24.5.08

Desigualdade e corrosão dos sentimentos morais

João Rodrigues, in Esquerda.net

A jornalista Barbara Ehrenreich identificou no seu livro Salário de Pobreza, um notável ensaio/reportagem sobre as trabalhadoras pobres nos EUA, "uma estranha propriedade óptica da nossa sociedade altamente polarizada e desigual".

Esta "estranha propriedade" torna "os pobres quase invisíveis aos seus superiores económicos". E já se sabe que o desconhecimento alimenta todos os preconceitos de classe.

De facto, investigação em economia política crítica tem sublinhado que "regras do jogo" que produzem resultados socioeconómicos desiguais tendem, por sua vez, a gerar normas sociais que legitimam este padrão e que fortalecem a ideologia do individualismo possessivo. Esta ideologia tende a ver a pobreza como o resultado de más escolhas individuais ou de simples falta de sorte na lotaria da vida. Surge assim um discurso que procura separar os pobres merecedores de caridade e de piedade dos pobres perigosos, moralmente deformados, e que devem por isso ser controlados e punidos. A hegemonia de ideias erradas e moralmente repugnantes sobre a questão social é então a expressão de um sistema socioeconómico crescentemente injusto e que tende a alimentar, num círculo vicioso, visões cada vez mais distorcidas do mundo e da vida.

Portugal parece encaixar neste perverso padrão. Segundo um estudo da Comissão Europeia, temos o maior nível de desigualdade de rendimentos da UE e até conseguimos ultrapassar os EUA. Um estudo coordenado por Alfredo Bruto da Costa revela agora que entre 1995 e 2000, 47% das famílias viveram pelo menos um ano numa situação de pobreza. Finalmente, o mesmo Bruto da Costa, numa notável entrevista ao jornalista António Marujo, assinala que "num inquérito europeu de 2002 dois terços dos portugueses atribui a pobreza a factores que não são solúveis: fatalismo, má sorte, preguiça dos pobres" (Público, 23/05/2008). Já Adam Smith, erradamente considerado o pai do fundamentalismo de mercado, tinha denunciado, na sua Teoria dos Sentimentos Morais, "a disposição para admirar e quase adorar os ricos e poderosos e para desprezar, ou pelo menos para negligenciar, as pessoas pobres ou de condição humilde", indicando-a como "causa de corrupção dos nossos sentimentos morais".

Este círculo vicioso tem de ser quebrado através de um combate no campo das ideias e das representações e de uma agenda política robusta. Isto passa por um conhecimento rigoroso da situação e dos padrões mais relevantes de pobreza e sua imbricação com as abissais desigualdades de rendimentos. É impressionante como em Portugal se continua a dizer com toda a desfaçatez que o problema da pobreza é separável do problema da desigualdade. Isto quando se sabe que a desigualdade tende a estar associada a uma menor contribuição do crescimento económico para a redução da pobreza e que os países mais bem sucedidos na redução da primeira foram também os que apostaram em políticas públicas de alcance universal que reduziram a segunda. 1 Em sociedades desiguais tudo se conjuga para transformar a pobreza num problema de caridade selectiva, essa administração ineficiente de paliativos que alimenta todos os vícios e distorções, ou num problema de polícia. Não é por acaso que, quando se fazem comparações entre países, se descobre uma correlação positiva entre desigualdade e gastos em segurança e monitorização. 2 Por outro lado, também existe evidência empírica de que maiores níveis de desigualdade conduzem a maiores níveis de corrupção, a uma menor legitimidade das regras que estruturam a vida pública e a um maior controlo do processo político pelos grupos mais privilegiados. 3

É então preciso insistir na ideia de que a pobreza está fortemente associada à desigualdade e que estes dois problemas são antes de mais o resultado de uma sociedade mal organizada, com instituições injustas que bloqueiam a distribuição de poder, de oportunidades, de recursos e de capacidades para levar uma vida genuinamente humana. Por exemplo, hoje sabe-se que a desigualdade de rendimentos prejudica gravemente à saúde pública, já que está associada a uma degradação dos indicadores nesta área. 4

O problema da pobreza infantil, que em Portugal afecta uma em cada cinco crianças, deve também ser destacado na discussão pública. A pobreza infantil revela com toda a clareza as consequências de uma sociedade que não garante a todos o acesso a condições para um desenvolvimento humano (o que obviamente só pode ocorrer se, lembrando Marx, organizarmos humanamente as circunstâncias desde os primeiros anos): abandono escolar, trabalho infantil, défices de formação e tantas outras "escolhas" trágicas que recaem sobre alguns. A pobreza infantil revela igualmente a vacuidade de um discurso que fala, em abstracto, em "premiar o mérito" e em "igualdade de oportunidades". Aliás, os países desenvolvidos mais desiguais, como os EUA e o Reino Unido, têm taxas de pobreza infantil bastante mais elevadas do que os países, com níveis de rendimento semelhantes, onde existiram condições políticas para construir e manter estados sociais mais robustos. Países onde a verdadeira lotaria da vida tem menos impacto nas oportunidades que estão abertas a todos.

O combate às desigualdades de rendimento deve ser a grande prioridade da esquerda socialista que luta pela construção de uma sociedade decente. Os sentimentos morais e a riqueza da nação dependem, em última instância, do seu sucesso.

João Rodrigues, economista e co-autor do blogue Ladrões de Bicicletas (www.ladroesdebicicletas.blogspot.com).

Notas

1 Robert Wade, ‘Should We Worry about Income Inequality?', in Ayse Kaya e David Held (eds.), Global Inequality, Polity Press, 2007.

2 Arjun Jaydev e Samuel Bowles, ‘Guard Labour', Journal of Development Economics, Abril de 2006.

3 Jong-Sung Youe e Sanjeev Khagram, ‘A Comparative Study of Inequality and Corruption', American Sociological Review, Fevereiro de 2005.

4 Vincenç Navarro, ‘Inequalities are Unhealthy', Monthly Review, Junho de 2004.