece é a “desvalorização da dor mental”. “Não basta haver predisposição para pedir ajuda, é preciso encontrar alguém capaz de ajudar”, resume, insistindo na importância do plano para a prevenção do suicídio que passa também pela “formação dos agentes de primeira linha: profissionais de saúde dos cuidados primários, de emergência e de segurança” ou pela identificação das populações mais vulneráveis.

Também Ana Matos Pires considera que o caminho para que se consiga limitar o número de suicídios passa pela prevenção precoce. E 2020 seria o ano em que a prevenção do suicídio deveria ter tomado conta da agenda.

Mas a pandemia acabou por adiar os planos, ainda que, no meio da turbulência, se mantenham os planos de transformar Setembro (a 10, assinala-se o Dia Mundial de Prevenção do Suicídio) no mês da consciencialização e tenha sido lançado um site sobre a saúde mental, no qual também é tratado o suicídio — uma necessidade pelas características do momento presente, em que o bem-estar da mente se apresenta como uma prioridade. Na linha SOS Voz Amiga, por exemplo, “têm surgido muitas primeiras chamadas de quem está a sentir-se perturbado pelo confinamento, mas também pelas consequências que estão por vir”, contou ao PÚBLICO a voluntária Mafalda que, desde 2012, está “de coração” do outro lado da linha, pelo menos três turnos por mês.
A luta pela prevenção

“Em todo o mundo, há cerca de 30 países com um plano de prevenção contra o suicídio, e Portugal, desde 2013, é um deles”, começa por dizer José Carlos Santos, explicando que, ao longo deste ano, esse mesmo “ambicioso plano”, que “identificou as áreas prioritárias de intervenção”, deveria estar a ser posto em prática. Mas, mesmo com os recuos ditados pelo surto do coronavírus, há vários pontos que vão avançar e um deles é precisamente insistir na “proximidade e acessibilidade aos cuidados de saúde primários, já que são estes a primeira linha da intervenção precoce”.

Ana Matos Pires acrescenta que uma boa intervenção a este nível passa por “dotar os médicos de família com ferramentas de diagnóstico”. E, mesmo que se avalie o desabafo como uma necessidade de atenção, isso não significa que seja menos importante. “Se for uma chamada de atenção, dê-se atenção”, sublinha. Além disso, a psiquiatra considera fundamental “formar os meios de comunicação”, que têm no seu poder a capacidade de passar mensagens que podem influenciar a decisão de alguém procurar ajuda ou de desistir de o fazer, considerando que, não obstante todas as recomendações, se mantêm práticas irresponsáveis e perigosas. “Por exemplo, é preciso falar mais sobre depressão, sobre o que é e que é tratável”, não sendo em momento algum um capricho.

É neste caminho de cultivar mais informação e maior literacia que o enfermeiro José Carlos Santos considera poder combater-se o estigma, permitindo que alguém procure ajuda “sem medo de ser ridicularizado pelos outros”. “Muitas vezes, o pedido de ajuda só é feito quando quem o faz já se tornou disfuncional — e, às vezes, é demasiado tarde.” É ainda neste ponto que sublinha a importância das linhas de ajuda, nas quais impera o duplo anonimato: nem quem liga se identifica, nem quem atende diz quem é ou onde está. Para mais, explica José Carlos Santos, os voluntários “não são profissionais de saúde — são apenas pessoas a quem se pode exprimir emoções sem medo de se ser julgado”.
Quem ameaça, não faz?

Além de o próprio tema continuar a ser tabu, também se reveste de uma série de mitos que importa desconstruir se se quer batalhar pela sua prevenção. Um dos mais comuns é o conhecido chavão de “quem ameaça, não faz”. José Carlos Santos apela a que se preste atenção quando a conversa do suicídio surge — é que, se por um lado, é falso que alguém que pense em suicídio o venha sempre a fazer, também não é verdade que fugir ao tema seja a solução. “A pior coisa será fingir que não se está ouvir quando alguém quer falar.”

É aqui que as linhas anónimas fazem muitas vezes a diferença. Isto porque, como refere o presidente da SOS Voz Amiga, Francisco Paulino, “muitas vezes, é mais fácil partilhar o sofrimento com um desconhecido que nunca se irá passar a conhecer”. E, conta o responsável, que começou por ser, há 23 anos, uma voz anónima, nem sempre quem liga não está a ser acompanhado. “Há pessoas que nos ligam e que estão a ser acompanhadas na psiquiatria, mas que, mesmo assim, precisam daquele momento de desabafo.” É que “agir contra a tristeza dos outros é simples — muitas vezes, basta ouvir. Com atenção”, enfatiza.

A história de Francisco Paulino é igual à de tantos outros voluntários. Sem qualquer ligação à saúde, um dia foi confrontado com o comportamento suicida de alguém próximo que o levou a uma viagem interior, fazendo a mesma pergunta que tantos fazem e que, hoje, sabe ser a errada: “porquê?”, quando “era uma pessoa que tinha tudo para ser feliz: um bom casamento, filhos, boa situação financeira…” A casualidade levou-o às linhas e acabou por fazer atendimento durante seis anos — até chegar o dia em que precisou de interromper: “Os voluntários precisam de parar de vez em quando, durante uns tempos, para recuperarem a harmonia emocional”, explica.

Isto porque para se ser voluntário é “preciso haver disponibilidade emocional e de tempo” e, mais importante, “é preciso gostar de pessoas”. Pelo meio, explica, há o constante e exigente “exercício de nunca nos aproximarmos demasiado sem que nunca nos afastemos”.

Mafalda ainda se mantém a atender e, por isso, cultiva o anonimato neste voluntariado do qual não se aproximou por uma experiência trágica, mas por, há sete anos, ter ouvido, na televisão, um apelo para que as pessoas se dessem como voluntárias. O discurso fê-la recuar duas décadas, a uma conversa que a marcou: a história relatada por um amigo japonês de que no seu país, num sítio muito procurado para o suicídio, haveria uma cabina telefónica — bastava levantar o auricular para ouvir a voz de alguém que, do outro lado, estava disponível para conversar.

“Quando ouvi o apelo na televisão, senti que era o momento certo: recebi formação em 2011 e iniciei os turnos em 2012.” Para ajudar, estima, um voluntário não deve “ter grandes desequilíbrios internos e tem de estar emocionalmente disponível”, ainda que esteja certa de que “não há uma receita de como atender”. “É preciso ouvir o outro e perceber que caminhos tomar, que perguntas fazer.”

“O tom de voz e o ritmo são essenciais para manter a comunicação”, explica, considerando que “a voz pode ser um instrumento poderoso para criar empatia”. E, às vezes, também “é preciso carpir com quem liga”, não tendo dúvidas de que “cada chamada é uma história” — mas, não conta nenhuma. Além do duplo anonimato, Mafalda refere o dever de confidencialidade. E não interessa que mais ninguém saiba quem é, quando existe a possibilidade de o próprio se reconhecer.

“Quando alguém nos conta a sua história pela primeira vez sente-se um alívio na voz”, refere. Também há as designadas chamadas de fim de linha: “São chamadas tão intensas que por vezes sinto-me fisicamente ao lado daquela pessoa, no mesmo cenário e espaço”, descreve.

“O objectivo é sempre que aquela pessoa, depois de desligar, vá dormir e que no dia a seguir procure ajuda.” E, muitas vezes, é exactamente isso que acontece. Mas, embora em menor número, também há casos cujo desfecho não se deseja. A voluntária não sente a tentação de julgar. Porque, até ao último segundo, Mafalda acredita ser possível ocupar a desesperança pelo seu oposto.