23.5.08

Aida nasceu num prédio que aluiu, vive numa barraca de madeira e continua à espera de uma casa da câmara

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Há famílias que parecem ter a pobreza entranhada, como se fora uma doença que passa de pais para filhos. Como esta família do Bairro de Aldoar, no Porto


A madeira que faz as paredes da barraca que Aida montou atrás do bloco 14 do Bairro de Aldoar não se vê. Está forrada para melhor enfrentar os humores do tempo, plástico por fora, papelão por dentro.

- Entre, entre. Sou mãe solteira. A câmara [do Porto] sabe que estou aqui!
Uma cortina separa a cama do filho (23 anos) da cama de Aida. As filhas (de 13 e 16 anos) dormem com a avó materna, num apartamento do bairro bege. Cabiam todos dentro do T4 camarário. E lá estariam todos, não fosse o rapaz assumir comportamentos impertinentes, danosos.

Há qualquer coisa de fatal no modo como Aida observa o mundo, na forma como o vive. Herdou a pobreza dos pais. E parece preparar-se para a deixar em herança aos seus filhos.

Nasceu na Sé do Porto Património da Humanidade num prédio estreito, degradado, tão degradado que um dia, tinha ela 12 anos, aluiu. A câmara instalou a família numa modesta pensão da baixa (com ticket para almoçar e jantar num restaurante) e acabou por alojá-la no bairro feito para acolher quem viera das barracas de Xangai.
Passaram 29 anos. Os seis irmãos formaram família. Mas nenhum conheceu outra forma de vida senão a pobreza. Como os pais, foram realojados em bairros sociais. E ela foi ficando ali, com os três filhos, à espera de vez. Dividia o quarto, a cama, com eles (o rapaz com a cabeça para baixo, as raparigas com a cabeça para cima). Os filhos cresceram, o rapaz tornou-se toxicodependente, esgotou a paciência da avó. Mas não é a doença do rapaz que ela quer focar.

- Não ia estar toda a vida na minha mãe!

Durante três anos, Aida e o filho dormiram numa tenda. "A tenda até era boa para o Verão, mas não dá para o Inverno." A cada ano, Aida comprava uma nova e montava-a ali, na relva, atrás do bloco 14. Um dia, percebeu que o seu problema não se resolveria num par de meses, poder-se-ia arrastar anos, como o da irmã que morou 17 numa barraca. E juntou madeiras, plásticos, papelões, cordas, fita-cola e, com a ajuda dos vizinhos, ergueu a sua barraca.

- Eu não estou a pedir uma casa com piscina. Estou a pedir um apartamento para mim e para os meus filhos com umas paredes e um tecto. Vem um temporal e isto abana tudo. Um dia cai!

Apega-se a todos os "santinhos" que conhece - há mais de uma dezena de pequenas imagens dispostas numa mesa de camilha, mesmo ao lado da sua cama. Pede à presidente da Associação de Moradores e ao presidente de Junta de Freguesia para interceder junto da autarquia. Mas a "casinha" não chega. Nem o emprego.

Não há grande oferta laboral para quem só tem o 3.º ano de escolaridade e "a cabeça em água", como Aida. Aida sabe-o, mas nem por isso investiu na escolaridade dos seus filhos. O filho não terminou a escolaridade obrigatória, a filha mais velha ainda frequenta o 7.º ano e a mais nova o 5.º.

O rapaz resmunga lá fora (há mais de meia hora que o faz a espaços) e a mulher ataranta-se. Sequer sabe dizer há quanto tempo caiu no desemprego, há quanto depende do Rendimento Social de Inserção (RSI).

Na tenda já recebia RSI e já lá vão três Natais na barraca. O "sistema" tentou ajudá-la a dar o salto - Aida fez um curso de geriatria, um "estágio" de um ano na Cruz Vermelha Portuguesa -, mas (ainda) não conseguiu integrá-la no mercado laboral.
- Se a Segurança Social me arranjar qualquer coisa, eu vou. Para idosos é que não. Fiz exames à coluna e apareceu qualquer coisa.

A mulher, de 41 anos, saca um recibo de um raios X. E retoma o seu assunto favorito, como se fora um político habituado a usar um meio para passar uma mensagem. Não se habitua aos ratos, aos "bichos que parecem minhocas".

Aida cede, por fim, à pressão do rapaz que brada lá fora. O rapaz quer dinheiro para tomar o pequeno-almoço no bar da associação - ela também não gosta de tomar café na barraca, o bar da associação é a sala de convívio de quem não pode levar os amigos a casa, como ela, que encontra algum reconforto ali, onde as misérias se partilham à volta de mesas de plástico.

A pobreza é a regra no interior do bairro inaugurado em 1968. Às vezes, basta um contratempo para uma família sofrer uma queda abrupta. Como o que apanhou Cecília, deficiente motora atrás do balcão. O marido quis "fazer melhor vida", avançou para a construção civil em Espanha, como milhares de outros portugueses. De repente, zás: "Cinco meses sem trabalhar."

Cecília viu-se grega para gerir a família com os seus 180 euros de reforma de invalidez. Até deixou de pagar a electricidade. O marido arranjou trabalho, mas o novo patrão era dos que "pagam tarde e mal". Pagou-lhe 600 euros pelo primeiro mês. E a mulher anda a reclamar os dois meses em falta. Deram-lhe 400 euros com uma nota de que faltam 900. E a família ainda "passa mal". O marido já não está lá, já está com outro patrão, só que ainda não recebeu.