Maria João Valente Rosa, demógrafa, está preocupada com as desigualdades que se acentuam na escola e não entende como não se aproveitam os layoffs para dar mais formação aos trabalhadores. Alerta para fenómenos como “o ressurgimento de sentimentos nacionalistas ou regionalistas”
A demógrafa e socióloga Maria João Valente Rosa tem trabalhado as questões do envelhecimento na sociedade portuguesa. Nesta entrevista onde analisa a situação actual, a professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e autora do ensaio que acaba de sair Um tempo sem idades (Tinta-da-china), sublinha que com a pandemia “o futuro aterrou de forma rápida no presente”, e ficámos “um bocadinho perdidos”. Alerta para os riscos de fechamento que a pandemia trouxe, como “o ressurgimento de sentimentos nacionalistas ou regionalistas”. Nota excessivo foco com o presente, não vê serem desenhadas estratégias para o futuro e isso preocupa-a. Espanta-se que ninguém, empresas e Governo, tenha apostado na formação dos trabalhadores durante o seu layoff. E está preocupada com o efeito nas crianças: “A escola não está a chegar aos que mais precisavam”, afirma.
Que diagnóstico faz da actual crise?
Ainda é prematuro fazer grandes diagnósticos sobre o que ficou como marca. Sinto que há pouca preocupação em olharmos o futuro a médio e longo prazo, porque o que se passou está relacionado com uma série de tendências, algumas que já estavam em curso e aceleraram, mas vai exigir grandes mudanças de todos. Essas mudanças obrigam-nos a prepararmo-nos — e não tenho visto isso. Tenho visto centramento no presente e pouca reflexão de fundo a médio e longo prazo sobre mudanças que de algum modo podiam ser aproveitadas se estivéssemos preparados. É como se o futuro tivesse aterrado no presente, ficámos um bocadinho perdidos. Reagimos, mas não basta: é preciso reflexão e estratégia, e isso está a falhar.
Está a pensar em que áreas específicas?
Nesta fase acentuou-se a presença do mundo tecnológico e digital nas nossas vidas. Isso tem implicações sociais a variados níveis. Em termos do emprego e desemprego, da nossa relação com os outros, de ocupação do espaço.
O trabalho à distância ganhou uma predominância especial, e isto pode vir a ser uma semente de futuro interessante se for bem trabalhado. Mas, se for mal trabalhado no presente, pode causar alguns prejuízos, nomeadamente quando falamos de classes sociais: nem todos estão confortáveis com o trabalho à distância, depende das condições de trabalho e de vida e das próprias habitações, etc.
A aposta de robotização de muitos trabalhos — os robots não têm covid-19 — e toda a aposta feita no digital com o encerramento de lojas físicas vai afectar o emprego, assim como a incerteza em relação ao amanhã. Muitas áreas estão a ser afectadas — ligadas ao turismo, à restauração — mas [esses efeitos] podem estender-se a muitas outras áreas em que a presença do homem possa ser prescindível e os drones substituam as actividades. Nada disto é novo, mas acelerou muito.
Que consequências é que essas mudanças estão a ter em termos económicos e sociais?
A nossa relação com os outros foi bastante alterada e pode deixar fortes marcas. A vida privada começa a ganhar espaço em relação à vida social. Há um fechamento: fechámo-nos muito em relação ao outro, adquirimos um medo perante o outro desconhecido. Não é só distanciamento, é fechamento em relação ao desconhecido e ao outro. Os riscos associados a isto são vários: de ressurgimento de sentimentos nacionalistas ou regionalistas em que estamos bem se estivermos em pequenino, com o que conhecemos, e é uma tendência que vai ao arrepio do que tinha sido o fio condutor até há pouco tempo. Temo que venham a acentuar-se este tipo de sentimentos de que qualquer pessoa que seja diferente e que não seja da nossa região, da nossa terra, representa um perigo.
Quer dizer que o confinamento pode levar ao crescimento de sentimentos de racismo e xenofobia?
Sim, sentimentos de racismo e xenofobia, do pequenino e do ‘nós versus os outros’. Porque os outros representam ameaça, e ameaça para a nossa saúde.
Um pouco a imagem do que se tem passado em relação a grupos como os refugiados, imigrantes, pessoas que vivem em bairros carenciados, que já de si estão fragilizadas e que andam em transportes públicos lotados e não pararam de trabalhar…
… e que têm menos hipóteses de estarem à distância, porque o seu trabalho implica presença física, que implica mobilidade e maior contacto com os outros. Há outras questões: o acesso a cuidados de saúde não está a ser e nunca foi igual para todos. Muitas vezes as pessoas acabam por perceber que estão infectadas tardiamente. Esses grupos são ainda mais marginalizados pelo medo que os outros têm em relação a eles. Isso é terrível, começa a dar origem a todo o tipo de estigmas por um factor que não tem nada a ver com as suas características. Começamos a criar gavetas de risco: o mais velho, o que é de outra cor, a pessoa que vive num centro urbano, a pessoa que vive num bairro mais pobre, a mais velha. E não vamos à origem do risco, estamos a confundir a causa com o efeito.
Em que medida?
Quando em relação a pessoas mais pobres achamos que são, por si, transmissoras do vírus: as pessoas podem sê-lo por viverem em meios onde o vírus se propaga com uma velocidade enorme, como andarem em transportes públicos cheios, mas a causa está nas circunstâncias em que as pessoas vivem — devem ser atacadas as circunstâncias, não as pessoas.
Por exemplo, em relação a pessoas mais velhas não é por serem mais velhas que são potencialmente vítimas mas porque sabemos que grande parte vive em lares, e vão para lares porque estão com problemas de saúde graves — o vírus é oportunista, ataca os mais frágeis em primeiro lugar.
Importa tratar a doença, é essencial, e dar resposta rápida a quem tem a doença, mas importa simultaneamente perceber porque há meios mais vulneráveis que outros, discutir seriamente esses factores de forma a perceber que ninguém é inimigo de ninguém. Isto não tem sido trabalhado.
E como é que o Governo tem gerido essas causas?
De forma pouco profunda. Não sei se é só o Governo — são todos, existem as organizações, as empresas, os fazedores de opinião, os movimentos de cidadãos, os partidos políticos… Houve pouco espaço para uma reflexão sobre aquilo que está para além da evidência. É a falha que sinto desde o início.
Entristece-me que não se tenha discutido a fundo os factores sociais que podem potenciar estas situações de maneira a podermos dar resposta devida para hoje e no futuro. A relação com o outro, o risco de voltar ao pequeno, e que dentro do nosso círculo é que estamos bem, tem vários riscos, aumentar a distância entre o nós e os outros, e ainda ficarmos mais divididos do que estávamos.
Há relatos de idosos que ficaram em lares, ou em casa, isolados, de pessoas que se sentiram abandonadas pela família. Que impacto isto terá?
É difícil, mas acredito que seja grande. Muitas pessoas que viveram em isolamento passaram a sentir-se sós, veio uma situação de solidão, com todos os problemas de saúde associados. E muitas dessas pessoas não têm habilidades tecnológicas para poder aceder às conversas virtuais com os membros da família, fica-lhes vedada essa pequena ligação que foi muito estimulada.
Também a preocupa a escola.
Podemos dizer que este é um momento especial em que as crianças ficaram confinadas à sua família, mas esperemos que não tenha continuidade. A escola tem um papel muito importante na correcção de desigualdades de partida. Sabemos que Portugal tem marcas fortíssimas desse factor nos resultados e na mobilidade social.
O sucesso escolar é muito influenciado pelo meio social e familiar em que as crianças vivem, e por sua vez o seu percurso escolar influencia o que irão ser na vida. Neste momento foi a solução encontrada, mas a escola tem que retomar o seu papel e está longe de desempenhar a função que deveria. Temo que a escola perca protagonismo e que as crianças acabem por ficar ainda mais à mercê das condições de origem do que no passado recente. Além de tudo o resto — e é muito importante que as crianças socializem — elas precisam de conhecer o mundo do outro.
Pergunto: o que está a ser feito? Isto pode deixar marcas no futuro. A discussão social sobre a escola é crítica, principalmente num país marcadíssimo por desigualdades como o nosso. Era o momento de aproveitarmos para discutir o papel da escola, as desigualdades e todas as situações associadas.
Na escola tornou-se também evidente o fosso entre alunos com acessos a diferentes meios…
… não é só, é preciso alguém a ajudar, e é preciso um pai ou uma mãe com habilidades digitais. E muitas crianças não têm computador, nem telemóvel: que famílias podem ter um computador afecto a cada criança?
Sem esquecer os pais que têm de ir trabalhar…
A escola não está a chegar aos que mais precisavam. É em miúdos a quem a escola podia fazer maior diferença que estes problemas estão a atacar de forma mais intensa e isto é altamente preocupante. Pode contribuir para maior insucesso escolar de crianças que já estavam em grupos que vivem em condições sócio-económicas mais baixas. As desigualdades começam na criança e perpetuam-se no futuro — se estamos a agravar o fosso no presente sabemos que no futuro vai ser mais grave ainda. Bem trabalhadas poderia ser uma oportunidade excelente para nos repensarmos enquanto sociedade.
Coloca o foco na formação, que questões deveríamos repensar?
Devíamos delinear estratégias para o futuro em alguns aspectos que ficaram bem marcados, como a questão do trabalho. A nossa vida está segmentada — temos o tempo de formação, de lazer, de trabalho, de família… Podemos começar a pensar num modelo em que tudo se possa articular e os vários tempos possam estar conciliados e não fazer parte de fatias diferenciadas.
Depois, precisamos todos de fazer formação ao longo da vida, e não me estou a referir a formação superior — precisamos de continuar a estudar, a aprender novas áreas. Era bom que este tempo em que as pessoas estão em casa, em períodos de layoff, fosse aproveitado para regressar “à escola”, que existissem espaços — mesmo virtuais — onde as pessoas possam reaprender novas realidades e pudessem começar a imaginar-se noutras actividades. A rotina e o passado já não são bons conselheiros. Temos que pensar o que fazer diferente porque senão ficamos condenados a não acompanhar esta gigante onda de transformação.
Não vi uma aposta forte do Governo e das empresas em formação neste período de layoff. As pessoas gostam de aprender: se calhar não gostam é de aprender aquilo que não tem nada a ver com elas. Sabemos que em Portugal somos dos piores em termos de nível de escolaridade. Isto era algo que nos ajudava a crescer mais rápido. E se calhar, com mais formação, com as pessoas mais empenhadas, precisávamos de menos horas de trabalho — já há experiências, como a Microsoft no Japão, que reduziu o número de dias de trabalho e a produtividade aumentou. Em Portugal trabalhamos mais nove horas que os alemães, mas a nossa produtividade nada tem a ver com a dos alemães. Menos horas de trabalho não tem que se reflectir na produtividade. Há outro ponto: a vitória do mundo virtual sobre o mundo real. Já sentíamos isto: o contacto humano está a ficar para trás, e as competências sociais estão a perder-se.
Que lições retiramos deste período?
Várias, uma delas é que é possível combinar vários tempos que estavam habitualmente separados no tempo e no espaço e de que falámos. A outra lição é a incerteza do futuro e que o passado já não nos basta para nos reinventarmos, o futuro aterrou de forma rápida nas nossas vidas e isto ficou mais nítido do que era. Depois há outra lição: os nossos comportamentos individuais podem ter forte impacto no colectivo — saímos ou não, usamos ou não usamos máscaras, etc. O impacto social dos nossos comportamentos é algo que esta pandemia trouxe e que pode sair reforçado.