A propósito da recente vitória no Tribunal Constitucional, dois dos três procuradores envolvidos na batalha jurídica contra o programa “Supernanny” da SIC falam ao PÚBLICO. A acção foi também contra os pais das crianças “instrumentalizadas” e “expostas”. “Os pais têm que proteger as crianças mas também garantir que os seus direitos são respeitados.”
A batalha, iniciada quando Joana Marques Vidal ocupava o cargo de procuradora-geral da República, prolongou-se no tempo e foi ganha pelo MP em cada um dos recursos apresentados no Tribunal de Oeiras, no Tribunal da Relação, no Supremo Tribunal de Justiça e, finalmente, no Tribunal Constitucional, numa deliberação de 13 de Maio passado. Luísa Verdasca Sobral, magistrada do MP coordenadora da comarca de Lisboa Oeste, e Miguel Ângelo Carmo, procurador da República, assessor do gabinete da procuradora-geral da República, são dois dos três magistrados que assumiram a representação do MP neste “processo especial”.
Nesta entrevista, os procuradores apontam ainda para os prováveis impactos do confinamento e da crise económica na protecção das crianças e descrevem situações de perigo perante as quais o magistrado do MP não deve vacilar: quando a família comprovadamente não consegue proteger a criança, um procurador deve promover a sua retirada “o quanto antes”.
Por que motivo o Ministério Público intentou uma acção neste caso?
Miguel Ângelo Carmo (MAC): O MP tem competências de representação de todas as crianças e jovens menores [de 18 anos] e, nessa perspectiva, em tudo aquilo que possa conflituar com o superior interesse da criança, que são os direitos da criança. Neste caso, quem estava a pôr em causa o exercício desses direitos de personalidade eram os próprios pais. O MP, dentro daquilo que é o ordenamento jurídico português, tem essa legitimidade para agir em representação das crianças. Foi aquilo que sucedeu.
Luísa Verdasca Sobral (LVS): Também o fez por se tratar de uma violação de um direito à reserva da intimidade da vida privada e um direito à imagem da criança. Estamos a falar de um processo civil, de um processo especial de tutela dos direitos de personalidade. São direitos absolutos, constitucionalmente consagrados e internacionalmente reconhecidos. Não fazia sentido da parte do MP, tendo em conta a sua legitimidade, não intervir nesta situação. A protecção da personalidade de crianças em desenvolvimento tem que ser encarada como uma violação de direitos humanos.
O caso era suficientemente grave para o MP intervir?
MAC: Era um caso grave de violação grosseira, foi o que o MP entendeu. Expunha aos olhos dos cidadãos aquilo que eram as fragilidades das crianças, aquilo que eram os seus aspectos negativos. As crianças eram apresentadas ao público como o verdadeiro problema, e a culpa desse problema era atribuída às crianças. Não se evidenciava nada de positivo que aquelas crianças tinham, e o MP entendeu que aquelas crianças careciam de protecção. O programa “Supernanny” foi emitido em mais de duas dezenas de países e Portugal foi o único país que resolveu avançar na protecção destas crianças. Várias organizações internacionais, a UNICEF, os institutos que tutelam a aplicação dos direitos das crianças, evidenciaram esta actuação do MP como uma excelente prática na perspectiva da tutela dos direitos das crianças.
Há que assumir definitivamente que a liberdade de programação televisiva não é absoluta. Tem limites, e tem limites quando se violam direitos humanos
A acção foi também contra os pais.
LVS: O MP actuou em representação quando os pais não assumiram uma protecção séria, actual e responsável, uma vez que permitiram uma instrumentalização, uma exposição pública e uma exploração da imagem negativa dos próprios filhos. Há que assumir definitivamente que a liberdade de programação televisiva não é absoluta. Tem limites, e tem limites quando se violam direitos humanos. No caso concreto, aceitar que um formato como este pode constituir de algum modo um exemplo pedagógico ou qualquer modelo educacional é altamente abusivo. Tanto assim é que esta acção cível instaurada pelo Ministério Público foi confirmada em toda a linha por todas as instâncias judiciais, seja o Tribunal da Relação de Lisboa, seja o Supremo Tribunal de Justiça, seja o Tribunal Constitucional que, de forma inovadora, definiu conteúdos jurídicos extremamente importantes no âmbito da protecção dos direitos da personalidade das crianças.
O MP já alguma vez tinha intentado uma acção deste tipo?
LVS: Eu penso que foi a primeira acção de tutela dos direitos de personalidade de crianças. A partir daqui, também houve o reforço do papel das comissões de protecção de crianças e jovens (CPCJ). A partir desta decisão, todas as participações de crianças e jovens em espaços de entretenimento e espaços televisivos estão dependentes de um pedido de autorização, de um acordo prévio das comissões de protecção de menores.
É um sinal dos tempos? Está a ser dada mais atenção aos direitos das crianças?
LVS: Cada vez mais há uma atenção de que as crianças são pessoas com direitos. Se, por um lado, os pais devem proteger os filhos, também têm o dever de garantir que os seus direitos sejam respeitados.
Durante o confinamento imposto a todas as famílias devido à pandemia, as crianças ficaram mais desprotegidas, por não irem à escola, ao centro de saúde, e não serem vistas pela comunidade e entidades que normalmente sinalizam eventuais contextos de perigo?
LVS: O facto de as crianças estarem em casa e não estarem na escola pode potenciar essas situações. Mas ainda não há dados consolidados quanto a isto. No entanto, há uma preocupação real: há uma prognose resultante das medidas restritivas e também da crise económica e social que se avizinha e que pode ter impactos de dimensões históricas em várias áreas judiciárias, com repercussões também nesta realidade [das crianças em perigo]. Eu falo da prognose de aumento do número de insolvências, o aumento do número de despedimentos, uma possibilidade de despejos, um aumento de cobranças coercivas, o fim das moratórias dos créditos. Tudo isto pode representar alguns impactos do ponto de vista das famílias, das crianças, e também de alguns riscos em que todas as crianças se encontram e o próprio cidadão, eventualmente, com o aumento da criminalidade. É uma preocupação que deve ser ponderada. Pode ser necessária uma intervenção mais fortalecida nesta área de intervenção quanto às crianças.
A retirada de uma criança à família não é nada que se faça de ânimo leve, mas é algo que se faz com toda a responsabilidade e sem quaisquer problemas para os magistrados porque é esse o nosso papelMiguel Ângelo Carmo
Uma intervenção de que tipo?
LVS: As realidades da violência contra crianças não estão dissociadas de realidades sociais – rupturas sociais, comportamentos aditivos, carências habitacionais, desestruturação pessoal, problemas de saúde mental, precariedade de emprego. São todas realidades sociológicas e económicas que, muitas vezes, criam as situações de risco em que as crianças se vêem envolvidas. E, portanto, nessa parte da prevenção primária, as entidades que colaboram com o MP são fundamentais neste trabalho [de identificar os casos na comunidade]. Não podemos pensar que é o MP que tem o papel de resolver todos os problemas. Estamos aqui todos a trabalhar para o mesmo: prevenir para proteger melhor.
O que deve determinar a retirada de uma criança da família?
MAC: Isso está na lei.
O que deve determinar o momento dessa retirada?
MAC: O momento certo para se retirar uma criança à família que não a consegue proteger é o quanto antes. A partir do momento em que as autoridades têm conhecimento de um conjunto de factos que ponham em causa o superior interesse de forma grave, irreversível, devem determinar, nos termos na lei, a retirada da criança.
É uma questão difícil para quem decide, ou promove a medida, como é o caso do MP?
MAC: Na minha experiência profissional, tive casos desses, mas nunca tive quaisquer problemas em avaliar os factos e promover no sentido de uma retirada à família. Quando, naquele momento, a única solução possível para proteger aquela criança é retirá-la da fonte de perigo que é a família, tem que ser retirada. Isso não é nada que se faça de ânimo leve, mas simultaneamente é algo que se faz com toda a responsabilidade e sem quaisquer problemas para os magistrados, porque é esse o nosso papel.
Em Portugal, ainda há crianças que poderão estar a ser retiradas aos pais por uma situação de pobreza extrema? Pobreza essa que desencadeia negligências várias?
LVS: As debilidades sociais, de desestruturações familiares, comportamentos aditivos, problemas de desemprego ou de saúde mental, podem desencadear factores de risco sérios que colocam a criança numa situação de perigo séria. Isso pode ocorrer em famílias economicamente estáveis, abastadas, como também pobres, ou carenciadas. Mas eu não conheço nenhuma decisão em que uma criança tenha sido retirada aos pais porque a família é pobre ou tem carências económicas.
O tribunal nunca irá justificar a retirada com uma situação de pobreza. Mas pode acontecer que na origem do problema esteja a carência económica?
MAC: A pobreza não é um factor de risco consagrado na lei. A pobreza motivada por desemprego dos pais, se for associada a uma negligência permanente dos pais em não procurar ajudas sociais, em não permitir que a criança tenha cuidados de saúde prestados pelo Estado, em não procurarem ajudas para que a criança seja ajudada, a criança que não tem hábitos de higiene apesar de eles terem água em casa. Ou seja, a pobreza pode ser um factor potenciador de uma situação de perigo para a criança. Por si só não constitui um perigo, nem deve nunca motivar a retirada de uma criança.