Comissão Europeia avalia se as regras de alguns Estados-membros distorcem o mercado interno. Ao mesmo tempo, reforça as medidas defensivas contra evasão fora do espaço europeu. E recomenda que os governos não apoiem as empresas com ligações a paraísos fiscais.
A Comissão Europeia está a preparar um plano que poderá vir a pressionar os Estados-membros que têm regras fiscais que encorajam as empresas a recorrer a práticas de planeamento fiscal agressivo que lhes permitem beneficiar de uma tributação mais baixa.
A informação foi avançada nesta terça-feira pelo Financial Times — que no passado noticiou em primeira mão outras bandeiras fiscais que o executivo comunitário acabaria por apresentar — e, de acordo com o jornal britânico, Bruxelas deverá avaliar se há regimes fiscais europeus que estão a falsear as condições de concorrência no mercado interno, à luz do artigo 116.º do tratado sobre o funcionamento da União Europeia (UE).
É um projecto de continuidade relativamente ao plano de acção lançado há cinco anos pela Comissão Europeia no sentido de criar uma “tributação justa e eficaz” destinada a “modernizar a tributação das empresas na UE”. E poderá significar uma espécie de retrato de conjunto que há vários anos é reclamado pelo Parlamento Europeu.
Será o passo seguinte aos passos já dados pela Comissão quando, ao longo dos últimos anos, Margrethe Vestager, responsável pela política da concorrência, foi avaliar, caso a caso, se determinadas decisões fiscais de alguns Estados-membros — ao permitirem a determinadas multinacionais pagar menos impostos — deixaram grandes empresas numa situação de vantagem em relação aos concorrentes e com isso distorceram a concorrência no mercado único, da Fiat à Starbucks, da Amazon à Apple, da Nike ao Ikea.
O plano da Comissão tem o potencial de virar os holofotes para os centros financeiros que facilitam o desvio de lucros, em particular o Luxemburgo e os Países Baixos, dois dos seis países fundadores, hoje Estados-membros que concentram um quarto do investimento directo estrangeiro e albergam o maior número de empresas “caixa de correio” na UE.
Mas além de o Luxemburgo e os Países Baixos, também a Irlanda, Malta e Chipre começam a ser apelidados internamente na UE como verdadeiros “paraísos fiscais” por serem vistos por outros Estados-membros como promotores da distorção do princípio de que os lucros das empresas devem ser tributados no país onde são gerados. E resta saber em que medida este plano da Comissão Europeia imporá também mudanças em Portugal, que tem o seu próprio regime fiscal preferencial, a Zona Franca da Madeira (ZFM), um regime de auxílio destinado a promover o desenvolvimento económico através do qual as empresas ali instaladas podem beneficiar de taxas reduzidas de IRC, mediante o cumprimento de determinadas condições (como a criação de postos de trabalho na região autónoma) até um determinado limite máximo.
Mas foi justamente sob a óptica da concorrência — para ver se as regras do mercado interno estavam ou não a ser falseadas — que Bruxelas começou a examinar nos últimos anos a forma como o Estado português aplicou o regime da zona franca. E ao encontrar indícios de que Portugal atribuiu benefícios fiscais sem cuidar se os postos de trabalhos eram criados e mantidos na Madeira e sem cuidar se os lucros das empresas tinham origem em actividades desenvolvidas na região, decidiu declarar de forma preliminar que “o regime aplicado por Portugal constitui um auxílio ilegal” e abriu uma investigação aprofundada em Julho de 2018 que ainda está por concluir. Por exemplo, Bruxelas detectou que cerca de 40% (em 2012) e 30% (em 2013) dos postos de trabalho relativamente aos quais os benefícios fiscais foram concedidos referem-se a gerentes que podiam exercer funções em muitas outras empresas da ZFM; e verificou haver então trabalhadores que só trabalharam uma parte do ano e “foram contados como se tivessem trabalhado todo o ano”.
O dossier da Apple
O momento em que Bruxelas faz saber que avançará com este plano não é por acaso. A informação surge antes de os governos europeus aprovarem o plano de recuperação da covid-19, que incluiu uma parte da mobilização de recursos assente na captação de receitas pela tributação sobre as grandes empresas; e, como recorda o Financial Times, surge imediatamente antes de o Tribunal de Justiça da UE decidir se a Comissão teve ou não razão quando em 2016 decidiu que a Irlanda deveria exigir à Apple o pagamento de 13 mil milhões de euros em impostos, caso que foi parar ao tribunal europeu porque o Governo irlandês se recusou a cumprir essa decisão do executivo comunitário.
O artigo 116º do tratado sobre o funcionamento da UE que, segundo o jornal britânico, fundamenta a acção do executivo comunitário, estabelece que, “se a Comissão verificar que a existência de uma disparidade entre as disposições legislativas, regulamentares ou administrativas dos Estados-membros falseia as condições de concorrência no mercado interno, provocando assim uma distorção que deve ser eliminada, consultará os Estados-membros em causa.” E que “se desta consulta não resultar um acordo que elimine a distorção em causa, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo legislativo ordinário, adoptam as directivas necessárias para o efeito”, podendo ser “adoptadas quaisquer outras medidas adequadas previstas nos tratados”.
Excluir empresas, com excepções
Virar o combate às estratégias de planeamento fiscal agressivas para o mercado interno europeu surge ao mesmo tempo em que a UE avança com uma série de outras medidas que se centram no combate a essas práticas fora da União, em territórios terceiros. É dentro dessa lógica que neste terça-feira vem a público uma recomendação da Comissão Europeia para que os Estados-membros não dêem apoios financeiros da covid-19 às empresas com ligações a paraísos fiscais e que, ao mesmo tempo, comprovadamente não pagam a sua quota-parte de impostos.
No essencial, Bruxelas “sugere várias condições a que deverá estar sujeito o seu apoio financeiro”, defendendo que a famosa lista negra elaborada pela UE (actualmente com 12 jurisdições não-cooperantes para efeitos fiscais, como o Panamá ou as ilhas Caimão) é “a melhor base para a aplicação das restrições, uma vez que permitirá a todos os Estados-membros agir de forma coerente e evitar medidas individuais susceptíveis de violar o direito da UE”.
Portugal seguiu outro critério e impôs restrições que visam também um maior número de territórios — todos aqueles que fazem parte de uma lista portuguesa das jurisdições que o Ministério das Finanças considera serem paraísos fiscais.
A Comissão também recomenda “excepções a estas restrições — a aplicar em condições rigorosas —, a fim de proteger os contribuintes honestos”. E explica: “Uma empresa deverá continuar a ter acesso a apoio financeiro, em determinadas circunstâncias, mesmo que tenha ligações com jurisdições constantes da lista da UE de jurisdições fiscais não cooperantes. Poderá ser o caso, por exemplo, de uma empresa que possa provar que pagou impostos adequados no Estado-membro durante um determinado período (por exemplo, os últimos três anos) ou que tenha uma presença económica genuína no país constante da lista. Recomenda-se aos Estados-membros a introdução de sanções adequadas para dissuadir os requerentes de fornecerem informações falsas ou inexactas”.
Margrethe Vestager defendeu que, “neste contexto, não é aceitável que as empresas que beneficiam de apoio público participem em práticas de elisão fiscal envolvendo paraísos fiscais”, pois, sustentou, “seria uma utilização abusiva dos orçamentos nacionais e da UE, em detrimento dos contribuintes e dos sistemas de segurança social”.
A Comissão indica que os Estados-membros terão de “informar a Comissão das medidas que tencionam aplicar para dar cumprimento à recomendação” e, no prazo de três anos, o executivo comunitário publicará “um relatório sobre o impacto da presente recomendação no prazo de três anos”.