30.5.08

Preço da comida já alcançou nível máximo mas vai continuar alto na próxima década

Miguel Gaspar, in Jornal Público

O petróleo, a especulação, o aumento da procura e os biocombustíveis vão condicionar
o custo dos alimentos até 2017. Países pobres continuarão a ser os mais atingidos


O preço dos alimentos já alcançou o seu pico máximo e deverá conhecer uma quebra no curto prazo, mas nunca mais voltará aos níveis de 2005. É a conclusão do relatório anual (Agricultural Outlook) sobre as perspectivas agrícolas até 2017 da agência das Nações Unidas para a alimentação e agricultura, FAO, e da OCDE, divulgado ontem.

Boas notícias? Nem por isso: o pior pode já ter passado, mas os tempos dos alimentos baratos são uma boa recordação e não vão regressar, pelo menos nos próximos nove anos.

"Os preços nominais de referência para quase todos os produtos agrícolas estão acima dos anteriormente registados. Mais isto não perdurará e os preços começarão a descer gradualmente (...). No entanto, permanecerão substancialmente acima dos níveis médios registados na última década", refere o documento. Exemplos? No decénio 2008-2017, a carne de vaca e de porco será 20 por cento mais cara do que na década anterior (1988-2008), o milho ou o trigo 40 a 60 por cento e a manteiga 60 por cento.

Este é um quadro suficiente para as duas organizações anteciparem um futuro sombrio. O diagnóstico são milhões de pessoas ameaçadas pela fome ou pela subnutrição, em particular nos países pobres. Um queniano, por exemplo, gasta metade do seu rendimento em alimentação, enquanto um alemão gasta apenas 10 por cento, segundo dados citados pela Reuters. As soluções possíveis vão estar em cima da mesa na Cimeira Mundial da Segurança Alimentar em Roma, na próxima semana, entre os dias 3 e 5 de Junho (ver caixa).

Riscos políticos

"Estamos muito preocupados com os mais pobres e receamos que o número de pessoas subnutridas aumente", disse à BBC on-line um dos autores do relatório, Merritt Cluff. Os preços altos na agricultura não beneficiam muitos agricultores em países em desenvolvimento, que estão longe do mercado e prejudicam sobretudo os pobres que vivem em meio urbano, em países em desenvolvimento e importadores de alimentos.
"Nestes países, a subida do preço dos alimentos representa uma erosão na capacidade de satisfazer necessidades básicas e pode tornar-se uma fonte de tensões políticas ou mesmo de violência", lembra o documento.

A explicação para esta variação dos preços é simples. Por um lado, os factores transitórios que causaram a vaga de aumentos, como os problemas meteorológicos que afectaram alguns dos principais produtores de cereais do planeta, deixarão de se fazer sentir, aliviando a pressão sobre os preços. Mas, por outro, os factores estruturais não vão mudar: a subida do preço do petróleo, os biocombustíveis, a melhoria do nível de vida em economias emergentes como a chinesa ou a indiana e a especulação empurram o custo da alimentação para cima.

As previsões da FAO e da OCDE assentam em pressupostos como uma perspectiva conservadora dos preços do petróleo (os valores de referência para os próximos dez anos variam entre os 90 e os 104 dólares o barril, admitindo-se que a quebra na procura levará a uma baixa de preço), a possibilidade de um fortalecimento do dólar e uma quebra no ritmo de crescimento da população mundial nos próximos anos. Assume ainda que não haverá mudanças na política agrícola, nomeadamente políticas restritivas do comércio agrícola que, a surgirem, terão sem dúvida um impacto importante nos mercados.

Preços voláteis

Mas há outros factores difíceis de prever e que introduzem um risco acrescido: o da volatilidade. Refere o documento que "os preços poderão ser mais voláteis do que no passado"; entre outras razões, porque "os investimentos especulativos e não comerciais entram e saem dos mercados de futuros agrícolas de acordo com as oportunidades de lucro".

Os biocombustíveis são outro factor preocupante. Segundo o relatório, a produção de bioetanol duplicará até 2017 e atingirá os 125 milhares de milhões de litros, enquanto a de biodiesel subirá até aos 24 milhares de milhões de litros. "Estamos muito preocupados com as políticas para os biocombustíveis. Os incentivos do Governo dos Estados Unidos à produção de etanol estão a distorcer o mercado", refere Merritt Cluff.

"O rápido aumento na procura e oferta de biocombustíveis, essencialmente por razões políticas, é uma das causas da actual e futura subida dos preços", defende o relatório, que considera ainda que os benefícios dos biocombustíveis não compensam as desvantagens. "A análise da FAO e da OCDE sugere que as vantagens ambientais, económicas e de segurança energética da produção de biocombustíveis a partir de produtos agrícolas são, na melhor das hipóteses, modestos e em muitos casos negativos", refere o documento.

Soluções para a crise

Investigação e OGM na primeira linha


Antecipando a Cimeira Mundial da Segurança Alimentar, em Roma, na próxima semana, a FAO e a OCDE defendem mais investimentos na agricultura e o recurso aos organismos geneticamente modificados (OGM) como respostas possíveis. "O investimento na investigação e na educação, que tem sido esquecida nos últimos anos, é a melhor forma de combater a pobreza", diz o documento. Quanto aos OGM, oferecem "um potencial que poderá ser mais bem explorado para aumentar a produtividade e os atributos de colheitas destinadas ou não à alimentação".

A FAO e a OCDE defendem ainda a orientação do Banco Mundial - que ontem anunciou um pacote de 1,2 mil milhões de dólares para ajuda alimentar ao Djibuti, ao Haiti e à Libéria. A instituição financeira considera a entrega de dinheiro mais adequada do que a distribuição de víveres. A FAO disse ontem que a cimeira de Roma (da próxima semana) será "uma oportunidade histórica para relançar a luta contra a fome e a pobreza e aumentar a produção agrícola nos países em desenvolvimento".