13.7.20

Como contrariar o discurso de ódio online? Com conhecimento e contra-narrativas

Leonete Botelho (texto) e Gabriel Sousa (ilustração), in Público on-line

Governo vai lançar até ao final do Verão concurso para cinco projectos científicos para “caracterizar e monitorizar as principais narrativas” de ódio na Internet. Coordenador do MediaLab, Gustavo Cardoso, alerta para a necessidade de se analisarem apenas os grupos públicos e não as pessoas.

O Governo prevê lançar até ao final do Verão o concurso para a contratação de cinco projectos científicos, com diferentes universidades ou centros de investigação, que permitam caracterizar o fenómeno da propagação de discursos de ódio e do incitamento à violência no espaço virtual, anunciou ao PÚBLICO o gabinete da ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva.

Será o primeiro passo para concretizar a intenção, anunciada pela ministra no Parlamento a 1 de Julho, de monitorizar o discurso de ódio nas plataformas online com vista a promover um maior conhecimento da realidade portuguesa e produzir informação “que permita reforçar os mecanismos de prevenção e repressão do discurso de ódio, designadamente nas redes sociais”.

Em Portugal, o discurso de ódio está criminalizado no art.º 240.º do Código Penal, que determina que quem incitar à violência ou ao ódio contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.

“Da mesma forma que as autoridades públicas têm o dever de combater a violência em geral na sociedade, temos de procurar instrumentos de resposta quando esta acontece no meio digital. É necessário encontrarmos ferramentas que possam ajudar os cidadãos que são alvo de perseguição, difamação ou ameaça online”, lê-se nas repostas enviadas ao PÚBLICO pelo gabinete da ministra da Presidência.

Esta conduta criminal assume especificidades próprias no meio digital e, na perspectiva do Governo, “não há nenhuma razão para que a Internet seja um espaço onde são admissíveis condutas contra a lei”. “Não estão em causa críticas, opiniões ou debate político na Internet, mas sim incitamentos à violência ou ao ódio. A defesa de uma sociedade livre implica sempre procurar políticas que combatam o ódio e a violência”, esclarece ainda.

Estudar o fenómeno permitirá, na óptica do Governo, definir medidas complementares, “em articulação com todas as autoridades, no sentido da prevenção e repressão de um crime previsto no Código Penal”. Mas também actuar no plano cívico, desenhando “campanhas de informação sobre os direitos dos cidadãos, nomeadamente a forma como podem fazer queixa junto das autoridades”, ou desenvolvendo “programas de formação profissional sobre esta temática ou de campanhas de combate à discriminação”.

O que não está ainda claro é que tipo de estudos vão ser contratualizados, com que âmbito e objecto, universo e durabilidade. E é sobre estes aspectos que Gustavo Cardoso, coordenador do laboratório do ISCTE vocacionado para as Ciências da Comunicação, deixa alguns alertas e linhas vermelhas. A começar por quem deve – e não deve – ser monitorizado nas redes sociais.

“Não faz sentido monitorizar toda a Internet. O que faz sentido é perceber que tipo de discurso é feito e contra quem – imigrantes, ciganos, mulheres, LGBTI+ e outros – e contrariá-lo com narrativas próprias, que depois serão usadas ao nível educativo e em campanhas públicas”, sustenta Gustavo Cardoso ao PÚBLICO.

Por isso, recomenda que os estudos devem começar por definir as balizas do universo a abranger, para que sobre cada alvo em concreto se analisem as histórias mais partilhadas e comentadas, se identifiquem os discursos e depois se desenvolvam contra-narrativas para efeitos de educação e campanhas de informação. Para estes objectivos, “não temos que saber quem faz” o discurso de ódio, mas desconstruí-lo.

Gustavo Cardoso distingue os dois níveis que o discurso de ódio pode assumir e gostava que os estudos a lançar pelo Governo fizessem o mesmo: o nível criminal e o nível cívico. “Se a conduta é crime, denuncia-se; se não é crime, é um discurso que tem de ser trabalhado de forma abstracta e pedagógica”, distingue.

Por isso mesmo, na sua opinião, os estudos promovidos pelo Governo devem incidir exclusivamente nos grupos públicos das redes sociais, e nunca nos perfis pessoais. “A última coisa que as pessoas querem é ser monitorizadas, há que ter cuidado com isso”, avisa o professor universitário que, no âmbito do MediaLab, tem coordenado trabalhos de investigação sobre a desinformação em Portugal.

Gustavo Cardoso defende que “são as plataformas que têm de lidar com as opiniões das pessoas e já o fazem todos os dias”, aplicando o Código de Conduta para a luta contra os discursos ilegais de incitação ao ódio online assinado em Maio de 2016 entre a Comissão Europeia e o Facebook, Microsoft, Twitter e YouTube.
Esforços internacionais

As preocupações com a propagação do discurso de ódio são antigas, mas têm vindo a crescer em Portugal e no mundo. Ainda em Maio passado, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, apelou a “um esforço total para acabar globalmente com o discurso de ódio”, depois de diagnosticar que a pandemia de covid-19 está a provocar “um tsunami de ódio e xenofobia”, pois “o sentimento contra estrangeiros aumentou online e nas ruas, as teorias de conspiração anti-semitas espalharam-se e ocorreram ataques contra muçulmanos relacionados com a covid-19” e até os idosos foram apresentados como “descartáveis”.

O secretário-geral exortou os líderes políticos a expressarem solidariedade com todas as pessoas e as instituições de ensino a concentrarem-se na “alfabetização digital”, num momento em que “os extremistas procuram garantir audiências prisioneiras e potencialmente desesperadas”.

Ao nível europeu, o tema tem estado no radar do Conselho da Europa desde os anos 90 e já motivou diversas recomendações do Comité de Ministros. A mais recente é de 2018 e foi emitida pela Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (ECRI), à qual compete monitorizar os problemas do racismo, da xenofobia, do anti-semitismo, da intolerância e da discriminação nos Estados-membros.

O trabalho da divisão de média e internet nesta área é baseado numa “perspectiva de liberdade de expressão”, que se concentra na cooperação com os Estados-membros na preparação, avaliação, revisão e alinhamento com a Convenção Europeia de Direitos Humanos de quaisquer leis e práticas que imponham restrições à liberdade de expressão.

A divisão também busca promover a literacia mediática e da Internet em todos os Estados-membros, aumentar a consciencialização sobre o discurso de ódio e os riscos que representa para a democracia e os indivíduos, reduzir os níveis de aceitação do discurso de ódio e desenvolver consenso sobre os instrumentos políticos europeus de combate ao discurso de ódio.

Em Portugal, a “antena” do Movimento contra o Discurso de Ódio do Conselho da Europa é o Instituto Português da Juventude e Desporto, que neste momento está a acompanhar a criação e desenvolvimento da “Rede Contra o Discurso de Ódio” (No Hate Speech Network), iniciativa de um grupo de jovens activistas de vários países europeus que pretende “criar uma rede sustentável que trabalhe internacionalmente para combater o discurso de ódio no âmbito de uma forte estrutura pelos direitos humanos”.