5.7.20

Os efeitos adversos da pandemia nas crianças portuguesas

in Expresso

Um conjunto de especialistas, que inclui Sobrinho Simões, Daniel Sampaio e Maria de Belém, alerta para o esquecimento das crianças nas decisões tomadas ao longo dos últimos meses: "Durante esta terrível crise, as próximas iniciativas não poderão servir apenas os interesses dos adultos."

Quando teve início esta pandemia, os pediatras, pais e professores ficaram tranquilos. Pelos relatos da China a nova covid-19 apresentava-se com formas clínicas muito graves, por vezes mortais nos mais velhos e até em adultos mais jovens, mas poupava as crianças. As crianças infetadas eram, na sua quase totalidade, assintomáticas ou apresentavam uma clínica idêntica às restantes viroses, tão comuns na infância. Posteriormente verificou-se que a doença podia, ainda que muito raramente, assumir formas graves também na criança. Contudo, começou a circular, oficialmente e nos meios de comunicação social que, as crianças, sendo assintomáticas, seriam também mais contagiosas. Era por isso necessário proteger os adultos da sua companhia, em particular os mais idosos, os avós. E os netos foram disso informados, criando neles uma inaceitável noção de culpa por este afastamento. Por imposta tutela, foi assim retirada subitamente às crianças a possibilidade de manterem, no seu conturbado dia a dia, o contacto e proteção tradicional dos avós, figuras fundamentais ao seu desenvolvimento. Entretanto, a teoria da maior contagiosidade não se confirmou. Alguns estudos realizados revelam que o contágio por crianças até será menor do que o de adultos pre-sintomáticos. Mas, apesar da sua não confirmação, o conceito de risco de contágio aumentado tem-se mantido, inclusive quando a criança, com consequências prejudiciais para a sua saúde, continua a permanecer fechada em casa e sem a menor possibilidade de contrair a infeção. A escola tradicional e o contacto com outras crianças e professores também cessou, com consequências igualmente adversas. As crianças ficaram exclusivamente dependentes da família nuclear, frequentemente com problemas psicológicos associados ao medo e insegurança e, por vezes, ainda com inesperados e graves problemas económicos. O tele-ensino veio pôr a descoberto conhecidas assimetrias no acesso à internet, a computadores e televisão e aos diferentes níveis de literacia dos pais.

Se o papel social da escola desapareceu, o encerramento dos ATL veio agravar as condições de isolamento, porque se perderam as atividades lúdicas, igualmente fundamentais a um adequado desenvolvimento. Estas condições não foram revertidas com a sua recente reabertura, aplicando-se às crianças as mesmas limitações impostas aos adultos no local de trabalho — afastamento físico com ausência de apoio emocional, incluindo manifestações físicas de carinho. E já ninguém se preocupa com as longas horas frente aos ecrãs — tablet, computador, televisão — que a criança tem passado nestes meses. A criança também foi esquecida na realização dos primeiros e simbólicos espetáculos públicos presenciais. E, se os idosos nos lares ficaram mais sós, o mesmo aconteceu com as crianças institucionalizadas que também deixaram, até há pouco, de ser visitadas. Com o encerramento concomitante dos parques infantis e das associações desportivas perdeu-se ainda a prática regular do exercício físico. O sedentarismo fez o resto. A Associação Portuguesa Contra a Obesidade Infantil estima que o peso das crianças em Portugal terá aumentado 10%. No polo oposto, apesar do apoio dos bancos alimentares e de algumas cantinas escolares abertas para alunos mais desfavorecidos, há muitos relatos que comprovam que a fome atingiu a população infantil, pelo que é previsível um aumento do número de crianças desnutridas com consequências a médio e longo prazo. É importante recordar que, segundo o INE, em 2019, existiam em Portugal 330 mil crianças em risco de pobreza. 

O habitual apoio periódico à saúde, incluindo o da criança com deficiência, ficou reduzido à telemedicina e a própria vacinação foi, em muitos casos, interrompida. A violência doméstica, sofrida ou presenciada, o aumento do risco de atos pedófilos e de trabalho infantil são situações que também não deverão ser escamoteadas. Bem assim como a existência de perturbações psicológicas graves, incluindo o medo da própria morte. O confinamento trouxe também alguns benefícios, o maior dos quais foi o estreitamento do contacto com a família nuclear. Uma oportunidade que se admite poderá ter aumentado os laços afetivos entre pais, filhos e irmãos. As consequências para cada criança, futuro adulto, serão imprevisíveis e estas condições terão de ser rapidamente revertidas. O atual modo de vida da criança deverá, com a maior urgência, ser normalizado e o próximo ano letivo deverá ser adequada e atempadamente preparado. E, embora colhendo os frutos de uma preparação informática teoricamente melhorada, não se deverão sujeitar as crianças portuguesas a métodos experimentais de ensino. Deve ser mantido o regime tradicional presencial e o convívio na escola adaptado aos seus globais interesses e necessidades. As crianças são o melhor do nosso presente e, também, o melhor do nosso futuro. Durante esta terrível crise, as próximas iniciativas não poderão servir apenas os interesses dos adultos.