5.7.20

No Líbano deixou de ser possível comprar carne e já nem o pão é garantido

Pedro Bastos Reis, in Público on-line

Preço da carne vermelha e do frango triplicou e muitas famílias nem sequer têm dinheiro para comprar pão ou vegetais. Desespero sente-se nas ruas do Líbano, com a classe política a ser posta em causa.

Na gastronomia libanesa, a carne vermelha assume um lugar privilegiado, desde o tradicional kibbeh (pastéis de bulgur recheados com carne) aos pratos de cordeiro assado, assim como a carne de frango, utilizada em pratos como o jawaneh (asas marinadas em alho) ou o farrouj (frango grelhado com sumo de limão). No entanto, para milhões de libaneses, o acesso a proteína é, hoje em dia, um luxo acessível a poucos.

“Já não conseguimos comprar carne vermelha ou frango. O mais perto que ficamos dessas comidas é o que vemos nas revistas e nos jornais”, lamentou à Reuters Amer al Dahn, 55 anos, residente em Trípoli (a segunda maior cidade do Líbano), e que ficou sem dinheiro para comprar comida e precisa de recorrer ao crédito de uma loja para alimentar a mulher e os quatros filhos.

Amer al Dahn é um dos milhões de libaneses que lutam diariamente para conseguir ter acesso a alimentação básica, num país onde o pão não está garantido.

Para sobreviveram, muitos libaneses têm vendido as suas posses, sobretudo mobília, o que nem sempre é suficiente – muitos dependem da ajuda de vizinhos para comer. “Se não fossem os vizinhos a darem comida, as pessoas estariam a morrer à fome”, afirmou à Reuters Omar al-Hakim, que vive num apartamento de uma divisão em Trípoli com a mulher e os seis filhos.

Em Novembro do ano passado, o Banco Mundial alertou que o número de libaneses a viverem na pobreza podia aumentar 50% caso a economia do país não conseguisse recuperar. Meses depois, a covid-19 espalhou-se pelo mundo e obrigou o Líbano a impor medidas de quarentena, agravando ainda mais a debilidade económica do país.

O Líbano atravessa uma crise sem precedentes, considerada a mais grave desde o final da guerra civil em 1990, que devastou o país durante 15 anos. Desde Outubro do ano passado, a libra libanesa caiu mais de 80%, uma tendência que se tem agravado nas últimas semanas – segundo o Guardian, são precisas dez mil libras para perfazer um dólar.

Com esta desvalorização da moeda, o preço dos bens essenciais disparou, destruindo completamente a frágil economia de um país que importa 80% da sua comida.

Perante este cenário catastrófico, o preço da carne vermelha e do frango triplicou. As restrições chegaram ao Exército, onde a carne vermelha foi retirada da ementa, enquanto muitos restaurantes decidiram retirar os pratos de carne vermelha dos menus, substituindo-a por vegetais ou frango, quando há dinheiro para isso. Mesmo o grão-de-bico, o feijão e as lentilhas, utilizados abundantemente na gastronomia do país, estão fora do alcance de muitas famílias.
Desespero

O desespero é tão grande que, na passada sexta-feira, um homem de 61 anos suicidou-se em Hamra, um bairro da capital, segundo os media locais devido à crise económica e financeira. Junto ao seu corpo estava uma bandeira do Líbano, com uma carta que dizia “não sou herege, mas a fome é heresia”.

“Ele matou-se por causa da fome”, afirmou o primo, citado pelo Le Monde. Horas depois, segundo o mesmo jornal francês, um motorista suicidou-se no sul da capital, devido a problemas financeiros.

Estas duas mortes deixaram o país em choque e geraram grande indignação, levando a um uma subida de tom nos protestos contra o Governo e a classe política.

“As pessoas estão a passar a fome, estão falidas, na miséria”, disse à Reuters Lina Boubes, residente do bairro de Hamra, em Beirute. “Eles [políticos] roubaram os nossos sonhos, o nosso dinheiro, o nosso pão, e estão sentados nos seus castelos enquanto nos oprimem”, rematou.

O Governo de Hassan Diab tomou posse no início deste ano, depois da queda de Saad Hariri, que não resistiu aos protestos contra o aumento do custo de vida e do desemprego, no final do ano passado.

Apesar da tomada de posse de um novo Executivo, que contou com o apoio dos xiitas do Hezbollah, a situação financeira do país não melhorou e os protestos voltaram rapidamente, na chamada “revolta do pão”, pausada temporariamente devido à covid-19. Em Junho, as manifestações voltaram em força à capital, com manifestantes a queimarem pneus e a cortarem estradas, envolvendo-se em confrontos com a polícia.

No final da semana passada, depois das mortes na capital, os manifestantes voltaram a sair às ruas de Beirute, onde se viram cartazes a acusar o Governo de ter “sangue dos cidadãos” nas mãos.

Negociações falhadas

No final do passado mês de Maio, depois de Hassan Diab ter lançado um alerta internacional para a crise alimentar que o país está a atravessar, o Parlamento aprovou um pacote de ajuda financeira no valor equivalente a 272 milhões de euros para as famílias com baixos rendimentos e para os sectores vitais na economia, medidas que, contudo, não chegam.

Em paralelo, o Governo de Diab começou as negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para um pacote de resgate financeiro. No entanto, as conversas estão suspensas, com o FMI a exigir reformas com que o Governo não concorda, e a persistirem dúvidas quanto ao valor real da dívida de um país fortemente marcado pela corrupção.

“Nós temos implorado para que se comportem como um Estado normal, mas eles estão a agir como se estivessem a vender um tapete”, disse ao Guardian, sob anonimato, um diplomata europeu envolvido nas negociações. “O Líbano parece um Estado falhado”, acrescentou outra fonte ao mesmo jornal britânico.