Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Novo Perfil Escolar das Comunidades Ciganas revela grande assimetria regional. Área Metropolitana de Lisboa apresenta menos aproveitamento escolar e mais abandono.
Pouco a pouco, os percursos escolares dos estudantes ciganos estão a alongar-se. Em dois anos de esforço redobrado, as taxas de aproveitamento cresceram de forma significativa. Apesar de Lisboa ter mais população pertencente a este grupo minoritário, a área metropolitana concentra menos alunos nas escolas públicas, maior taxa de retenção e de abandono.
O novo Perfil Escolar das Comunidades Ciganas, a que o PÚBLICO teve acesso, traça um retrato quase total dos alunos matriculados nas escolas públicas do continente no ano lectivo de 2018/2019. Só não responderam nove dos 808 agrupamentos ou escolas não agrupadas ao questionário electrónico preparado pelos serviços do Ministério da Educação.
Naquele ano, havia 25.126 inscritos no ensino público, incluindo os 2570 do pré-escolar. Como se passassem por um funil, o número diminuía de nível para nível: 11.138 frequentavam o 1.º ciclo, 6097 o 2.º, 4684 o 3.º ciclo e 651 o secundário.
Para perceber a dimensão da mudança em curso, ajuda recuar a 1997/98. Nesse ano lectivo, frequentavam o ensino básico e secundário 5921 crianças e jovens ciganos (não há dados sobre o pré-escolar). Os dados agora divulgados apontam para quase o triplo nesses níveis (22.556).
É a segunda vez que, respondendo a uma exigência da Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas, a Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência se uniu à Direcção-Geral da Educação para fazer este levantamento. Não será correcto comparar os dados absolutos de 2018/2019 com os de 2016/2017, já que dessa vez responderam ao questionário apenas 70% dos agrupamentos e escolas não agrupadas e agora 99%, mas nada desaconselha a comparação de dados relativos.
Dessa comparação emergem duas mudanças significativas em dois anos. Primeira: a taxa de aproveitamento escolar subiu de forma significativa em todos os níveis de ensino. No 1.º ciclo, passou de 61,6% para 85,6%. No 2.º ciclo, subiu de 49,1% para 63,7%. No 3.º ciclo, de 49,4% para 73,7%. No secundário, de 64% para 75,4%. Segunda mudança: as crianças e jovens estão a prolongar os seus percursos escolares. No ano lectivo 2016/2017, 45,4% frequentavam o 1.º ciclo, 23,7% o 2.º ciclo, 13,9% o 3.º ciclo, 2% o secundário. Em 2018/2019, 44,3 frequentavam o 1.º ciclo, 24,3% o 2.º, 18,6% o 3.º e 2,6% o secundário.
O ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, julga “esta evolução muito positiva”. E diz que para isso tem contribuído o trabalho desenvolvido “com as comunidades educativas, de promoção do sucesso escolar, através da diversificação, inovação e contextualização das estratégias de ensino e aprendizagem, envolvendo os alunos, as famílias e um conjunto alargado de entidades parceiras do campo da intervenção social” (ver entrevista).
"Temos de apostar mais"
Há um trabalho persistente, muitas vezes invisível, que vem de trás. Se recuar 30 anos, Bruno Gonçalves, o mais destacado activista da população cigana, vice-presidente da Letras Nómadas, começa no Rendimento Social de Inserção, refere o Programa Escolhas, insiste na mediação e vai até às associações ciganas e outras organizações de solidariedade social e aos seus micro projectos. “As coisas melhoraram, mas temos de apostar mais”, comenta. “O 1.º ciclo as pessoas frequentam, raramente não vão até ao fim. Chegamos ao 2.º e ao 3.º ciclos e temos problemas.” Embora a escolaridade obrigatória vá até ao 12.º, muito poucos alcançam o secundário.
Os estudantes do secundário, amiúde, não têm ninguém que lhes sirva de exemplo, lembra Manuela Mendes, investigadora do CIES-IUL – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia. São únicos. “Vivem nos dois mundos. São sobreviventes. Têm orgulho em ser ciganos, mas querem estudar, ter uma profissão qualificada, uma vida como os não ciganos. E isso de estar dentro e fora é muito desafiante.”
O país não é todo igual. As assimetrias regionais são acentuadas. O Norte destaca-se pela positiva: 10.123 dos 25.140 alunos encontram-se nessa região. Analisando os dados por distrito, verifica-se que Braga apresenta o maior número (4257), seguindo-se o Porto (3912) e Lisboa (3705). Esses dados disparam os sinais de alerta, já que diversos estudos indicam que há mais população cigana no distrito de Lisboa.
O problema Lisboa
Cinco das nove escolas que não responderam ao inquérito são da AML, mas isso não será suficiente para explicar aquele número. Manuela Mendes, co-autora do Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, levanta a possibilidade de haver uma quebra de natalidade maior ali do que no Norte do país. Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, também concede a hipótese de “haver uma maior proporção de população fora da idade de escolaridade obrigatória”. Acrescenta-lhe, porém, outras duas: Lisboa ter “uma população mais conservadora no que diz respeito à frequência escolar (é o distrito que apresenta mais crianças e jovens no ensino doméstico)”; e haver “maior dificuldade da escola e vice-versa em construir uma relação de proximidade e de confiança”.
Não é só o número global que causa estranheza a estas investigadoras. O Norte e o Centro apresentam uma taxa de retenção muito mais baixa no ensino básico (9,4% e 13,5%) do que a Área Metropolitana de Lisboa, o Alentejo e o Algarve (23,6%, 22,5% e 22%). A região Norte tem a menor taxa global de abandono no básico (3,3%) e a AML a mais elevada (15,8%). E é no distrito do Porto que há mais jovens a frequentar o secundário (317), muito à frente de Vila Real (34), Aveiro (33), Lisboa (33), Bragança (33) Setúbal (32), Braga (27), Faro (26) e Leiria (22).
Importa, defende Casa-Nova, procurar perceber se estas discrepâncias se explicam “por absentismo, por dificuldades de aprendizagem, por ausência de diversificação de práticas pedagógicas ou outras razões”. Manuela Mendes também recomenda “estudos mais localizados”. “Alguma coisa se passa em Lisboa. Não sei se são as políticas, se são as práticas educativas, se são as condições de vida das famílias que se precarizaram muito”, diz.
Pobreza e habitação
É comum associar o abandono escolar precoce ao fechamento (associado à história de exclusão), ao controlo social das raparigas (nas quais a tradição assenta a honra das famílias) e ao casamento adolescente (ainda comum). Estudiosos e activistas acrescentam outros factores. “A questão da habitação é estrutural”, salienta Bruno Gomes Gonçalves. Um terço mora em barracas, tendas, roulotes. “Muitas famílias vivem numa situação periclitante. Estão quase sempre em risco de não terem dinheiro para pagar as despesas mais básicas”, torna Manuela Mendes. A maior parte tem acção social escolar: 52,5% têm escalão A e 3,7% escalão B. E pouco ou nenhum estímulo para estudar.
Na opinião de Maria José Casa-Nova, há que “investir na transição entre ciclos”. Para isso, recomenda “trabalho de proximidade e de construção de relações de confiança”. “A escola tem um valor incalculável, mas é fundamental que esta seja significativa para as crianças e jovens ciganos”, sublinha. “A familiaridade com a educação escolar e vice-versa é relativamente recente e os laços com a sociedade maioritária e vice-versa nunca foram construídos, por uma multiplicidade de razões (desconhecimento intercultural, estereótipos, racismo, estranheza mútua, etc.).”
Bruno Gonçalves reconhece o “esforço de algumas escolas”, mas está convencido de que, “enquanto houver escolas-gueto, o resultado não será o desejável”. “Se temos uma comunidade que vê a escola como um recurso minimalista e na escola não há diversidade, é difícil quebrar esse pensamento”, avisa. Reclama uma aposta na mentoria. E pede às associações que aproveitem o Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas e o Programa de Apoio ao Associativismo Cigano para desenvolver projectos na área da educação. “O folclore é importante, mas temos de ultrapassar estes números.”
Manuela Mendes tem entrevistado estudantes do secundário que lhe falam de professores e de padrinhos não ciganos que os incentivaram. “A existência de modelos é importante”, enfatiza, em defesa da mentoria. Algum dinheiro também pode fazer a diferença. Há bolsas para alunos do secundário em transição de ciclo. Porque não alargá-las?